São Paulo, domingo, 06 de junho de 2010

Texto Anterior | Índice

Arquivo aberto

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

A câmera stalinista

São Paulo, 1972

REINALDO MORAES

EU DEVIA TER UNS 20 ANOS NESSA FOTO, dos primórdios jurássicos dos anos 70, em que posso ser visto ocupadíssimo a me autorretratar diante de um espelho. A máquina é uma Praktica, contrafação alemã oriental das câmeras fotográficas reflex de boa qualidade, japonesas na maioria, que eram os xodós de todo fotógrafo, amador ou profissional.
Os fotógrafos de hoje, pelo menos os amadores, talvez se sintam menos atraídos pelo design e pelas características técnicas de uma boa reflex, na qual a imagem captada pelo visor é a mesma sugada pela lente única da máquina.
Isso é bastante compreensível numa era em que milhões de proprietários de celular com câmera digital produzem todos os dias zilhões de fotos de qualidade técnica inalcançável naquela época por mim e minha alemãzinha comunista, alimentada a filmes de celulose, com a qual cheguei a fazer vários trabalhos profissionais.
Escolhi a Praktica numa tradicional "foto-cine-ótica" do centro de São Paulo porque ela custava a metade do preço de uma Pentax ou de uma Nikon, meus sonhos de consumo. A Praktica era a reflex mais barata do mercado, e o fato de ter sido feita num país comunista (hoje reintegrado à capitalista Alemanha) liderado por stalinistas devoradores de criancinhas, curiosamente não impediu sua entrada comercial numa ditadura brucutu de direita, como a que vigorava no Patropi, já em plena era Médici, que muita gente presenciou de ponta-cabeça pendurada num pau-de-arara.
Com esse nome que mais parecia uma auto-onomatopéia, pois mimetizava o barulhão de mecanismo tosco que fazia ao se avançar o frame do filme e disparar o obturador, e com sua modesta lente F:2.8 de baixa luminosidade, aliada a uma velocidade de obturação máxima de apenas 1/500, minha pouco prática Praktica quebrava um galhão. Com ela fiz, por exemplo, a foto da capa do disco "Todos os Olhos", do Tom Zé, que mostra o mais polêmico orifício humano emoldurando uma bolinha de gude verde.
O artista e a agência de publicidade responsável pela ideia trocadilhesca da capa ("Todos os Olhos", inclusive o do extremo inferior do tubo digestivo) sempre alardearam que aquilo era mesmo o que parecia -mas não era.
Depois de várias tentativas algo grotescas de fixar uma bolinha de gude no ânus de uma complacente amiga, e de fotografar a "instalação" improvisando uma macro-lente com a 50 mm da minha Praktica virada ao contrário, vimos todos lá na agência que a imagem carecia da ambiguidade demandada pelo trocadilho visual que se queria evocar, pois a verdadeira natureza anatômica do dito "olho" não se deixava disfarçar.
Vai daí, em nova sessão de fotos focando a bolinha encaixada nos mickjaggerianos lábios da mesma moça, chegamos ao resultado que se pode ver na celebrada capa do LP.
A ideia da capa, a frustrada primeira sessão de fotos para tentar realizá-la (o estúdio era um quarto de hotel para caminhoneiros na Régis Bittencourt que fazia as vezes de motel), a barba & cabelão do fotógrafo, o despudor desencanado da namorada-modelo, o próprio disco do Tom Zé, um ovni pós-tropicalista barrado no baile do sucesso fonográfico -tudo isso tinha um deliciosamente obsoleto sabor hippie-guerrilheiro-dadaísta, típico dos anos 60/70.
Hoje, quando conto essa história, longe de chocar minha audiência, o máximo que arranco dos meus jovens interlocutores é a indefectível pergunta: "Lavou a bolinha antes da segunda sessão de fotos?".


Texto Anterior: Diário de Nova York: O jardim suspenso
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.