São Paulo, domingo, 07 de novembro de 2010

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CIÊNCIA

Burocracia in vitro

Os trâmites que embaraçam a ciência brasileira

RESUMO
A burocracia alfandegária, que não distingue frágeis materiais científicos de produtos importados comuns, é um dos entraves à pesquisa de ponta no país. O laboratório carioca Lance, prestes a publicar estudo com importantes avanços para o tratamento da esquizofrenia a partir de células-tronco, dribla os entraves com inovação.

MARCELO LEITE

JULIANA CANSOU-SE de esperar. Nasceu no último dia 8, antes que a mãe, Renata de Moraes Maciel, conseguisse concluir o artigo que poderá turbinar sua carreira e a de Bruna da Silveira Paulsen.
Elas estão no encalço de uma explicação celular para a esquizofrenia. Têm de se debater, porém, com as agruras habituais do pesquisador brasileiro, burocracia de importação acima de tudo.
Até uma implosão conspira contra seu grupo de pesquisa. A ala sul do Hospital Universitário da UFRJ, um esqueleto na ilha do Fundão, irá abaixo às 8h de 19 de dezembro com uma nuvem de poeira e vibrações cujo efeito sobre microscópios de precisão e amostras biológicas é imprevisível.
Maciel e Paulsen são cientistas do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (Lance), respectivamente pós-doutoranda e mestranda. Estão na vanguarda dessa área de investigação no Brasil, a ponto de comprovar alterações reveladoras sobre neurônios (células nervosas) de pacientes esquizofrênicos. Arriscam-se, contudo, a perder a corrida para o Instituto Salk, da Califórnia.
Os americanos já negociam a publicação de um artigo sobre o tema no periódico científico "Nature". As brasileiras desconfiam que o Salk não deve ter topado com as mesmas alterações que detectaram nas células nervosas, mas temem deixar de ser as primeiras a anunciar a produção de neurônios a partir de células de portadores daquela doença mental.

IN VITRO O Lance se concentra na aplicação menos conhecida das células-tronco: a criação de modelos in vitro para doenças importantes como a esquizofrenia. A ideia é contar com uma amostra do tecido doente -no caso, uma coleção de neurônios- fora do corpo para estudar e testar remédios.
As células-tronco costumam ser descritas como células-curinga, por serem capazes de se transformar em quaisquer outras células do corpo. São, em geral, mais associadas com as prometidas terapias celulares -como o tratamento experimental para lesões da medula espinhal que a empresa Geron, dos EUA, anunciou no dia 11/10 ter começado a testar em seres humanos. As duas vertentes de estudo -modelos in vitro e terapia celular- ganharam impulso com as células pluripotentes induzidas, as iPS (abreviação derivada do inglês). São células-tronco artificiais, por assim dizer.
Em lugar de destruir embriões para retirar as células que darão início a uma linhagem cultivada de curingas, tornou-se possível por essa técnica forçar células de um adulto -de pele, por exemplo- a regredir até um estado primitivo. A partir daí, elas podem ser "convencidas" a se diferenciar (transformar-se) em componentes do tecido de interesse.
No caso da esquizofrenia, o alvo do estudo é o cérebro, que tem sua parte mais nobre composta por neurônios. Em colaboração com Helena Paula Brentani, do Hospital do Câncer A.C. Camargo, em São Paulo, Maciel e Paulsen lograram uma espécie de alquimia celular: em lugar de obter ouro do chumbo, criaram neurônios com base em fibroblastos, soldados rasos do tecido conjuntivo presente na pele. Até aqui, a mesma façanha realizada no Salk, segundo fofocas que chegaram à UFRJ. Mas as moças do Lance foram além.
Os fibroblastos de pacientes esquizofrênicos foram fornecidos pelo psiquiatra Paulo Silva Belmonte de Abreu, da UFRGS. Com a ajuda de vírus, a dupla contrabandeou para essas células adultas trechos de DNA (genes) que as obrigam a reverter para o estágio de células-tronco.
Reconstituído o pluripotencial, quer dizer, a faculdade de se transformar em vários tecidos, utilizaram-no para derivar neurônios. E aí constataram diferenças relevantes com as células nervosas do grupo de controle, obtidas de fibroblastos de pessoas normais, não esquizofrênicas.
Maciel e Paulsen não podem revelar que alterações são essas, pois o trabalho ainda não foi publicado. Mas não economizam desgosto com a burocracia de importação. "Se não fossem os percalços, o trabalho já estaria submetido [a um periódico]" -queixa-se Renata Maciel.
Com sua licença-maternidade, a finalização do artigo agora depende mais de Paulsen, encarregada de robustecer o estudo com experimentos e testes adicionais. Seu plano e o de Stevens Kastrup Rehen, chefe e dínamo do Lance, é terminar dentro de um mês, mesmo porque até o dia 16 de dezembro tudo tem de estar embalado, ou retirado dali, para enfrentar a implosão.

MEIO DE CULTURA No centro das dificuldades de Maciel e Paulsen está uma substância sensível, o mTeSR (pronuncia-se "emitízer"). Siglas elaboradas como essa em geral escondem termos prosaicos, como "special recipe" (receita especial, de fulano ou sicrano). No caso, a de um coquetel de nutrientes usado como meio de cultura para fazer células-tronco se multiplicarem sobre placas de vidro.
O produto é importado da Stemcell Technologies, empresa de Vancouver, Canadá. Chega em dois frascos separados, um em torno de -73ºC, que precisa ser mantido em gelo seco, outro entre 1ºC e 4ºC (freezer). Cada conjunto contendo o total de 500 ml custa R$ 1.422 por vias normais e demoradas, mas o Lance consegue importar diretamente por R$ 1.120.
A limitação, conta Bruna Paulsen, está na quantidade de células que a dupla consegue expandir de cada vez. "Se quiséssemos fazer cinco placas ao mesmo tempo, não daria", explica Renata Maciel. "Não fazíamos importação direta ainda."
Maciel se refere ao salto dado pelo laboratório com a contratação de Leonardo Kastrup Fonseca Rehen. Irmão de Stevens, Leonardo descobriu o caminho para Stevens importar produtos como o mTeSR na condição de pessoa física, sem depender de estruturas morosas das universidades e suas fundações. Além do Lance, Leonardo já presta serviço para uma dezena de laboratórios da UFRJ.

ESPERANDO DOUTOR A importação direta é uma corrida contra cinco obstáculos. O primeiro dura 48h: obter licença específica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientítico e Tecnológico (CNPq) para importar determinado produto. Depois, é necessário pagar a encomenda, o que exige compra de moeda estrangeira ("fechar o câmbio").
O terceiro passo é enviar o comprovante de pagamento para o fornecedor. Em seguida, há que organizar a retirada do mTeSR em Vancouver e a remessa via aérea para o Brasil. Até este quarto obstáculo, na melhor hipótese o processo dura duas semanas.
A maioria das histórias tristes narradas por pesquisadores -aparelhos danificados, amostras congeladas derretidas etc.- tem por cenário um armazém alfandegário de aeroporto. Não se pode prever quanto tempo demorará esse quinto passo, que depende de fiscais da Receita Federal e, no caso de material biológico ou fármacos, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
"Tem que ficar lá enraizado, esperando doutor", conta Leonardo Rehen, que já teve de ir três vezes levar gelo seco para a mesma remessa de mTeSR. Sem muitas intercorrências, a importação direta consome coisa de um mês.
Na dúvida, muitos fiscais resolvem abrir as embalagens e conferir toda a papelada. Nada muito diferente do que a maioria dos brasileiros já vivenciou numa repartição da Receita ou do INSS, a curiosa mescla de zelo e descaso que inferniza a vida do cidadão.

MELANCIA As coisas pareciam ter melhorado a partir do Ano-Novo de 2007. A comunidade científica mobilizou-se para protestar contra a burocracia de importação com abaixo-assinados e enquetes. Ganhou apoio do Ministério da Ciência e Tecnologia e do CNPq.
Questionário organizado por Stevens e colegas revelou que 63% dos pesquisadores ouvidos esperavam de 1 a 3 meses pelas importações. Outros 37%, até 48 meses.
Em 26 de dezembro de 2007, a Receita presenteou cientistas com a instrução normativa número 799. Ela instituía preferência para o pesquisador cadastrado pelo CNPq utilizar o "canal verde da seleção parametrizada do Sistema Integrado de Comércio Exterior (Siscomex), com o consequente desembaraço aduaneiro automático". Pesquisadores apelidaram a instrução de "melancia": canal verde no Siscomex e vermelho para o fiscal.
A Anvisa também se mexeu. Em 22 de janeiro de 2008, baixou a resolução número 1, que dava prioridade na liberação de materiais importados para pesquisa. O licenciamento deveria, segundo o artigo 6º, acontecer em até 24 horas, mas com a ressalva: "após protocolo e cumprimento das exigências legais".
Os irmãos Rehen acham que deveria haver um selo verde -um adesivo, mesmo- para identificar material de pesquisa, transferindo toda a responsabilidade para o cientista-importador. Enquanto o selo não se materializa e a burocracia não se desmaterializa Stevens ressuscitou o questionário de três anos atrás e obteve respostas de 165 cientistas de 35 instituições de pesquisa.
A radiografia é desanimadora. A maioria (76%) já perdeu material retido na alfândega. E 88% declaram que não houve melhora ou aumento de agilidade perceptíveis após as novas normas da Receita e da Anvisa.

ATRASO Segundo Stevens, quem manda na Receita e na Anvisa sabe que o sistema precisa mudar: "Não é nessa esfera. É uma rede", queixa-se, referindo-se ao baixo escalão. "São várias instâncias que não se falam. A competição mundial é imensa. A gente perde."
Nem sempre. Para não ter de importar o mTeSR, que seus concorrentes do Salk recebem em questão de horas ou dias, o Lance partiu para inventar o seu próprio meio de cultura, o MaSeR (pronuncia-se "mêizer") -algo como "receita especial do Marinho".
A pesquisa por trás da iniciativa foi realizada pelo engenheiro químico Paulo André Nóbrega Marinho, 27. Para a sua tese de doutorado, coorientada por Rehen e Leda Castilho (Coppe-UFRJ) e defendida em meados de agosto, Marinho enfrentou o desafio de desenvolver e baratear um substituto para o mTeSR.
A receita meio caseira do mTeSR emprega compostos de origem animal que seriam conveniente evitar, pois sempre há receio de contaminação por vírus. Serve para pesquisa, mas dificilmente seria aprovada em tratamentos para seres humanos, nos quais poderia também causar rejeição.
Marinho submeteu o meio de cultura àquilo que os químicos chamam de "otimização sistemática", ferramentas estatísticas para definir quanto de cada composto é de fato necessário para a receita funcionar. A maioria, no mTeSR, estava em excesso.
Um dos componentes mais caros foi reduzido a um décimo da concentração original. Substituíram-se todas as proteínas de origem animal por versões artificiais, ou "recombinantes", no jargão bioquímico, menos propensas a causar rejeições num eventual uso terapêutico das células cultivadas com o novo meio.
O custo de produção do MaSeR está abaixo de um quarto do que o Lance paga pelo mTeSR. Já se comprovou que é pelo menos tão eficiente quanto o produto importado. A receita está sendo patenteada no Brasil e nos Estados Unidos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pela UCSD -Universidade da Califórnia em San Diego, onde Marinho realizou parte do trabalho.
Por vias tortas, a burocracia acaba contribuindo para estimular a solução de uma das maiores deficiências do setor de pesquisa no Brasil: a dificuldade de produzir inovação, ou seja, aplicações com potencial comercial.
O MaSeR é um resultado feliz, mas isolado. Noves fora, as barreiras alfandegárias só acarretam mais do mesmo: atraso. E atrasos, já disse Shakespeare, têm consequências funestas.

Maciel e Paulsen estão a ponto de comprovar alterações reveladoras sobre neurônios de pacientes esquizofrênicos. Mas arriscam-se a perder a corrida para o Instituto Salk, da Califórnia

A maioria das histórias tristes narradas por pesquisadores -aparelhos danificados, amostras derretidas etc.- tem por cenário um armazém alfandegário de aeroporto


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