São Paulo, domingo, 07 de novembro de 2010

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Freyre, clássico e pagão

Recife, 1941

EDSON NERY DA FONSECA

EM SEU LIVRO "Como e por que Sou e não Sou Sociólogo" (Editora Universidade de Brasília, 1968) Gilberto Freyre (1900-87) escreveu que nele o antropólogo, o sociólogo, o historiador social e o possível pensador eram ancilares do escritor. Eu prefiro defini-lo como um grande sedutor.
Ele nos seduzia, em primeiro lugar, por suas ideias originais a respeito da formação social do Brasil, que atribuía mais à família patriarcal do que à Coroa portuguesa e à Igreja Católica; pela valorização do escravo negro como cocolonizador do Brasil; pela defesa da miscigenação; pelo pluralismo metodológico; pela pioneira utilização de anúncios de jornais; e pelo seu saboroso estilo, caracterizado pelo imagismo, pela enumeração caótica e pelo expressionismo.
Seduzia-nos também pela cordialidade com que nos recebia em sua casa de Apipucos, no Recife, oferecendo o conhaque de pitanga por ele mesmo artesanalmente fabricado e do qual só revelava três ingredientes, esclarecendo que os outros eram "segredos quase maçônicos": "suco de pitangas colhidas em nosso sítio, cachaça de cabeça fornecida por boas engenhocas das redondezas e licor de violetas fabricado por freiras virgens e místicas".
Existem várias histórias a respeito do conhaque de pitanga freyriano. Uma delas me foi contada pelo cineasta Nelson Pereira dos Santos, hoje membro da Academia Brasileira de Letras, que filmou, em Apipucos, um encontro entre Gilberto e o grande compositor Lourenço Fonseca Barbosa, conhecido como Capiba (1904-97).
Gilberto servia seu conhaque de pitanga em cálices de cristal e numa pequena bandeja de prata, depois de aspergir sobre a bebida canela em pó, "num gesto clássico e pagão", como diria Vinicius de Moraes. Capiba pegou o cálice e ia bebendo quando Gilberto segurou no seu braço, dizendo: "Antes de beber, aprecie a cor e o buquê".
Desgostoso com a lição, Capiba tentou novamente emborcar o cálice, tendo sido mais uma vez impedido por Gilberto, que disse: "Isto não é cachaça para ser tomada num só gole, o conhaque deve ser tomado aos poucos". Capiba ficou envergonhado porque a cena estava sendo filmada, e quando Gilberto acrescentou que seu conhaque de pitanga era afrodisíaco, vingou-se dizendo: "Então é muito bom para você e para mim".
Ouvi falar de outra história, na qual aparece o ilustre diplomata Antonio Francisco Azeredo da Silveira. Ministro das Relações Exteriores no governo Geisel (1974-79), Azeredo da Silveira perguntou ao chefe de seu gabinete -o pernambucano Geraldo de Holanda Cavalcanti, eleito recentemente para a Academia Brasileira de Letras- o que devia fazer para agradar Gilberto Freyre, que pretendia visitar numa viagem de serviço ao Recife. "Ele vai lhe oferecer uísque", disse o auxiliar, "e você responda que prefere experimentar a famosa cachaça de pitanga."
Gilberto respondeu zangado que a bebida por ele fabricada era conhaque e não cachaça. Regressando a Brasília, Azeredo da Silveira acusou o chefe de seu gabinete pelo vexame que passara, tendo ouvido esta explicação: "Eu não sabia que a cachaça de meu tempo de estudante havia sido promovida a conhaque".
Tanto quanto me lembro -frequentador assíduo da mansão de Apipucos desde 1941-, a primeira bebida fabricada por Gilberto Freyre era o licor de pitanga que, depois de envelhecido, assumiu a cor e o sabor do conhaque.


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