São Paulo, domingo, 09 de janeiro de 2011

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Saramago almoçou em minha casa

Carapicuíba, 1997

CRISTIANO MASCARO

ERA SEMPRE ASSIM. Toda vez que Lélinha e Tião (Lélia e Sebastião Salgado) passavam por São Paulo, havia um almoço em minha casa. Normalmente programado para um domingo, reunia nossos amigos mais chegados e sempre acabava muito tarde, tanta era a conversa que tínhamos para pôr em dia.
Naquele ano de 1997, acabava de ser lançado o livro "Terra", com fotos do Tião, projeto gráfico da Lélinha e prefácio de José Saramago, que, segundo meu amigo fotógrafo, se fosse convidado, não deixaria de vir. Foi um entusiasmo geral na família. Logo bateu aquela preocupação: qual seria o cardápio? Depois de muita discussão, Satiko, minha mulher, decidiu servir saladas variadas, assar um belo pernil, dois frangos recheados com farofa e, como sobremesa, a especialidade de Rosana, nossa cozinheira: "îles flottantes". De quebra, "Manezinho Araújo", com bananas do quintal.
Resolvido o menu, começamos a definir a lista dos outros convidados: Marisa e Pedro Moreira Salles, Dorrit Harazim e Elio Gaspari, todos de uma certa forma envolvidos na edição do "Terra". E os velhos amigos Patrícia e Helio Campos Mello, Marly e Thomaz Farkas, Diana Mindlin e seu filho Rodrigo.
E, para despertar uma certa preocupação no Franco, meu genro, e alegria em minhas filhas Isabel e Teresa (e acredito que em Satiko também), Chico Buarque. Havia poemas seus no livro, ele fora nosso colega na faculdade e acreditei que não deixaria de aparecer.
Na manhã daquele domingo, a expectativa era grande. O menu completo ficara no ponto, os convidados começaram a chegar e, numa de minhas corridas até o portão, tive a honra de receber Saramago.
Descemos até o terraço e comecei a observá-lo em sua imensa simplicidade e discreta deselegância. Óculos enormes, calças, se não me engano de tergal. E a camisa de um tecido tipo "volta ao mundo", com pregas nas mangas para encurtá-las, como muitas que meu pai usava.
Enquanto caminhava a seu lado até chegar à casa, já estava matutando como puxar uma conversa com o mestre. Sei muito bem que nessas situações sempre pinta aquele "branco" e queria me preparar para não ficar engasgando. Passou-me até pela cabeça se não deveria acelerar um discurso sem pontos nem vírgulas para homenageá-lo. Citar e comentar os títulos de seus livros pareceu-me óbvio e um tanto arriscado.
Felizmente, nada disso foi preciso. Meus amigos logo estabeleceram uma conversa informal, que eu tratei de animar servindo inúmeras rodadas de caipirinha de maracujá. Lembro-me de ter preparado pelo menos três para Saramago. Com o tempo, todos já o estavam chamando de José. E os assuntos eram os mais diversos e amenos: edição de livros, literatura, futebol. Não se falou em MST nem nada.
E o Chico? Não apareceu. Ficamos sabendo mais tarde que foi jogar futebol com Luiz Schwarcz, seu editor. Uma pena, ele não sabe o que perdeu.
Lá pelas tantas, Saramago se despediu. Acompanhei-o até o portão e aí, somente neste derradeiro instante, uma verdadeira vergonha para um fotógrafo, é que me veio a idéia de registrar sua visita. Corri até minha Leica, entreguei-a nas mãos do motorista que o havia trazido e ele fez a foto. Eu e o futuro Prêmio Nobel [1998] na pose clássica, um com o braço no ombro do outro. Guardo-a como uma preciosidade e a exibo de vez em quando.
A passagem de Saramago por nossa casa não deixou de ser inspiradora. Pedro, meu filho mais novo, de uma geração pouco afeita à leitura, resolveu encarar o "Ensaio sobre a Cegueira". Leu-o de uma enfiada e adorou.
Certa vez, em Nova York, Bruce Davidson, fotógrafo americano, segredou-me que em seu prédio morava um Prêmio Nobel, Isaac Singer. Fiquei impressionadíssimo. Mas hoje fico cá pensando: será que eles já bebericaram e almoçaram juntos?


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