São Paulo, domingo, 09 de outubro de 2011

Texto Anterior | Índice | Comunicar Erros

IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

A chave dos profetas

Refuta-se a opinião do padre Granado e exibe-se a ele o verdadeiro conhecimento da barbárie dos brasílicos

PADRE ANTÔNIO VIEIRA

A ponto de responder , em último lugar, aos autores alegados para a mesma opinião, devo iniciar pela ignorância invencível sobre Deus, na qual muitíssimos dos bárbaros brasílicos ainda se encontram, de sorte que como agimos a respeito da América hispânica, ou antes, castelhana, assim a respeito da lusitana, feita esta nossa mesma demonstração (na qual deve enfim resolver-se toda a questão), os fundamentos menos sólidos dessa opinião contra as testemunhas experimentais postas ante o autor e por ele rejeitadas serão breve, mas radicalmente destruídos.
Deve-se, portanto, supor como certo que os "índios" brasílicos ou o racional deles, por assim dizer, costumam ser divididos e distintos, de forma mais cômoda, principalmente em duas classes: a primeira é a daqueles que são denominados pela língua geral e são, a seu modo, mais polidos e têm aptidão para entender os mistérios cristãos, não, é verdade, em seu pleno conceito, mas não de todo rude. A respeito dos chilenses e dos salomões Botero observa, como indício da enorme ignorância (4 part. Relat. Univers. lib 3) que não sabiam contar além de cinco, na qual habilidade, contudo, os nossos levavam vantagem, pois estendem os seus números apenas até três. Sucedeu pela divina providência, como é lícito pensar piedosamente, que nem em tamanha carência de saber lhes faltasse com abundância o nome santíssimo da Trindade (no próprio batismo e fora dele) e a capacidade de entender e reverentissimamente invocá-lo.
A segunda classe é a dos outros que se chamam tapuias, por extremo bárbaros, sem domicílio, sem plantações, vagando por florestas e desertos, à maneira das feras, alimentando-se dos frutos que nascem naturalmente e saciando a avidez da fome e do ventre com a caça. Da humanidade destes até já se duvidou outrora, de sorte que foi preciso ser declarado pelos sumos pontífices e ser definido que eram animais racionais, não brutos. Como, portanto, poderiam estas gentes saber algo de Deus, quando desconheciam os povos por que fossem homens? Pela declaração de alguns (há em verdade confiabilíssimos capazes desta investigação) e por outros indícios confirmados por longa experiência, sabemos, quase com evidência, que nunca lhes veio à mente a mínima ideia de Deus, e isso antes que tivessem ouvido o quer que fosse a respeito da divindade. Mas o que acontece após uma frequente catequese sobre Deus? Não só demonstram sua ignorância invencível, antes dela, como a manifestam de todo insuperável depois dela, por muitos dias e até meses. Em verdade não fazem nenhuma ideia acerca do que ouviram (para usar uma frase dos missionários). Como, afinal, podem entender os discursos elegantes de um fato longínquo, quando estamos sujeitos a nos enganar, ao julgarmos outros homens do nosso meio. Como deveríamos primeiro conhecê-los e depois julgá-los. Contra estes testemunhos oculares, uma coisa se apresenta, a partir do Sap. C. 13, cujas palavras devem ser necessariamente repetidas pelo autor; são estas: "São porém vãos todos os homens, nos quais não se acha a ciência de Deus e os quais, pelas coisas boas que se veem, não puderam conhecer aquele que é, nem considerando as suas obras reconhecer quem era o artífice". Até aqui, ele; mas já numa questão anterior mostramos que encontrar o criador através das criaturas e conhecer o artífice pelas obras pertence aos linces, não às toupeiras, isto é, aos homens estudados nas disciplinas das ciências ou superiores, ao menos, pela grande acuidade do talento, mas não aos rudes e por extremo bárbaros de que falamos, criados nas florestas, entre animais selvagens, nem muito dessemelhantes deles.
Mas se as próprias palavras forem ponderadas com justeza, a respeito de todos estes que desconhecem a Deus, temos manifestamente provada ou decerto descrita uma ignorância invencível. O que dizem, pois?
"Pelas coisas boas que se veem não puderam", dizem, "entender aquele que é." Certamente, se naquelas coisas que se veem, não puderam conhecer aquele que é, isto é, Deus, é claro que o ignoram invencivelmente, pois que outra coisa é ignorar invencivelmente, senão ignorar e não poder saber? E o que é uma ignorância invencível, senão uma ignorância com impotência e incapacidade de saber aquilo que se ignora? Dirão ser aqui o mesmo não podido e não ter querido, mas essa exposição não constrói, senão destrói o texto, principalmente quando a versão grega reza não realmente não ter querido, mas expressamente não tivesse querido. A razão é que aquelas palavras são proêmio das coisas que se vão dizer, ao longo de três capítulos inteiros que se seguem, nos quais são descritos com esmero todos os tipos de ignorar a Deus. O primeiro lugar é devido àquela ignorância em que se ignora inocentemente a Deus e não ofende. Mas se há insistência em que as palavras aí não se sustentam, sustenta-o, contudo, o autor com quem tenho a ver, já que acima o mesmo texto é por ele referido. Mas avancemos.
As palavras que se seguem àquelas são: "Mas reputaram por deuses governadores do universo, ou o fogo, ou o espírito, ou o ar agitado, ou o giro das estrelas, ou a imensidade das águas, ou o Sol, ou a Lua".
Donde fica patente que por estas que se seguem devem ser explicadas as que precedem; digo mais, não só devem ser explicadas, como estar concordes, já que ambas foram claramente expressas e não podem ser contraditórias. Dado, porém, sem controvérsia, que umas e outras palavras devem harmonizar-se entre si e que tudo deve ser entendido a respeito dos que cultuavam os ídolos, nada aproveita daí a opinião contrária, nem pode inferir ou lançar alguma coisa contra os brasílicos. Estes, por certo (talvez os únicos nessa feliz ignorância), não cultuam ídolos, nem se encontraram entre eles, desde o início, vestígios dessa falsa latria. Daí que, com bela e verdadeira observação, foi notado por antigos historiadores que não havia no idioma deles estas três letras F, L, R, como se Deus, que ensina e distribui todas as línguas, tivesse querido declarar, por arcano desígnio, que esses povos, como realmente são, não tinham nem fé, nem lei, nem rei. Donde se conclui que o supracitado texto ou, numa primeira parte, prova a ignorância invencível em favor dos brasílicos, ou, numa segunda, nada prova contra eles.
Resta apenas o tema do mesmo proêmio: "São vãos todos os homens", o que pode, com extrema propriedade, ser aplicado aos brasílicos, ou porque, aos brasílicos, digo, sobre os quais é verdade o que diz o salmo 23,4: "Receberam em vão a sua alma"; ou pelo que pensou, com imaginação, sobre os sórdidos rebanhos, um historiador da natureza, que lhes foi dada uma alma, por brincadeira. E o que é ter uma alma em vão, senão ser dotado de uma alma racional e, contudo, não poder raciocinar? Esta necedade de mente a tal ponto é inata nos bárbaros brasílicos, que das inúmeras razões pelas quais ataca os adoradores dos ídolos, ao longo de três capítulos inteiros, nenhuma quase há que chegue ou alcance o entendimento deles, como ficará claro ao leitor, a partir do que foi dito.


Texto Anterior: Arquivo Aberto: O português no fim do mundo
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.