São Paulo, domingo, 10 de abril de 2011

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CRÍTICA

O canibal

Literatura remixada de David Shields

RESUMO
Em seu "manifesto" literário "Reality Hunger", David Shields vale-se despudoradamente de trechos recortados de outros autores, numa colagem que pretende anunciar o fim do romance tal como o conhecemos. Ao profetizar uma fabulação devorada pela realidade, Shields negligencia a complexidade do debate que propõe.

CAETANO W. GALINDO
DAVID SHIELDS ACHA que a ficção simplesmente não faz mais o sentido que um dia fez. E sustenta que esse diagnóstico serve para toda a cultura atual. Nada pessoal. Estamos todos viciados em realidade. E é a isso que se dedica o seu "Reality Hunger" (fome de realidade) [Random House, R$ 55, 224 págs.], lançado em 2010. Um livro curioso.
Curioso primeiro por ter como subtítulo "Um Manifesto". Ele não descreve, comenta ou analisa. Seu objetivo é prescrever, dar as cartas, mostrar a cara dessa nova produção artística baseada na realidade, que ele já considera central. Um resenhista chegou mesmo a dizer que chamar o livro de "manifesto" é um eufemismo da mesma ordem que chamar uma bomba de "arma".
Ele quer fazer barulho.
Suas afirmações são categóricas, violentas. E isso ainda se vê potencializado pela adoção de uma retórica muito cara aos mais famosos dos "manifestos": a fragmentação, o aforismo, a sentença lapidar. Propostas cruas, em pedacinhos fáceis de engolir.
Mas o livro tem ainda outra característica singular. Mais da metade de seu texto simplesmente não é de Shields. Ele recorta, edita e cita dezenas de outros autores, textos publicados, entrevistas, canções... Mas cita sem qualquer distinção. Sem discriminar o próprio do alheio.
É corajoso, afinal. E, corajoso, é coerente.
Pois se o livro defende a apropriação da realidade e a perda do medo de abraçar (em vez de imitar) o mundo, ele estende de modo muito consequente essa atitude ao domínio da arte. Ou seja, a arte (mesmo a ficção) do passado passa a integrar nossa realidade e, como ela, deve ser canibalizável.
Shields parte do princípio de que já está vivendo no mundo que descreve. Seu livro não apenas prescreve, ele define pelo exemplo. Mostra-se enquanto artefato composto segundo as regras mesmas que preconiza.

GENTE DE VERDADE A verdadeira maré televisiva pós-Endemol, tomada por todos os formatos possíveis de "reality shows", parece ser um belo argumento para dar vigor à hipótese de Shields. Porque, não se engane, mesmo que você não assista aos espetáculos de confinamento no modelo "Big Brother", é difícil que um ou outro desses programas não chegue a você. Transformações, a requentada fórmula do concurso de calouros, experts que visitam lares (ou cachorros) problemáticos: eis algumas maneiras diferentes de vermos "gente de verdade" na tevê. De nos vermos.
E parecemos de fato querer cada vez mais.
Talvez nem estejamos assim tão distantes do mundo descrito em "The Suffering Channel", último conto do americano David Foster Wallace (1962-2008). Ali, uma cadeia de tevê (brasileira, por sinal) se especializa em canais de "realidade", criando como seu produto mais radical o "canal do sofrimento", cuja programação se compõe apenas de clipes de câmeras cirúrgicas, de segurança, de clínicas de aborto e consultórios odontológicos. Desde que sejam reais.
Mas por mais que o diagnóstico de Shields possa parecer acertado em tempos em que Ridley Scott monta um filme todo com clipes do YouTube, em que a web 2.0 nos transformou a todos em espectadores-produtores, e em que o culto às celebridades musicais ultrapassa o culto à música que elas lançam, ele na verdade abre mais discussões do que encerra.
E é claro que a primeira delas, no domínio da literatura, é a da complicada distinção entre real e fictício. De Jorge Luis Borges a Thomas Pynchon, vários autores já nos disseram que toda literatura é biográfica. James Joyce e Marcel Proust, os dois maiores nomes da tradição que Shields julga agora superada, foram, acima de tudo, prosadores de suas próprias vidas.
É certo que agora parece haver uma mudança de ênfase. Mas é no mínimo curioso pensarmos que a produção memorialística de um Dave Eggers, por exemplo, se distingue mais da tradição romanesca pelo simples truque que é escrever "memória" na capa do que por qualquer característica fundamentalmente diversa.
E se "O Filho Eterno", de Cristovão Tezza, não se chamasse "romance"? E se "O Ano do Pensamento Mágico", de Joan Didion, se chamasse romance? E "A Educação de Henry Adams"?
Se é para falar de um embate entre real e fictício, continua aparente que Shields pôs o dedo em algo grande, mas definitivamente a conversa é mais complexa do que ele parece fazer supor.

APROPRIAÇÃO A parte mais instigante de seu livro, no entanto, pode ser a discussão da tradição da apropriação, especialmente entre os músicos, que culmina com a atual querela do "mash-up".
Pois quando o músico que se apresenta como Girl Talk vende seus discos, ele não vende uma só nota que tenha gerado. Suas canções são todas formadas de recortes e retalhos de gravações pré-existentes, por vezes editados e reintegrados de maneira a ficar totalmente irreconhecíveis.
Em outra chave, Hans Zimmer declarou ter "composto" boa parte da trilha sonora do recente "A Origem" a partir de uma versão digitalmente abrandada da gravação de Édith Piaf para a canção "Non Je ne Regrette Rien".
Trata-se, em boa leitura shieldiana, de criação a partir do patrimônio comum. Da arte que dele faz parte. É criação, é "real", precisamente por não ser "original" ou "inventada", apesar de ainda inventiva.
O que, no entanto, a discussão musical deixa mais claro é o quanto esse servir-se da realidade esbarra, entre outras coisas, na mesma realidade. Na vida real, povoa-da por muito mais advogados do que artistas.
Afinal, não custa lembrar que os corajosos propósitos citacionistas canibalizantes de Shields foram frustrados pelo departamento jurídico de sua editora que, depois de seguidas idas e vindas, o convenceu a acrescentar uma envergonhadíssima lista de fontes no final da obra.
E, como bem sabe Shawn Fanning, o polêmico criador do site de compartilhamento musical Napster, na música, as quantias (e, com elas, a ganância) são muito maiores. Estima-se que o Girl Talk teria que pagar algo em torno de US$ 4 milhões em copyright para liberar um de seus discos. E esse dinheiro, como se sabe, não iria primariamente para os autores das canções recortadas, mas para as editoras que detêm os direitos sobre elas.
Na literatura, talvez não seja assim. Ainda.
Mas cruzar a fronteira da "realidade" já rendeu a mais de um escritor seus problemas jurídicos. James Frey, por exemplo, já foi processado por, digamos, "colorir" certos fatos em um livro que, se não fosse anunciado como "memória", permaneceria inimputável.
E agora o próprio Shields acabou se vendo imerso em um paradoxo da realidade, quando um cidadão decidiu colocar seu livro inteiro disponível online. Que cara ele teria para reclamar? Já que é o que ele inclusive preconiza?
E mais ainda, o sujeito, na contramão do que o autor declara terem sido suas intenções, incorporou ao texto as fontes de cada uma das citações, descaracterizando assim em boa parte o projeto original. Shields, até onde se sabe, não reclamou do site, adequada e ironicamente chamado Reality Hunger Remixed.
Coerente, afinal, ele é.

PRECURSORES A explosão pode demorar. Mas se trata, sim, de uma bomba.
E a recepção do livro na Inglaterra e nos Estados Unidos já vem gerando um debate mais do que acalorado. Porque Shields parece ter produzido um texto que -mesmo não sendo a voz no deserto que às vezes parece acreditar incorporar- pinta um retrato extremamente sugestivo e intrigante de um conjunto de fenômenos aparentemente díspares que está dando o tom de uma parte cada vez mais significativa da produção artística (ou de entretenimento) dos nossos dias.
É claro que as artes plásticas, desde os tempos das colagens modernistas até os tubarões e caveiras do inglês Damien Hirst, estão muito mais adiantadas nesse campo (um fato lembrado pelo próprio Shields). É claro também que, como para qualquer "nova" característica da produção artística de um determinado momento, encontraremos exemplos e precursores em vanguardas de diversas fases e em artistas isolados de todos os tempos e cantos: de Santo Agostinho a Shakespeare e Graciliano Ramos.
É evidente também que o romance, como o cinema e a música, não vai morrer. Mas cada um deles, parece, terá de resolver não poucos problemas se quiser se adequar a esse "mundo". Um mundo em que a mais recente moda nos pubs ingleses são noites em que qualquer pessoa se apresenta diante das outras, desde que se comprometa a falar sem notas prévias -e a contar uma história verdadeira. Sua.
O mundo das webcams.
Um mundo que quer se ver e autofagocitar.
Um mundo, talvez, radicalmente século 21 e, ao mesmo tempo, nada diferente de uma versão do século 19 de Oscar Wilde: um selvagem Calibã obcecado por ver seu rosto no espelho.

"Ele recorta, edita e cita dezenas de outros autores, textos publicados, entrevistas, canções... Mas cita ?sem qualquer distinção, sem discriminar o próprio do alheio"

"Pois quando o músico que se apresenta como Girl Talk vende seus discos, ele não vende uma só nota que tenha gerado; suas canções são todas formadas de recortes e retalhos"


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