São Paulo, domingo, 10 de julho de 2011

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

A aliteração

Lisboa, 2010

JÚLIO CASTAÑON GUIMARÃES

Foi por intermédio de um grande amigo, o artista plástico Arlindo Daibert (1952-1993), que, em função de um trabalho acadêmico, ainda na década de 80, vim a conhecer Saudade Cortesão Mendes, viúva do poeta Murilo Mendes (1901-1975). E foi porque ela tinha grande consideração pelo Arlindo que me atendeu com todo interesse e amabilidade.
Resultaram ao longo dos anos numerosas passagens por sua casa, em Lisboa, para depois regularmente se ir a algum restaurante. Entre suas muitas gentilezas, recebi dela um exemplar de um livrinho intitulado "Il Natale", antologia de poemas organizada por Mary de Rachewiltz (a filha de Ezra Pound) e Vanni Scheiwiller, o editor. Publicado em Milão na década de 60, sob a Insegna del Pesce d'Oro, o volume inclui um poema de Murilo.
No entanto, em consonância com sua discrição, mudou logo de assunto, como se isso não tivesse a menor importância diante de minha menção certa vez à publicação, em 2000, de alguns de seus poemas tardios ("Notas Mínimas", ed. La Librericciuola), em edição especial com gravuras de Achille Perilli.
No mesmo tom, relutou em fazer-me uma dedicatória em seu livro "Pássaro do Tempo" (Imprensa Nacional, 200 págs.); acabou escrevendo, com certo coquetismo, que o fazia "envergonhadamente" e que, se alguma coisa ali valia a pena, era o fato de o livro ser dedicado a Murilo.
Entre os que a conheciam, corriam histórias sobre sua preocupação com a elegância e mesmo sobre certa afetação, o que ela às vezes alimentava, como ao dizer a antigos conhecidos que a queriam rever que isso não seria possível porque o tempo passara, e ela não podia mais ser vista. Nem sempre, porém, se lembra que ela traduziu um conjunto de poemas de Murilo para o francês, no volume publicado pela Seghers em 1957, "Office Humain" (60 págs.).
Além disso, traduziu para o português autores como Eliot, Shakespeare, Pratolini, Camus. Nos anos 40 e 50, no Brasil, colaborou com o suplemento "Letras e Artes" e escreveu com regularidade na "Tribuna da Imprensa". Aqui publicou um primeiro livro, "O Dançado Destino" (Livros de Portugal, 84 págs.), com belos poemas elogiados por Manuel Bandeira.
Teve uma vida de viagens, primeiro com o pai exilado, o historiador português Jaime Cortesão, e depois com Murilo Mendes. Dedicou-se ciosamente a cuidar do legado de ambos. Sobre Murilo podia contar histórias sem fim, assim como podia discorrer sobre encontros em Roma com o compositor Giacinto Scelsi (1905-1988).
Discretíssima ou levando ao extremo sua dose de vaidade, recusava-se, porém, a falar de si, a deixar algum testemunho, dando a quem tentava obtê-lo respostas breves, evasivas e prontas.
Em 2010, pouco após a publicação de seu último livro, "O Desdobrar da Sombra" (Roma Editora), e pouco antes de seu falecimento, aos 97 anos, ainda a visitei, quando estava já não mais em seu apartamento da travessa da Palmeira, mas numa casa de repouso; apesar das dificuldades físicas, vestia-se com apurada elegância e mantinha o espírito de sempre.
No correr da conversa, tendo eu mencionado sua tradução de Eliot como "Morte na Catedral", ela de imediato retrucou, dizendo enfaticamente que o título não era esse; que talvez fosse o mais correto, mas que havia preferido "Crime na Catedral" para deixar uma sugestão de mistério e "pela aliteração, pela aliteração".
Mais do que a demonstração de memória e lucidez, se poderia retrospectivamente perceber que aquele momento fazia da "aliteração" não mera repetição, mas imagem de um tempo e de seu empenho de persistência. Está belamente retratada em desenhos de seus amigos Arpad Szenes (1897-1985) e Vieira da Silva (1908-1992), bem como em alguns poemas de Murilo Mendes.


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