São Paulo, domingo, 11 de setembro de 2011

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

O último clique do último filme
Nova York, 11 de setembro de 2001

Teté Ribeiro/Folhapress
Cobertas de poeira, as botas de Sérgio Dávila e as sandálias de Teté usadas em 11 de setembro de 2001

TETÉ RIBEIRO

Em setembro de 2001, ainda não havia câmeras nos celulares. Fazer fotos era complicado.
Começava com lembrar de pôr a câmera na bolsa, aí comprar filmes, mandar revelar e não perder o papelzinho arrancado da ponta do envelope para retirar dias depois. E a frustração final: ver imagens sempre iguais, aquele sorriso algo forçado.
Essa era minha experiência até aquela terça-feira. Já morava em Nova York havia um ano e meio e, apesar de a vida ter dado uma bela reviravolta, nenhuma foto minha capturava isso.
Então surgiu no mercado uma novidade: um filme chamado Advantix, que não enrolava na hora de botar na câmera e tinha foco melhor, luz mais bonita e tal.
Quando fui cutucada naquela manhã com a estranha notícia de que um monomotor tinha atingido um prédio em Wall Street e a Folha pedia que eu ajudasse na cobertura, peguei minha câmera, e, prevenida, um filme extra.
Descemos juntos, eu e o Sérgio, correspondente do jornal em Nova York à época, as escadas do prédio na esquina da rua 12 com a 3a Avenida, vestidos às pressas com a mesma roupa da noite anterior.
Eu, de calça cargo bege, camiseta preta, sandália preta com salto plataforma. Ele, todo de preto e com a bota que não tirava do pé. Nem levei bolsa, botei o filme extra no bolso lateral da calça e lá fomos nós, atrás de uma loja aberta que pudesse recarregar o celular pré-pago (como eram quase todos).
Na rua, o clima era estranho, mas ainda não muito. As primeiras apostas davam conta de que só podia ser obra de um playboy sem noção pilotando o monomotor da família (em 2001, não era todo playboy que tinha avião). Eu tinha um foco naquela manhã: ia fotografá-lo naquela reportagem e, depois, se ficasse bom, pediria que ele fizesse o mesmo comigo.
Então deixava que ele andasse na minha frente, aí preparava o quadro e gritava: "Sér-jô!", ele virava e eu clique, clique. Aí dava uma corridinha e o alcançava de novo. Quando ficou claro que nenhuma loja ia abrir, nenhum táxi ia parar e o metrô não funcionava, o jeito foi andar até a ponta mais ao sul da ilha. Uns 20 quarteirões, no mínimo. E um segundo avião acabava de atingir a segunda torre. Não podia mais ser um acidente. As ruas estavam cheias, as sirenes dificultavam a conversa.
O trajeto pela 4a Avenida, que permitia que a gente visse os dois prédios com aquele chapéu de fumaça, podia ser feito em 20 ou 30 minutos. Mas não naquela situação, com um mar de gente vindo na direção contrária. As fotos que não parei de fazer viraram mais do que um projeto de suvenir.
Clicamos as duas torres em chamas. Depois, uma torre só e a montanha de fumaça. E por fim o bairro e os arredores sem o World Trade Center, cobertos pela poeira grossa, que fez sumir as calçadas e todas as cores. Era tudo cinza, o chão parecia uma praia, o horizonte e as pessoas eram esculturas de areia.
O filme acabou. Botei o novo na câmera, o usado no bolso. Diante de fatos inacreditáveis, tendo a focar nos detalhes. E, àquela altura, não tinha ideia do que acontecia ao meu redor. Ninguém tinha.
A plataforma preta machucava o meu pé e decidi tirar, já que o chão havia ficado estranhamente macio. Ele foi até o local que ganharia o nome de Marco Zero. Eu, asmática, não consegui. Quando cheguei em casa, nem pensei em limpar a sandália, louca para ligar na CNN e entender de novo o mundo.
No fim da tarde ele chegou, olhos arregalados, coberto de pó. Tirou a bota antes de entrar, mas deixou pegadas mesmo assim. Larguei os sapatos no chão da sala, peguei a câmera -e clique.
O filme começou a rebobinar sozinho, outra das vantagens do tal Advantix. Não tinha mais nenhum, nem precisava. As imagens estavam todas comigo.


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