São Paulo, domingo, 12 de junho de 2011

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ARQUIVO ABERTO

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Arquivo Pessoal
O escritor Cristovão Tezza (de boina, ao centro) com a mãe e os irmãos, em Lages (SC)

O duplo

Lages, 1955

CRISTOVÃO TEZZA

Para Elin, João, Vera Lúcia e Vicente

HÁ 56 ANOS, alguém tirou esta fotografia. Estou ali, de boina, lutando contra o sol, pés cortados, mãos tímidas. Tanto tempo depois, não consigo mais ver o fotógrafo. O menino olha para mim, interrogativo. O espaço se perdeu, o tempo se apagou. Não lembro nada. Posso sonhar que não sou eu ""em algum momento, o menino foi substituído por alguém que agora, diante do computador, contempla o pequeno estranho, de quem usurpei a vida.
Dizem que algumas pessoas podem se recordar de fatos acontecidos já no segundo ano de vida. São seres que rapidamente se apoderam de si mesmos, recortam-se no espaço, assumem o tempo. No meu caso, não. Custei a nascer, e a prova é que só vim ao mundo, de fato, alguns anos depois desta foto, quando, pelos meus próprios olhos, afinal, entrei na história.
Por enquanto, trata-se de um enigma. A imagem atesta que eu existia antes de saber e propõe um deciframento que me livre da amnésia. É nitidamente uma família, como reza a cartilha: a mãe, os quatro filhos, em agrupamento defensivo e orgulhoso. Há uma estética instintiva na composição.
A menina chega a inclinar a cabeça em direção ao centro, como o mais velho. No caso deste, sente-se um laivo de contragosto, a mão esquerda no bolso. Os vincos da calça comprida, o recuo tenso do tórax, tudo indica alguém que assume um posto para o qual não está inteiramente maduro, mas parece disposto a enfrentar. Ele dá a impressão de saber que o mundo é sombrio, mas quer demonstrar que não tem medo. E algum sopro na fotografia indica que ele deseja se desgarrar dali.
A única menina tem um laço no cabelo e uma lancheira atravessada no peito. Que horas seriam? As sombras do rosto dizem pouco ""ela está fustigada pelo sol, busca proteção no escuro que a envolve e talvez queira ir logo para casa. À espera da foto, sem reclamar, coloca-se à margem, mas curiosa. Ela não quer se separar. O menino do meio também tenta se proteger do sol, mas não deseja se esconder atrás da mãe. Não teve tempo de se compor, como gostaria ""o clique do fotógrafo pega-o a meio caminho, ainda que a curva do braço abra um breve parêntese que se fecha com o braço do irmão mais velho, numa escrita inclinada.
No centro, a mãe. É uma presença obrigatória, o eixo da imagem. Ergue-se sobre todos e olha fixamente o olhar da máquina. Ela sabe se colocar no espaço e na fotografia. A vaidade está nos detalhes, nos brincos, na simetria das formas do preto, do branco e do cinza, na postura do braço, uma concentrada consciência de si mesma, que não se perde sob a força do sol.
Esboça-se um sorriso, mas conserva-se o fio de tensão que mantém o seu mundo em pé. Ao mesmo tempo, o passo se adianta, no instinto da composição das formas, e também no impulso inconsciente do desafio: é preciso conquistar e assumir o espaço que se ocupa. Há uma discreta beligerância atravessando o espírito da imagem, que os filhos parecem assimilar sem compreender.
A ausência do pai também revela-se no retrato. Imaginei que fosse o fotógrafo, mas me dizem que não. Uma ausência que é uma estranha profecia ""o pai morreria 45 meses depois, num acidente inverossímil de lambreta a poucos metros da fotografia, a cidade pacata, um homem cruza a rua sem olhar para os lados, parece uma rua de pedestres, um ônibus, alguém nos observa de longe, prédios difusos, céu e chão têm o mesmo tom de branco que se espelha com o negro da parede enorme, num equilíbrio involuntário de formas, a diagonal barroca onde nos equilibramos.
O pai não está lá, mas foi preciso que isso se transformasse em verdade para que o menino que hoje contemplo entrasse na história e absorvesse enfim o poder irredimível do tempo.


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