São Paulo, domingo, 12 de dezembro de 2010

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CRÍTICA

Singulares excessos

A festa linguístico-poética do "Catatau" de Leminski

RESUMO
Ícone da literatura experimental no Brasil, o romance "Catatau", de Paulo Leminski, ganha nova edição e adaptação para o cinema, dirigida por Cao Guimarães. Críticos festejam o lançamento do filme e reiteram a singularidade do livro, tanto do ponto de vista de linguagem como da representação literária do Brasil.

JOSÉ GERALDO COUTO

TINHA UM "CATATAU" no meio do caminho. Tinha, não; tem. Trinta e cinco anos depois de sua erupção, o "romance-ideia" de Paulo Leminski (1944-89) ainda é um corpo estranho a ser devidamente decifrado e assimilado ao organismo da literatura brasileira.
Alheio ao fato de ter morrido há mais de duas décadas, Leminski segue "falando pelos calcanhares", para usar uma expressão bem sua, presente no "Catatau". O livro acaba de ganhar, ao mesmo tempo, sua quarta edição [Iluminuras, 256 págs., R$ 44] e uma elogiada "transcriação" cinematográfica, o filme "Ex Isto", de Cao Guimarães.
Parece que a vocação desse "Catatau" é a de se expandir lentamente em círculos concêntricos, feito as marolas formadas por uma pedra atirada no lago. Mas nada indica que esteja próximo o dia em que as massas haverão de comer esse biscoito fino.
Para o crítico e professor de ?teoria literária na Unicamp Alcir Pécora, a "exuberância vertiginosa" do livro "não o torna fácil de ler". Apesar da crescente fortuna crítica que vem se constituindo em torno da obra, ela ainda é solitária, segundo Pécora. "Eu diria: é ainda mais solitária do que foi à sua época, como gesto decidido em direção ao risco, à experimentação formal, linguística, ao humor da língua, ao problema do sentido e da radicalidade da experiência artística."

DESCARTES Tudo começou com o estalo de um professor de cursinho, durante uma aula sobre a ocupação de Pernambuco pelos holandeses, no século 17: e se o filósofo René Descartes (1596-1650) tivesse vindo ao Brasil com Maurício de Nassau?
A ideia poderia ter parado por aí, como uma divertida e ociosa especulação, se o tal professor não fosse Paulo Leminski, poeta "de uma imaginação de linguagem e uma cultura literária fenomenais", no dizer de José Miguel Wisnik, professor de literatura na USP, músico e ensaísta.
A primeira versão veio sob a forma de conto, que disputou em 1968 um concurso literário no Paraná e só não venceu por uma trapalhada confessa do júri. Nos sete anos seguintes, Leminski desenvolveu sua fecunda ideia até transformá-la no inclassificável fluxo verbal de "Catatau".
No livro, o entrecho é reduzido ao mínimo: no horto tropical do palácio de Nassau em Olinda, estupefato diante dos estranhos espécimes da fauna e da flora brasileiras, Descartes vê sua lógica oscilar e ruir, seus conceitos derreterem sob o calor, enquanto espera por Krzysztof Arciszewski, militar polonês a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, que lhe deverá "explicar o Brasil".

PERPLEXIDADE Narrado em primeira pessoa pelo próprio René Descartes, o texto testemunha sua perplexidade , ou, nas palavras do próprio Leminski, "o fracasso da lógica cartesiana branca no calor".
"Este mundo é o lugar do desvario, a justa razão aqui delira", queixa-se o filósofo. E um pouco adiante: "Duvido se existo, quem sou eu se este tamanduá existe?". Antes disso, logo na terceira página, ele confessara: "Bestas geradas no mais aceso do fogo do dia... Comer esses animais há de perturbar singularmente as coisas do pensar. Palmilho os dias entre essas bestas estranhas, meus sonhos se populam de estranha fauna e flora: o estalo de coisas, o estalido dos bichos, o estar interessante: a flora fagulha e a fauna floresce... Singulares excessos...".
À crise do pensamento corresponde uma crise da linguagem, e as reflexões filosóficas se alternam no texto com citações eruditas, torções de ditados populares e frases feitas e trechos de pura música (ou cacofonia) verbal: aliterações, onomatopeias, trocadilhos, neologismos, aglutinações, mistura de línguas. Esses momentos de "enlouquecimento" do texto em geral são motivados pela entrada em cena do estranho Occam, que o próprio Leminski definia como "o primeiro personagem puramente semiótico, abstrato, da ficção brasileira".
Algumas expressões utilizadas pelos primeiros comentadores dão uma noção da natureza da obra e de seu impacto: "selva de palavras" (Leo Gilson Ribeiro), "rede de signos" (Antonio Risério), "porre verbal" (Ivan da Costa), "leminskíada barrocodélica" (Haroldo de Campos), "floresta sígnica" (Carlos Verçosa).

FILIAÇÃO Para buscar uma filiação literária, ou uma aproximação mínima com o já conhecido, falou-se no parentesco com outras experiências radicais, como o "Finnegans Wake" de James Joyce e as "Galáxias" de Haroldo de Campos. Leminski estaria num cruzamento entre concretismo, poesia marginal e antropofagia, esta última "revisitada como vanguarda pop" (nas palavras de Pécora), à maneira do que faziam os tropicalistas.
Três décadas e meia depois, o que restou da estranheza inicial de "Catatau"? Como é a sua interlocução com a literatura brasileira contemporânea? Com a palavra, os especialistas.
"Não acho que o livro seja ainda um objeto especialmente estranho", diz Pécora. "Compreende-se o seu lugar literário, a sua estrutura formal e o seu propósito básico. Mas ele não foi suficientemente estudado em seus jogos particulares de significação, em seu repertório de invenção, em suas escolhas de elocução."
Wisnik concorda: "Não me parece um livro datado: permanece como um enigma vivo". Paradoxalmente, porém, para o professor "um tipo de aposta como esta ficou mais e mais 'inatual': desde então se busca menos um compromisso total com a literatura, e menos um compromisso total com a linguagem, como nesse romance em que parece não acontecer nada".
Com outros termos, Alcir Pécora vai na mesma linha: "Na prosa contemporânea brasileira, quase tudo é tão acomodado nos parâmetros da representação realista, que o 'Catatau' ainda não faz feio como desafio artístico".

CINEMA O que dizer então do desafio de levar à tela de cinema essa obra irredutível e solitária? Pois foi nessa aventura que o cineasta Cao Guimarães resolveu mergulhar ao aceitar um convite do Itaú Cultural para fazer um filme em torno da literatura de Leminski.
Depois de ler os poemas e parte da fortuna crítica do escritor, Guimarães se deparou finalmente com o "Catatau". "Era uma obra que me seduzia como poucas, mas sem se entregar completamente", diz. Para lê-la, o cineasta inventou um "método de leitura": "Três ou quatro páginas por dia em voz alta e geralmente de pé!".
Mas como filmar um livro praticamente sem enredo e parco em matéria de descrições? "Curiosamente, o que me levou a transcriar o 'Catatau' para o cinema não foi a força de suas imagens (fanopeia, segundo Ezra Pound), mas a força de sua melodia (melopeia) e de sua ideia matriz (logopeia). Um filme não precisa necessariamente ir na direção das imagens, elas podem vir na direção do filme."
O diretor só precisou de um ator para o papel do filósofo, uma pequena equipe técnica "e principalmente criar um processo de imersão, por exemplo uma viagem a determinadas regiões que de uma forma ou de outra tinham algo a ver com o universo do livro".

PAIXÃO O primeiro passo foi contagiar o ator João Miguel (de "Cinema, Aspirinas e Urubus", "Estômago" e "O Céu de Suely") com a paixão pela leminskíada, o que foi feito por meio de leituras a dois, em voz alta.
Sem nenhum compromisso com a cronologia ou com o rigor da reconstituição histórica, Guimarães filmou João Miguel/Descartes imerso na exuberante natureza tropical, no burburinho do Recife atual e, significativamente, em Brasília, talvez o exemplo vivo da tentativa (delirante?) de implantar uma certa ordenação cartesiana no caos dos trópicos.
O resultado é um filme sui generis, que, embora tenha agradado na última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, não tem previsão de entrar em circuito comercial. Para o sociólogo Laymert Garcia dos Santos, professor da Unicamp, "'Ex Isto' é um marco no cinema brasileiro, como foi o cinema de Glauber Rocha, porque é uma obra-prima de uma arte tropical, aquela que expressa à perfeição nossa 'diferença específica' em relação às outras culturas".
Para ele, "Cao Guimarães demonstra ser possível se desinvestir do racionalismo cartesiano e operar uma passagem para um pensamento que dissolve a dicotomia corpo/espírito, afirmar um pensamento incorporado, se se pode dizer assim".
"Achei o filme de uma extraordinária poeticidade", ecoa José Miguel Wisnik. "Ele capta momentos da imaginação poética do livro e os reinventa, como nas cenas e imagens de Descartes em Recife, ou na belíssima passagem da teia de aranha."
Wisnik, porém, sente falta no filme do jogo entre as figuras de Occam e Arciszewski -em resumo, o que vem para confundir e o que vem para explicar, em cujo movimento pendular estaria um dos motores de "Catatau", a "alegoria do embaralhamento da informação e da entropia no texto" .
Em tempo: Arciszewski chega bêbado e não explica nada. O Brasil, como o "Catatau", segue sem explicação.

Tudo começou com o estalo de um professor, durante uma aula sobre a ocupação de Pernambuco pelos holandeses, no século 17: e se o filósofo Renée Descartes tivesse vindo ao Brasil com Maurício de Nassau?

Como filmar um livro sem enredo e parco em matéria de descrições? "Um filme não precisa necessariamente ir na direção das imagens, elas podem vir na direção do filme", diz Guimarães


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