São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2011

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ARQUIVO ABERTO
Memórias que viram histórias

Eu queria ser igual a eles

Palo Alto, 2000

ALBERTO MUSSA

O DESTINO É TÃO imponderável que na maioria das vezes começa a exercer o seu império em incidentes mínimos. Lembro que comecei a ser quem sou - ou a seguir os caminhos do que deveria ser - quando ganhei de presente, da minha avó alagoana, um berimbau.
Não daqueles coloridos, enfeitados com fitinhas do Bonfim. Era um de verdade, de pau-pereira, na cor do verniz. Meu pai não aprovou o instrumento, por considerá-lo muito primitivo. E eu poderia tê-lo posto de lado. Mas a pirraça me levou a procurar um mestre, para aprender a tocar.
Não sei descrever precisamente o fascínio daquele primeiro contato com a sonoridade africana. Em pouco tempo, além das rodas de capoeira, eu já andava em terreiros de umbanda, frequentava blocos e escolas de samba. Tocava berimbau, cuíca e atabaque. E queria ser sambista, quando crescesse.
Quando subia o morro, eu era o "branco" (detestava ser chamado assim), o filho rico do juiz. Uma vez -eram os tempos da ditadura- estávamos batendo um samba na subida do Andaraí quando a polícia chegou e prendeu todo mundo. Prendeu todos, menos eu.
Nesse dia, tive a estranha consciência de um sentimento até então latente: eu queria ter ido no mesmo camburão, queria ser igual a eles.
Essa paixão pelas "coisas" africanas passou a dominar minha vida intelectual: minha monografia de graduação foi sobre estereótipos de negro na literatura brasileira; e minha dissertação de mestrado tratou do papel das línguas africanas na história do português do Brasil.
Durante minha curta experiência acadêmica, tive várias discussões sobre um problema que me parece recorrente nos escritores do Brasil: o ponto de vista branco. Mesmo quando tratada com simpatia, a personagem negra é raramente sujeito do seu próprio discurso, é sempre observada por alguém que está de fora.
Quando publiquei meu primeiro livro, "Elegbara" (um dos nomes do orixá Exu), recebi um convite para participar de um debate sobre cultura negra no Brasil. Quem me fez o convite não me conhecia; e me lembro ainda que, a certa altura do diálogo, por telefone, ouvi a pergunta:
- Você é africano?
Respondi que não, temendo decepcioná-lo. Ele insistiu, querendo saber de que país da África tinham vindo meus ascendentes. A indagação não era totalmente descabida, porque "Mussa" é um nome comum em todo o mundo muçulmano, que inclui parte da África. Expliquei que meus avós eram apenas libaneses, mas não tive coragem de dizer que nem chegavam a ser morenos. O convite, contudo, não se confirmou.
Mas a redenção estava por vir. Pouco tempo depois de publicar "O Trono da Rainha Jinga", soube que meu nome figurava num curso de pós-graduação da Universidade de Stanford, da Califórnia. O título me impressionou: "Black literature in Brazil". E eu estava lá, ao lado de Luiz Gama, Machado de Assis, Lima Barreto e Edmilson Pereira - todos negros, menos eu.
Talvez vocês não tenham idéia do que isso representou para mim. Embora eu fosse um autor fenotipicamente branco, minha literatura estava sendo lida como literatura negra. Era, então, o ponto de vista do narrador o que verdadeiramente interessara aos professores de Stanford, era esse o critério teórico empregado para caracterizar um texto "negro".
Toda a preocupação que norteara a construção das minhas narrativas - a de não reproduzir o ponto de vista branco que dominava, no meu entender, a literatura brasileira - acabava de ser reconhecida com a simples inclusão do meu nome num rol de autores negros.
Na euforia desse sentimento, não me passou pela cabeça que nenhum dos meus livros, até então, reproduzira uma fotografia minha.
Era, certamente, o destino: anos depois, no bojo de uma polêmica a respeito do conceito de literatura negra, eis que o professor de Stanford, que criara a ementa do curso "Black literature in Brazil", declara publicamente que não sabia que eu era branco, que, se soubesse que eu era branco, não teria me posto naquela relação.
Fiquei, confesso, um tanto triste. E ainda não sei bem em que literatura me enquadrar.


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