São Paulo, domingo, 13 de março de 2011

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LITERATURA

O conselho de Tolstói

Pela primeira vez, há mais escritores do que leitores de literatura

RESUMO
O escritor argentino registra aspectos de seu cotidiano em Princeton, onde leciona literatura: relata alucinações causadas por um distúrbio neurológico, seus passeios furtivos por Nova York e o assédio telefônico de um traficante de cocaína; e reflete sobre literatura contemporânea a partir de contos tardios de Liev Tolstói.

RICARDO PIGLIA
tradução PAULO WERNECK

SEGUNDA Eu tinha parado de beber e sentia pequenas perturbações que me produziam efeitos estranhos. Não conseguia dormir e nas noites de insônia saía para caminhar pelas ruas vazias. O povoado parecia desabitado, e eu, feito um espectro, me enfiava nos bairros escuros. Via as casas na claridade da noite, os jardins iguais; ouvia o rumor do vento entre as árvores.

TERÇA Saí desses estados meio embriagado, como quem passou tempo demais olhando para a luz de uma lâmpada. Acordo com uma estranha sensação de lucidez, lembro vividamente alguns detalhes isolados -uma corrente quebrada na trilha, um pássaro congelado na neve, a frase de um livro. É o contrário da amnésia: as imagens estão fixas com a claridade de uma fotografia. Só o meu médico em Buenos Aires sabe o que está acontecendo e, assim, em dezembro me proibiu de viajar. Impossível, tenho que dar aula. Se os sintomas persistissem eu precisaria ser examinado. É um grande clínico e um homem afável; sempre está sereno. Segundo ele, eu padecia de uma estranha doença chamada "cristalização arborescente". O cansaço acumulado e um leve distúrbio neurológico produziam em mim pequenas alucinações.

QUINTA Há um mendigo que passa a noite no estacionamento do restaurante Blue Point, no final da Nassau Street. Tem um cartaz no peito que diz: "Sou de Orion", e veste um sobretudo branco, abotoado até o pescoço. De longe, parece um enfermeiro ou um cientista em seu laboratório. Ontem, quando voltava de uma de minhas caminhadas noturnas, parei para conversar com ele. Escreveu que é de Orion para o caso de aparecer alguém que também seja de Orion. Precisa de companhia, mas não de qualquer companhia. "Só gente de Orion, Monsieur", ele me diz. Acha que sou francês, e não o desmenti, para não mudar o rumo da conversa. De repente fica em silêncio, depois se recosta sob o beiral e dorme. Tem um carrinho de supermercado no qual leva todos os seus pertences.

SEXTA Quando me sinto enclausurado vou a Nova York e passo um ou dois dias em meio à multidão da cidade, sem ligar para ninguém, nem deixar que venham me ver, visitando lugares anônimos e evitando os bares. Paro no Leo House, uma residência católica, dirigida por freiras. Foi criada como hospedaria para os familiares que visitavam os doentes de um hospital próximo, mas agora é um hotelzinho aberto ao público (ainda que sacerdotes e seminaristas tenham prioridade).
No Chelsea, encontrei uma locadora de vídeo, Films Noir, especializada em filmes policiais. O dono é bastante simpático; é chamado de Dutch por ser filho de holandeses. Tem algumas joias impossíveis de achar, por exemplo "Curva do Destino" ["Detour", 1945], de Edgard Ulmer, extraordinário, super filme B, rodado em uma semana, quase sem dinheiro; vastos primeiros planos de viagem de carro, conversas em "off", luzes na noite. Conta a história de um homem desesperado que pega caronas e se perde nos desvios do caminho. Parece uma versão psicótica de Kerouac. Tudo o que encontra por acaso na estrada é destrutivo e mortal.
Na verdade estou procurando "Section des Disparus" [1956], do diretor francês Pierre Chenal, baseado no romance de David Goodis e filmado em Buenos Aires nos anos 40. Um filme mítico, que ninguém viu. O Holandês me assegurou que consegue localizá-lo, mas tenho que lhe dar tempo, ele acha que existe uma cópia num dos sites piratas peruanos, El Polvo Azul, onde se encontram réplicas de todos os filmes que já se filmaram no mundo.

SEGUNDA Ontem, quando voltei para casa, era perto da meia-noite. Encontrei correspondência atrasada na caixa de correio, mas nada importante, contas a pagar, mala direta. Assisti à TV por um momento, os Lakers venciam os Celtics, Obama sorria com seu ar artificial e bonachão, um carro naufragava no mar num anúncio da Toyota, num canal estava passando "Fogueira de Paixão" ["Possessed", 1947], de Curtis Bernhart, um dos meus filmes preferidos. A Joan Crawford aparece no meio da noite num bairro de Los Angeles e deambula pelas ruas extremamente iluminadas.
Acho que adormeci, pois o telefone me despertou, e alguém que conhecia o meu nome e me chamava de professor com demasiada insistência ofereceu-se para me vender cocaína.
Quando o telefone tocou, achei que era um amigo que me ligava de Buenos Aires e baixei o som da TV. Quando o traficante se anunciou, pensei que tudo era tão insólito que só podia ser verdade. Eu me neguei e cortei a ligação.
Poderia ser um trote, um imbecil ou um agente da DEA [a agência antidrogas americana] que estava controlando a vida privada dos acadêmicos da Ivy League [grupo de oito universidades de elite americanas]. Como ele sabia o meu sobrenome?
Na tela, as figuras silenciosas de Geraldine Brooks e de Van Heflin se abraçavam sob a claridade pálida. Do outro lado da janela, vi a casa iluminada do meu vizinho e, na sala de baixo, uma mulher de jogging que fazia exercícios de tai chi, lentos e harmoniosos, como se flutuasse no ar.

QUARTA Ultimamente apareceram o que poderíamos chamar de utopias defensivas. Como podemos escapar do controle? Uma estratégia de fuga impossível, pois não existe lugar de chegada. Uns meses atrás, fizemos uma antologia em Buenos Aires e pedimos a 20 narradores de diferentes gerações que escrevessem um conto situado no futuro. Os textos, mais do que apocalípticos, eram ficções defensivas, definidas pela solidão e pela fuga. São utopias que tendem à invisibilidade, tentam produzir um sujeito fora de controle.

SÁBADO As mulheres que saem para fumar na porta dos edifícios de Nova York têm um aspecto furtivo, me diz ela, são inquietantes. Veem-se poucos homens, cada vez menos, fumando na rua. As mulheres saem de seus empregos e acendem um cigarro sob o ar gelado, determinadas pela urgência e pela graça sedutora do vício. Um vício débil, se é que se pode chamá-lo assim. Os ianques ainda se escondem. Sinto ter parado de fumar ao vê-las, me diz. Depois, como se continuasse o que disse antes, diz: nesta época, pela primeira vez na história, há mais escritores do que leitores de literatura.

QUINTA Depois de tantos anos escrevendo nestes cadernos comecei a me perguntar em que tempo verbal devo situar os acontecimentos. Um diário registra os fatos enquanto acontecem, não os recorda nem os organiza narrativamente. Tende à linguagem privada, ao idioleto. Por isso, quando alguém lê um diário encontra bloqueios de existência, sempre no presente, e só a leitura permite reconstruir a história que se desdobra invisível ao longo dos anos. Os diários aspiram ao conto, e nesse sentido estão escritos para serem lidos (ainda que ninguém os leia).

TERÇA Trabalho no prólogo de uma edição dos últimos contos de Tolstói. Ele os escrevia em segredo, escondido de si mesmo, e são, sem dúvida nenhuma, excelentes, bem melhores que os contos de Tchekhov.
Depois da conversão que o levou a abandonar a literatura, Tolstói decide dedicar sua vida aos camponeses, converter-se em outro, ser mais puro e mais simples. Renuncia às suas propriedades, quer viver do trabalho manual. Resolve aprender a fazer sapatos, pois um par de botas bem-feitas são, segundo diz, mais úteis do que "Anna Kariênina". O sapateiro do povoado lhe ensina -com temor diante das incompreensíveis excentricidades do conde- seu velho ofício.
Tolstói anotou em seu diário: "Escrever não é difícil, o difícil é não escrever". Essa frase deveria ser o lema da literatura contemporânea.


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