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ARQUIVO ABERTO
Memórias que viram histórias
Com o dedo na ferida
Brasília, 1991
SIDARTA RIBEIRO
COMPARECEMOS À RAMPA DO PALÁCIO DO PLANALTO em 12 de julho de 1991, armados
de balões e becas negras. Duas semanas antes, não passávamos de 15 gatos pingados reunidos numa
sala da Universidade de Brasília (UnB). Toda sexta-feira, o então presidente Fernando Collor fazia da
cidade o palco de suas fanfarrônicas "descidas da rampa". Aquilo nos causava repulsa, e foi tarde da
noite que percebemos que era preciso colocar o dedo na ferida.
A neotradição "collorida" das descidas da rampa reunia a imprensa acrítica, uma festiva claque e, é
claro, os Dragões da Independência, que fazem a guarda do palácio. Não faltava um agressivo efetivo
policial que, aos berros e empurrões, impedia nossa aproximação, mas escoltava os "colloridos" até os
holofotes. Resolvemos aporrinhar o presidente da República com uma marcha fúnebre, repetida ao
som de balões amarfanhados entre os dedos.
A manobra surtiu efeito: o barulho detestável ecoou palácio adentro, revelando que Oscar Niemeyer o
projetou como caixa de ressonância para o veto popular acústico. A Polícia Militar tentou roubar os
balões.
Um dos nossos companheiros, hoje ecólogo do Instituto Chico Mendes, valeu-se dos cabelos louros e
de um crachá fantasia para ser admitido como fotógrafo da agência de notícias Reuters, o que lhe
permitiu documentar cenas perturbadoras. A tropa de choque, que chegou com escudos e pastores
alemães, causou debandada, mas o barulho seguia infernal.
Vaiado e exposto, Collor desceu veloz a rampa, entrou no carro oficial e, fiel a seu estilo, tentou sair
cantando pneu. Foi então que se deu a mágica. Com a euforia cívica e o destemor físico que só os
jovens volta e meia sentem, rompemos o isolamento e partimos em direção ao carro.
Coturnos e socos depois, finalmente a máscara caiu. Dedo em riste, Collor piscou. Perdeu a pose de
estadista e se mostrou como o víamos desde sempre. Quando o gesto obsceno fez a capa da Folha no
dia seguinte, percebemos que havíamos rompido a couraça de adulações como quem fura um balão de
ar.
Foi preciso mais duas visitas memoráveis à rampa para que Collor desistisse dela. Na segunda vez,
além da polícia, enfrentamos dezenas de caminhões em buzinaço chapa branca. Apenas um de nós,
hoje professor de história na UnB, conseguiu chegar à rampa. Um PM declarou à Folha que prendia o
estudante porque ele se recusava a entregar o balão.
Quando os caminhoneiros quiseram partir, nos deitamos na pista em frente ao Ministério da Justiça.
Encostavam os pneus em nós e aceleravam, desengrenados, mas com a imprensa por perto não
puderam nos atropelar. Outro colega, hoje um pacato professor de matemática na UnB, foi perseguido
por um caminhoneiro com uma chave de roda. Engarrafamos o Eixo Monumental em plena hora do
rush... Dois a zero para a plebe rude universitária!
No embate seguinte, não ousaram bloquear nosso acesso, mas agentes de segurança à paisana tiravam
fotos e faziam ameaças. Ficaram desconcertados quando começamos a posar com a meganha num
clima de "happening" circense, pois também colecionávamos seus nomes e imagens.
Dias depois, num factoide internacional chamado Aberto da República de Tênis, coberto por TVs
estrangeiras, nos infiltramos e pintamos pela primeira vez nossas caras de palhaços gladiadores.
Collor já não podia aparecer em Brasília sem ser constrangido.
O tempo é senhor da razão, não é? Cerca de um ano após a primeira visita à rampa, com a convocação
presidencial para vestir verde e amarelo, o Brasil foi tomado pelos caras-pintadas. Em Brasília,
acuamos o presidente sem povo a poucos metros da Casa da Dinda.
Dali em diante, foi o que se viu. Quando, sob uma chuva de moedas, Collor deixou o Planalto,
nenhum de nós se surpreendeu. O castelo de palitos de fósforo já vinha caindo desde que puxamos o
primeiro. Com um peteleco: o dedo do presidente.
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