São Paulo, domingo, 15 de maio de 2011

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ESPORTE

Os donos da bola

A memória dos craques brasileiros

RESUMO
A memória do futebol brasileiro, dos tempos heroicos anteriores à Copa de 1950 à era de Romário e Ronaldo, está consignada em perfis e entrevistas de grandes jogadores. Entre a anedota e o registro histórico, os livros constituem saborosas fontes de informação e de reflexão sobre a cultura esportiva do país.

ALVARO COSTA E SILVA

É UM FLA-FLU. Mas sem rivalidade: harmônico, elegante, criativo. O encontro do tricolor João Máximo com o rubro-negro Marcos de Castro, dois talentosos jornalistas da velha guarda, gerou um clássico imediato do jornalismo literário brasileiro.
Publicado em novembro de 1965, um ano antes da Copa da Inglaterra, "Gigantes do Futebol Brasileiro" [Civilização Brasileira, 440 págs, R$ 49,90] tornou-se uma daquelas preciosidades disputadas a tapas em sebos do Rio e de São Paulo, não só pelo ineditismo -foi entre nós um dos primeiros lançamentos dedicados ao esporte, antes uma exclusividade de Mário Filho- como pela qualidade literária dos 13 perfis, de Friedenreich a Pelé.
Quarenta e cinco anos depois, a obra reaparece, em versão revista, atualizada e ampliada, com 21 craques, chegando até Romário e Ronaldo, numa tiragem de 8.000 exemplares, alta para o padrão brasileiro.
"Além dos novos nomes, foi uma oportunidade de reparar duas ausências imperdoáveis na primeira edição: Didi e Ademir de Menezes", diz João Máximo, que lamenta a exclusão de Jair Rosa Pinto, o Jajá de Barra Mansa, ídolo de Vasco, Palmeiras e Santos nas décadas de 40 e 50. A viúva do jogador, d. Célia, negou-se a assinar a autorização pedida pela editora: "Não adiantou mostrar o autógrafo dele no meu antigo exemplar". Com os sete jogadores mais recentes, nenhum impedimento.

COBRANÇAS Os autores, como técnicos experientes, só justificam as feras convocadas. "É claro que as cobranças já começaram. Entrou fulano? Por que sicrano ficou de fora?", comenta Marcos de Castro, lembrando que o título do livro não é "Os Gigantes do Futebol Brasileiro": "A ausência do artigo definido é nossa salvação".
Provocados a respeito de uma hipotética terceira edição, em que entrariam nomes promissores da safra atual, são pessimistas: "O que aconteceu com o Ronaldinho Gaúcho, que pintou como gênio e depois foi só decepção, me deixa de pé atrás. A esperança é o Paulo Henrique Ganso", acredita João. "Acho o Neymar mascaradinho, meio besta e muito infantil. Jogador desse tipo não vinga na seleção", decreta Marcos.

MEIO SÉCULO A nova edição, que traz belas caricaturas de Ique, enfeixa mais de um século de bola rolando (e sendo bem tratada) no Brasil e fora dele, tantos são os grandes jogadores brasileiros que fazem carreira no exterior. Os primeiros deles foram Fausto, o Maravilha Negra, que assinou, ainda nos anos 30, um aventuroso contrato com o Barcelona, e Domingos da Guia, que ganhou dos torcedores uruguaios do Nacional o apelido de Divino Mestre.
A conhecida exceção é Nilton Santos, até hoje considerado o melhor lateral esquerdo do mundo, que jamais foi jogar num time estrangeiro. Bicampeão pela seleção brasileira em 1958 e 1962, ele foi jogar no Botafogo em 1948 e só deixou General Severiano em 1964, quando pendurou as chuteiras. O capítulo a ele dedicado é o único assinado a quatro mãos, pois serviu de "piloto" do livro.
Traz histórias como a do argentino Néstor Rossi que, impressionado com o aspecto de seu companheiro Federico Vairo -sujo de lama, camisa encharcada de suor, cabelos desgrenhados, meias arriadas, fisionomia abatida, tudo resultado do baile que levara de Garrincha no primeiro tempo de um Botafogo e River Plate-, sugeriu a ele, discretamente, que tocasse a mão nas pernas de Nilton Santos: "Vai lá, anda, que o futebol de todos os beques do mundo está ali naquelas pernas".

HOMEM-EQUIPE Os perfis mostram a evolução do esporte no país e como nos adaptamos, de maneira única, às mudanças táticas. O capítulo sobre Romeu, que também quase fica de fora, não fosse a insistência de João Máximo em localizar um herdeiro em São Paulo, descortina o surgimento de nosso primeiro "homem-equipe". Foi ele que, atuando pelo Fluminense, manjou a introdução do sistema WM (formação 3-4-3), trazido da Europa pelo húngaro Dori Krueschner, que viera treinar o Flamengo em 1937.
"Romeu era um 'figuraça'. Calvo, usava um gorrinho todo branco ou tricolor para disfarçar. Gordo, não se privava dos pratos de massa e copos de vinho. Tinha de fazer exercícios puxados, usando agasalhos de lã, para perder até três quilos num mesmo dia. Algo inimaginável para os chamados gordos de hoje", conta Marcos de Castro.
Não só a (má) forma física aproxima os craques do passado aos do presente. O racismo, hoje tão discutido, antes não era menos intenso. Eis o trecho de um artigo sobre Fausto publicado no jornal espanhol "Información": "Usa dois anéis de brilhante do tamanho de um ovo, cujos reflexos chegam a cegar quem está por perto. E o sol o faz suar tanto que bastam uns poucos galopes sobre a grama para que seu pescoço negro e reluzente se assemelhe ao lombo de um cavalo depois da corrida".

LINGUAGEM O que mudou foi a linguagem do futebol, a qual é deliciosamente recuperada pelos autores, no uso de palavras como "charles" (termo derivado de Charles Miller, denota "chute de letra"), "marreta" (trapaça), "garfo" ("roubo" do juiz) e até mesmo na explicação, por Marcos de Castro, dos mistérios que um estilo esconde: "Tão especial, tão diferente, que jogar bonito na defesa passou a ter uma denominação: era fazer uma 'domingada'. Mas só o craque podia fazer 'domingada', porque, nos pés de um jogador medíocre, enfeitar a jogada costuma dar em bobagem, em gol contra. [...] Não valia a pena se arriscar em jogadas que tinham a marca exclusiva de Domingos".
Como epígrafes aos capítulos, os jornalistas selecionaram frases que definem a genialidade de cada jogador. São diretas, como a de João Saldanha sobre Gérson: "Foi dos maiores jogadores de meio-campo do Brasil, talvez o mais completo"; poéticas, como a de Paulo Mendes Campos sobre Didi: "Eis um homem que quase achou o que não existe: perfeição"; conclusivas, como a de Nelson Rodrigues sobre Rivelino: "Faz da bola o que quer".
A frase do jornalista escocês Hugh McIlvanney sobre Tostão -"Ele bem poderia ser o símbolo perfeito de uma grande Copa do Mundo em 1974"- apoia a tese mais instigante da obra: o futebol apresentado pelo camisa 9 do Brasil no Mundial do México, em 1970, rara aliança entre excelência técnica e inteligência tática, de certa maneira antecipara a revolução holandesa nos campos da Alemanha, quatro anos depois. Se Tostão não tivesse parado de jogar aos 26, vítima de um deslocamento de retina no olho esquerdo, podia ter sido, sozinho, uma laranja mecânica.

COPA DE 50 Três jogadores da seleção derrotada para o Uruguai na final da Copa de 1950 são lembrados pela dupla de autores: Danilo, Zizinho e Ademir. Os dois últimos (e mais Jair Rosa Pinto) também estão no impressionante e fartamente ilustrado "Recados da Bola" [Cosac Naify, 220 págs, R$ 99], que traz depoimentos inéditos aos jornalistas Jorge Vasconcellos e Claudiney Ferreira, em 1994, para a série de programas radiofônicos "Brasil: Um Século de Futebol", realizada para o serviço brasileiro da BBC de Londres.
Os perfis de um livro e os depoimentos de outro, mesmo que lidos em conjunto, não explicam a tragédia do Maracanã em 1950, mas chegam perto. Basta atentar às palavras de Jair: "O que não suporto é culpar isoladamente este ou aquele jogador pela derrota, porque acho que foram 11 contra 11. Quem perdeu a Copa fomos eu, Danilo, Zizinho, Barbosa, Bigode, todos nós. O Flávio Costa escalou o time que tinha que escalar. [...] Acho que a responsabilidade foi nossa, dos 11, os culpados fomos nós, não somente o Barbosa e o Juvenal, aí não, não estou de acordo".
O que nem João Máximo, nem Marcos de Castro entendem (e, certamente, tampouco entenderiam os vice-campeões de 1950) é a manobra silenciosa que, disfarçada de reforma para a Copa do Mundo de 2014 e com custos que ultrapassarão R$ 1 bilhão, resultou na demolição do Maracanã, palco da maioria dos jogadores retratados nos livros "Gigantes do Futebol Brasileiro" e "Recados da Bola". "Essa, sim, é a verdadeira tragédia. Enfim, o cartola-mor João Havelange conseguiu o que sempre quis", acusa Marcos de Castro.

Não só a (má) forma física aproxima os craques do passado aos do presente. O racismo, hoje tão discutido, antes não era menos intenso

Os perfis de um livro e os depoimentos de outro, mesmo que lidos em conjunto, não explicam a tragédia do Maracanã em 1950, mas chegam perto

O que os autores não entendem é a manobra silenciosa que, disfarçada de reforma para a Copa de 2014, resultou na demolição do Maracanã


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