São Paulo, domingo, 15 de agosto de 2010

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HISTÓRIA

Perversão e culpa

A vida privada sob Stálin

RESUMO Um ensaio monumental de Orlando Figes e um romance de Robert Littel retratam a vida privada de cidadãos comuns e intelectuais durante o regime de Stálin na União Soviética (1924-53). Delação, culpa e repressão engendraram um peculiar e romanesco sistema social e político marcado pela paranoia e pelo terror generalizados.




BERNARDO CARVALHO
ilustrações MARCELO COMPARINI

O INGLÊS ORLANDO FIGES, um dos maiores especialistas na história da Rússia e da União Soviética, foi pego, há pouco mais de três meses, com as calças na mão. Um internauta-resenhista, usando o codinome "historiador", havia postado comentários devastadores contra os livros de dois outros estudiosos do mundo russo e soviético no site da Amazon. Como se não bastasse, o mesmo resenhista era só elogios hiperbólicos a "Sussurros", de Figes, um imenso painel sobre a vida privada na União Soviética de Stálin.
Alguns internautas -e as vítimas dos comentários- começaram a desconfiar de que o "historiador" e o autor de "Sussurros", professor no Birkbeck College, na Universidade de Londres, fossem a mesma pessoa. A suspeita chegou ao "Times Literary Supplement". O mínimo que se pode dizer é que, a partir daí, o próprio Figes não deixou de contribuir, com suas ações desastradas, para amplificar o vexame.
Num primeiro momento, por meio de seu advogado, o egrégio historiador (agora sem aspas) exigiu a retratação dos que o acusavam, ameaçando processá-los. Num segundo momento, sabe-se lá por quê, responsabilizou a própria mulher, a advogada Stephanie Palmer, por ter tomado, sem o seu conhecimento, a iniciativa de postar os comentários infames no site da Amazon.

CULPA DE STÁLIN Dias depois, para surpresa ainda maior, Figes pôs a culpa em Stálin: assumiu afinal a autoria dos "posts" espúrios, mas sob a desculpa de que o exaustivo trabalho de pesquisa exigido para a execução do monumental "Sussurros" o teria deixado num estado de "depressão profunda", capaz de levá-lo a cometer "erros tolos". E saiu de licença, por motivo de saúde.
"Sussurros - A Vida Privada sob Stálin" [trad. Marcelo Schild e Ricardo Quintana, Record, 826 págs., R$ 84,90], de Orlando Figes, acompanha uma dezena de famílias soviéticas ao longo do século 20, relata a vida privada de pessoas comuns e suas "estratégias de sobrevivência, os silêncios, as mentiras, as amizades e traições, as concessões e acomodações", diante dos crimes mais pavorosos que um Estado totalitário, com o auxílio indispensável do que há de pior entre os homens, pode cometer contra seus cidadãos: torturas, sequestros, prisões, condenações e execuções baseadas em falsas denúncias, falsos depoimentos e julgamentos de araque.
Elif Batuman, autora do engraçadíssimo "The Possessed" ("Os Demônios - Aventuras com Livros Russos e as Pessoas que os Leem", publicado em fevereiro, nos EUA, pela Farrar, Strauss and Giroux), certamente daria outro diagnóstico para a depressão de Figes, mostrando, com conhecimento de causa, o que já era óbvio: que a loucura do historiador tem menos a ver com Stálin do que com a própria academia.
Batuman, que também é detratora das sagradas oficinas de criação literária nos EUA (acredita ser mais fácil aprender a escrever romances lendo Cervantes, Dostoiévski e Foucault), ensina literatura russa na Universidade Stanford, na Califórnia, e está acostumada a lidar com acadêmicos e seus congressos, como se pode depreender do humor absolutamente judaico dessa acadêmica de origem turca.
Ainda estudante, ela ajudou a organizar um congresso em torno de Isaac Bábel (banido e executado durante o terror stalinista), tendo a chance, por assim dizer, de privar da companhia não exatamente fácil da descendência do escritor. Também conseguiu emplacar um texto num colóquio de tolstoianos, em Iásnaia Poliana, a antiga propriedade rural do autor de "Guerra e Paz". Mas, como sua mala desaparecera nos labirintos da malha aérea da Aeroflot, a companhia russa, Batuman acabou passando os quatro dias do congresso com a roupa que tinha reservado para dormir no avião (chinelos, calças de moleton e um camisão de flanela), o que levou os colegas a confundi-la com os fanáticos seguidores da seita criada por Tolstói no século 19.
O pequeno embuste de Figes não revela nada além da vaidade (um tanto descontrolada, é certo) do acadêmico. E se tem alguma relação com o mundo stalinista, como pretende o próprio autor, é apenas por refletir, numa escala insignificante, a prática das difamações e das acusações anônimas -moeda corrente na internet de hoje, embora sem as consequências do mesmo gênero de ações nos regimes totalitários.

PARANOIA Entre 1928, quando Stálin obtém poder total, e 1953, ano de sua morte, em média uma pessoa para cada 1,5 família foi vítima da repressão do Estado (cerca de 25 milhões de pessoas, estima Figes). A população não distinguia entre presos políticos e criminosos comuns. Pegos de surpresa, familiares costumavam atribuir a prisão de um parente a algum equívoco ou mal-entendido. A paranoia chegou a ponto de ninguém mais ser considerado inocente. Mulheres passaram a desconfiar de maridos e vice-versa. Pais presos exortavam os filhos a renunciá-los, se quisessem vencer na vida - ou simplesmente sobreviver.
É realmente uma ótima ideia estudar a vida privada de um mundo onde a própria ideia de privacidade se tornara uma aberração. Num apartamento comunal de Leningrado (nome da atual São Petersurgo entre 1924 e 1991), nos anos 30, por exemplo, podia haver apenas um banheiro para 48 moradores, que tinham de sussurrar quando queriam falar de seus assuntos privados.
Também sussurravam os delatores. No auge do terror (entre 1937 e 1938), havia informantes por toda parte, em fábricas, escolas, escritórios, apartamentos e locais públicos. Segundo cálculos de ex-oficiais ligados à polícia, havia em Moscou (uma cidade de 3,4 milhões de habitantes em 1933, quando o crescimento da população passou a ser controlado por um sistema de passaportes e expulsões) pelo menos um informante para cada seis ou sete famílias.
Não há nenhuma inverdade na opinião enlevada que Figes tem da própria obra. E ele não teria do que se envergonhar se não fosse por ter-se valido de um codinome para atacar seus pares e publicar o autoelogio. "Sussurros" é um livro fenomenal. A equipe do historiador consultou dezenas de arquivos e entrevistou centenas de pessoas ao longo de sete anos (a totalidade dos depoimentos pode ser acessada em orlandofiges.com).

STALINISTA BOM O que a anedota infeliz da internet e a vaidade do historiador talvez permitam compreender sob outra ótica é sua empatia por Konstantin Simonov (1915-79), um dos favoritos do regime, que Figes teve a perspicácia de transformar não só em fio condutor mas em herói trágico do seu livro: "Se fosse possível ser um 'stalinista bom', ele poderia se enquadrar na categoria. [...] Compreender seus pensamentos e ações talvez seja compreender esse período", escreve na introdução.
A complexidade desse personagem vaidoso e ambíguo, capaz de sobreviver aos piores anos do terror e da paranoia, mantendo as regalias reservadas aos mais altos escalões e vivendo com um glamour equivalente ao de Hollywood quando até os homens da mais alta confiança de Stálin terminavam caindo em desgraça, traídos por seus próprios amigos e colaboradores, faz de "Sussurros" um valioso documento histórico que se lê como um grande romance.
"O Simonov ficou famoso com um poema de guerra, muito sentimental, 'Espere por mim'. Como poeta, é bastante fraco", sentencia Boris Schnaiderman, que reconhece, contudo, a importância literária de outros escritores stalinistas, como Mikhail Chólokov. "Espere por mim" foi escrito em 1941, quando Simonov era correspondente na frente de batalha, para a atriz Valentina Serova, que o escritor cortejava à época e com quem acabou se casando sob os auspícios do Kremlin.
Especialista em literatura russa, tradutor de Púchkin e Dostoiévski (e contemporâneo de Simonov), Schnaiderman nasceu na Ucrânia em 1917 e deixou a União Soviética em 1925. Suas visitas à Rússia desde 1967 renderam, entre outros, "Os Escombros e o Mito" (Companhia das Letras), sobre a glasnost e a perestroika - literalmente, "transparência" e "reestruturação econômica", as duas palavras que simbolizam as políticas de abertura administrativa e de informação implantadas por Mikhail Gorbatchov e que culminariam no fim da União Soviética, em 1991. Uma reunião das entrevistas de Schnaiderman deve sair ainda neste ano na coleção Encontros, da editora Azougue.

SOBREVIVÊNCIA O mea-culpa feito por Simonov no final da vida confirma a opinião de Schnaiderman: a literatura foi, para Simonov, menos uma questão literária do que de sobrevivência. O escritor fez o que foi preciso fazer. Escreveu poemas à glória de Stálin (grandes poetas, como Boris Pasternak, também escreveram). Sob intensa pressão, recusou-se a ser informante (o que talvez o tenha salvado, no final das contas), mas nunca deixou de servir ao Estado com a aparente convicção de um homem moral e íntegro na sua ingenuidade e na sua cegueira.
Secretário da União dos Escritores, Simonov não poupou ataques aos "inimigos do povo", fossem eles formalistas, cosmopolitas, liberais ou simplesmente judeus, dependendo do momento e a despeito de suas duas primeiras mulheres -a segunda, mãe de seu filho- serem judias. Apoiou a invasão da Hungria, em 1956, e impediu a publicação do "Doutor Jivago", de Pasternak, na revista "Nóvi Mir" (o romance acabou saindo no Ocidente e garantindo o Nobel de literatura ao autor, em 1958, que foi obrigado a recusá-lo sob pressão do Estado soviético).
Entretanto, nos anos que precederam sua morte, Simonov tornou-se um ardoroso defensor dos escritores censurados e perseguidos por Stálin. Passou a colecionar arte da vanguarda soviética e teve um papel na divulgação dos poemas de Óssip Mandelstam, chegando a ajudar financeiramente a viúva do escritor, Nadedja. Teve papel decisivo no processo que levou à publicação da obra-prima proscrita de Mikhail Bulgákov, "O Mestre e Margarida" (trad. Zoia Prestes, Alfaguara). Quando morreu, a imprensa internacional noticiou o desaparecimento do "favorito de Stálin". O escritor russo e Nobel de literatura de 1970 Alexander Soljenitsin o chamava de "homem de várias faces".
Simonov aprendeu a calcular desde cedo. Filho de uma princesa, descendente de um clã de grandes proprietários de terra, e de um general czarista desaparecido em 1917, passou a vida tentando esconder as origens aristocráticas. Depois do sumiço do pai, a mãe foi despejada do apartamento onde moravam em Petrogrado (nome de São Petersburgo entre 1914 e 1924) e obrigada a ir viver no interior, onde entendeu que mais valia casar-se de novo, ainda que o pretendente fosse de classe inferior, a manter-se princesa abandonada em plena revolução.
Criado pelo padrasto, militar humilde que sonhava com uma educação superior para o enteado, Simonov preferiu cursar uma escola técnica e trabalhar numa fábrica. Tinha entendido que sua sobrevivência dependia de uma metamorfose. E, ao longo de toda a sua formação, comportou-se como um aplicado aspirante a operário, um "CDF" (como foi apelidado pelos colegas) proletário. Participava de todo tipo de agremiações e associações, com a disciplina de um pequeno burocrata, a ponto de não se poder mais distinguir entre a estratégia e a personalidade. A prisão do padrasto, em 1930, em vez de levar o adolescente a questionar o regime, apenas o fez trabalhar com mais afinco para sustentar a mãe e corresponder ao modelo do operariado soviético.

ANKETA "Havia a famosa 'anketa'", diz Schnaiderman. A palavra, derivada do francês "enquête", designava uma espécie de currículo e atestado de bons antecedentes. "Para tudo precisava de 'anketa'. Estava tudo ali, suas atividades, seus antecedentes. Você tinha que ter origem adequada. O Bulgákov, por exemplo, tinha servido no Exército Branco, como médico, contra os bolcheviques, na guerra civil. Por mais que Stálin admirasse sua peça 'Os Dias dos Turbins', ele estava marcado pela origem", diz Schnaiderman.
Mikhail Bulgákov foi, por sinal, um dos poucos a se recusar a participar, em 1933, do passeio de propaganda pelo canal do mar Branco a que se submeteram 120 escritores. Organizado numa das célebres reuniões no palacete de Máximo Górki, em Moscou, onde, dois anos mais tarde, também seria elaborada a doutrina do realismo socialista anunciada no 1º Congresso da União dos Escritores, o passeio tinha por finalidade exaltar o gulag, o sistema dos campos de trabalhos forçados. Construído com mão de obra de prisioneiros, o canal foi um dos projetos mais desastrosos e assassinos do primeiro plano Quinquenal (1928-33), que também espalhou a fome por toda a União Soviética.
Simonov, à época com 18 anos, trabalhava como mecânico nos estúdios de cinema onde Pudovkin filmava "O Desertor" e ficou tão encantado com a oportunidade edificante daquela farsa que passou a escrever seus próprios poemas sobre o canal, terminando por visitá-lo, com financiamento da editora estatal, para escrever mais poemas. Nascia um poeta stalinista. A consagração, porém, só veio mesmo durante a Segunda Guerra (1939-45), que para muita gente teve o efeito purificador de legitimação do regime na luta contra o nazismo, quando o poema "Espere por mim" transformou Konstantin e Valentina na face romântica e glamourosa do terror.

EPIGRAMA É claro que nem todos os escritores reagiam da mesma forma. A fome no campo (que testemunhou em uma viagem à Crimeia) foi o que levou Óssip Mandelstam, um dos maiores poetas russos do século 20, a escrever sua sentença de morte: um epigrama contra Stálin. O escritor foi denunciado depois de ler o poema para um círculo restrito de amigos. Preso pela primeira vez em 1934, morreu num campo de trabalhos forçados, no extremo leste da Rússia, quatro anos depois. A morte do poeta é o tema do romance "De Mandelstam para Stálin" [trad. Mauro Gama, Record, 378 págs., R$ 52,90], escrito pelo americano Robert Littel, autor de best-sellers de espionagem e pai de Jonathan Littel, vencedor do prêmio francês de literatura Goncourt, em 2006, com "As Benevolentes" (trad. André Telles, Alfaguara).
"De Mandelstam para Stálin" faz a dramatização desse quadro tão romanesco que foi o terror soviético, tentando reencenar pela ficção o que ninguém viu e o que nenhum historiador jamais poderá desencavar de nenhum arquivo. Littel imagina o triângulo amoroso entre o poeta, a mulher Nadedja e uma jovem atriz; a reunião na casa de Górki, com a presença de Stálin, em que são lançados os preceitos do realismo socialista; as catacumbas da sede da polícia política no centro de Moscou e o calvário de Mandelstam entre a primeira prisão, os interrogatórios, a tortura, o exílio, o campo de trabalhos forçados e a morte.
Littel conhece bem o mundo soviético. O romance tem altos e baixos (é infeliz, por exemplo, a referência aos traumas de infância de Stálin como esboço de uma possível explicação psicológica para a personalidade do monstro), mas faz o leitor compreender, talvez com mais agudeza do que permite supor o heroísmo ambivalente de Simonov, a perversão psicológica perpetrada pelo terror e pela paranoia stalinista sobre a personalidade dos indivíduos.

DOUTRINAÇÃO A figura do delator parece natural num universo onde a crença no regime, incutida em todos por meio de uma doutrinação obstinada, acaba por lhes fazer ver um Estado onipotente e onisciente, impedindo que enxerguem qualquer coisa além dele. O Estado stalinista só sobrevive porque as pessoas não cometem os crimes de que são acusadas. Todos se submetem por antecipação, porque é impossível não se submeter alguma hora. Todos são delatores e culpados em potencial. Nessa falta de perspectiva, também parece natural o suicídio de quem se adianta ao terror (como Mandelstam) para se livrar dele.
O projeto de Orlando Figes era pôr o homem comum no centro dessa história. No romance de Robert Littel, o homem comum está representado por um levantador de pesos que cai em desgraça por conta de um adesivo da torre Eiffel colado a uma mala que ele adquire. Os caminhos do levantador de peso e do poeta vão se cruzar no gulag.
O homem comum também estará representado pela bela imagem dos prisioneiros que jogam pelas frestas dos vagões que os levam para os campos, depois de terem sido arrancados de suas famílias, torturados e submetidos em segredo a encenações judiciais, as cartas que, a depender da solidariedade dos que por acaso as encontrarem e decidirem pô-las no correio, serão o seu único testemunho e testamento.


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