São Paulo, domingo, 15 de agosto de 2010

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ANTROPOLOGIA

Via de mão dupla

A natureza como cultura

RESUMO A noção de natureza (em oposição à de cultura) é posta em questão no ensaio "A Invenção da Cultura" (1975), de Roy Wagner, que expõe a complexa relação dialética entre o que é dado e o que é construído. Wagner mostrou ser a natureza uma construção cultural e inaugurou um novo capítulo no pensamento antropológico.

RAFAEL CARIELLO

A NATUREZA ESTÁ AMEAÇADA -e não apenas pelas práticas predatórias e destrutivas denunciadas pelos ecologistas.
É a própria ideia de natureza, daquilo que pode ser abarcado por esse conceito, o que entrou em crise. Alimentos transgênicos, cirurgias de mudança de sexo, inseminação artificial, aparelhos que prolongam a vida, eutanásia. Para todo lado, é cada vez mais difícil demarcar com precisão a fronteira entre o que é "fabricado", construído pelo homem, e o que é "natural", anterior à sua ação.
Sabe-se que o milho hoje consumido em todo o mundo não é idêntico à planta "original", encontrada pelos espanhóis na América. Um processo contínuo de seleção e cruzamento, conduzido pelo homem, mudou o tamanho da espiga e a qualidade dos grãos. Novas raças de animais são criadas de maneira análoga.
É de "natureza" ou de "grau" a diferença entre esse tipo de intervenção, de um lado, e a manipulação, em laboratório, das características genéticas da soja? O que é mais "natural": a genitália de um transexual ou seu desejo?

PAIXÕES Não à toa, esse "admirável mundo novo" desperta paixões, anima discursos moralizantes e alimenta a política -como provam as discussões acerca do aquecimento global. Suas criações mais inquietantes embaralham uma distinção fundamental do Ocidente moderno: aquela entre "cultura" e "natureza".
A melhor antropologia das últimas décadas tem se ocupado da crise de tais relações. O francês Bruno Latour, por exemplo, identifica a modernidade, caracterizada pela consolidação do Estado-nação e do método científico, com o auge dessa separação: cultura de um lado, natureza de outro. A distinção provou ser versátil, e abrigou com desenvoltura outro traço marcante da modernidade: a descoberta de múltiplas culturas, de sociedades distintas, todas igualmente tratadas como legítima prole do engenho humano.
Montaigne (1533-92), ao dar notícia em seus ensaios dos habitantes indígenas da França Antártica (o Brasil do século 16), já afirmava não ver "nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos". E emenda: "Na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra".
Trata-se de uma atitude inegavelmente generosa, incorporada pela antropologia quando esta se estabelece como ciência social, no final do século 19. Mas, recalcada sob os bons sentimentos em relação aos "selvagens", continuava a operar a crença do Ocidente em sua própria superioridade. Outros povos passavam a ter, aos olhos europeus, pleno direito a suas próprias explicações sobre o mundo, direito de organizar seus casamentos e suas instituições políticas das maneiras mais inusitadas. Afinal, tudo isso pertencia ao campo da cultura.
Mas as próprias intuições desses povos sobre o que é "natural" e sobre o que é "fabricado", ou melhor, sobre o que é dado e nos constrange e sobre o que é construído e maleável, não constituía o tema central de teses ou relatos etnográficos. A ideia de natureza permanecia protegida, intocada.

ATÉ O FIM Um dos primeiros antropólogos a pôr em questão o conceito ocidental de natureza e a levar até o fim suas inúmeras consequências, foi o norte-americano Roy Wagner, nascido em 1938 e doutor pela Universidade de Chicago nos anos 60 - à época, o principal centro da antropologia nos Estados Unidos.
A tarefa foi levada a cabo por Roy Wagner em "A Invenção da Cultura" [trad. Marcela Coelho de Souza e Alexandre Morales, Cosac Naify, 254 págs., R$ 55]. O livro, tido como um marco da antropologia, chega ao Brasil 35 anos depois de seu lançamento.
Mesmo as ideias ali contidas demoraram a ser assimiladas. Talvez pela dificuldade inerente ao que o autor diz e pela mudança de "paradigma" que representou para a antropologia. Wagner radicaliza algumas das intuições que já estavam presentes em autores estruturalistas, como Claude Lévi-Strauss, para quem é sempre por meio de analogias que se instauram as divisões culturais e sociais.
Nenhum conceito, nenhum grupo social existe "em si", nem pode ser compreendido de forma isolada, afirma o estruturalismo. São sempre elementos de um sistema, em que as partes se determinam umas às outras. É daí que parte Wagner. Décadas depois, o norte-americano atinge hoje o ápice de sua influência, reconhecida pelos principais antropólogos em atividade, como a britânica Marilyn Strathern e o brasileiro Eduardo Viveiros de Castro.
Tendo seu trabalho de campo na Melanésia, na Oceania, como pano de fundo, Wagner constrói uma teoria do significado que busca dar conta dos processos cognitivos e das explicações de mundo tanto do Ocidente moderno quanto dos "outros", dos não-ocidentais, em contraposição mútua. (A divisão das culturas humanas numa dicotomia um pouco grosseira, levada a cabo pelo autor, é objeto de críticas. Mas seu modelo para os povos não-ocidentais tem sido confirmado em pelo menos duas grandes áreas de pesquisa da antropologia contemporânea: entre os povos da Melanésia e os grupos indígenas das Américas.)

MÃO DUPLA Uma cultura, diz Wagner, nunca pode ser explicada sem o contato e o contraste com outra. É sempre em contraposição, em relação dialética, que se pode tirar algum significado de suas lógicas distintas.
Essa lógica relacional é, aliás, enfatizada internamente pelas sociedades da Melanésia e da Amazônia, mas também organiza o mundo em que vivemos: a natureza, no Ocidente, só existe em contraste e em relação com a cultura. É impossível imaginar uma sem a existência da outra.
A descrição de sociedades "exóticas", portanto, deve partir do contraste com a cultura do antropólogo. A via, aliás, é de mão dupla, nos diz Wagner. "Quanto mais familiar se torna o estranho, ainda mais estranho parecerá o familiar. É uma espécie de jogo, se quisermos -um jogo de fingir que as ideias e convenções de outros povos são as mesmas (num sentido mais ou menos geral) que as nossas para ver o que acontece quando 'jogamos com' nossos próprios conceitos por intermédio das vidas e ações dos outros."
Wagner, dessa forma, lança mão de nossa distinção entre natureza e cultura, entre o que é dado e o que é construído, para ver como ela "funciona" para povos não-ocidentais. E vê que para funcionar entre os daribi, grupo que ele estuda na Melanésia, ela deve, antes de tudo, ser virada do avesso.

RELAÇÕES SOCIAIS Para os melanésios, o que é dado não é a natureza, mas as relações sociais. São elas que são anteriores a qualquer ação ou construção humana. Mas essa espécie de "contexto" só é entendida como dado, como aquilo que ordena e impõe limites às ações, em contraste com algo que venha a ser construído.
Essa regra, para Wagner, é universal. Toda cultura sempre tomará certo contexto como "dado", como algo que não pode ser modificado. Sobre esse pano de fundo vai se desenrolar a ação humana, algo vai ser construído. No Ocidente, ao se criar cultura, se reafirma a existência da natureza, por contraposição.
Mas os melanésios e os ameríndios não podem inventar novas relações sociais (como nós fazemos ao estabelecer amizades, iniciar uma nova família ou nos associarmos em partidos ou sindicatos). Para eles, elas são dadas. Contra esse contexto -e para reafirmá-lo como tal-, algo deverá ser fabricado. Mas o quê? Mal traduzindo, qualquer coisa próxima daquilo que chamamos de "natureza".
Um dos melhores exemplos dessa lógica vem da sistematização proposta por Eduardo Viveiros de Castro para a forma geral do modo de ver o mundo dos povos indígenas das Américas. Trata-se de sociedades que levam muito a sério a primazia das relações sociais (tanto quanto um biólogo evolucionista leva a sério a primazia dos genes sobre a cultura). Pano de fundo sobre o qual se desenrola a existência, suas regras de parentesco e seus hábitos culturais ultrapassam o universo humano.
Como a nossa "natureza", a "cultura" dos índios é universal. Do mesmo modo que, para nós, todos os animais têm pai e mãe (relações naturais), para eles todos os seres têm sogro e sogra, cunhado, ritual e aldeia.

DIALÉTICA É preciso lembrar que tais relações só fazem sentido de forma dialética: só existe um sogro porque existe um genro, e vice-versa. Assim também para as relações entre os sujeitos e os objetos do mundo, para os povos ameríndios. Os objetos nunca existem independentemente da relação com "seu" sujeito. Para os urubus, dizem, os vermes que infestam um cadáver, por lhe servirem de alimento, são peixes grelhados. Porque na cultura, que é igual para todos, a comida aparece na forma de peixes, e não na de vermes.
Se a "cultura" é a mesma, se as relações sociais são iguais para todos os seres, o que muda, o que distingue a onça, por exemplo, do índio? O corpo. O corpo, a "natureza", precisa ser fabricado, construído pelos parentes. O corpo do homem, do índio, vê o porco-do-mato como caça, mas se seu corpo fosse de onça, veria o índio como porco-do-mato.
Os índios das Américas não param de fabricar corpos -o corpo da criança, por exemplo, objeto de atenção e cuidados. De modo análogo, nós não cessamos de produzir coisas, de fabricar cultura, numa ocupação fabril sem fim que deve criar as necessárias distinções em relação à natureza -o próprio esforço para manter essa dicotomia, no entanto, hoje parece ameaçá-la.
E não paramos de "inventar" culturas. Mas, depois de Wagner, ao falarmos sobre a Melanésia ou a Amazônia, temos muito o que dizer sobre as sociedades industriais. E vice-versa.


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