São Paulo, domingo, 15 de agosto de 2010

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Encontro comigo mesmo
Sorocaba, 1947

MODESTO CARONE

NO INÍCIO DE JULHO deste ano, o grupo teatral Manto, de Sorocaba (SP), encenou a peça "Resumo de Ana", inspirada na novela homônima que publiquei em 1998 (Cia. das Letras). Fui convidado para assisti-la e minha maior expectativa era poder me "olhar de fora", como num espelho, nessa passagem da escrita para o palco. Mas o encontro que aconteceu foi outro, muito diferente.
A peça manteve-se fiel ao argumento do livro, baseado tanto em fatos reais, como em outros, inventados ou deslocados no interesse da narrativa memorialista, o que levou alguém a descrevê-la como cubista, provavelmente em função de sua geometria interna: os personagens, quase sempre os mesmos, trocam de posições, e de protagonistas na primeira parte, passam a secundários na segunda.
Nessa técnica de dominó, que barra o relato linear, o próprio cenário (a cidade) muda de fisionomia no correr do tempo narrado, o discurso indireto encaixa-se no relato objetivo, os flashbacks superpõem acontecimentos passados ao tempo presente, o narrador flaubertiano acaba se tornando personagem etc. A adaptação do livro, apesar disso, conseguiu deixá-lo em pé como peça de teatro.
O espaço praticável da representação, a Usina Cultural Ettore Marangoni, foi o edifício de uma usina de força desativada, que antes alimentava uma tecelagem na margem direita do rio Sorocaba. A construção é alta, maciça, sem janelas à vista e tem o aspecto de uma velha fortaleza, abrindo-se para um gramado que chega ao limite das águas.
Fiquei observando de longe a longa fila de espectadores à espera de entrar. Foi nesse momento que me dei conta que conhecia aquele lugar fazia muito tempo. À minha frente, agora, o rio corria negro e volumoso e as ondas faiscavam à luz dos holofotes. Foi exatamente ali, havia mais de 60 anos, que escapei de morrer afogado.
O foco da memória atravessava uma névoa e trazia para o primeiro plano a cena em que eu saltava no remanso de uma piscina natural, aos dez anos de idade, segurando o rabo do meu cão vira-latas. Ele me arrastava como uma carga pela superfície, mas, à medida que a correnteza se aproximava, ele se soltava aos repelões, atirando-me para a corrente mais funda. Como ainda não sabia nadar, restava bater os braços nas ondas que vinham. Inútil, porque a torrente puxava para o fundo, onde a vegetação era iluminada por raios de sol esverdeados. Por instinto, raspei os pés na areia do leito e subi à tona vomitando água.
Na margem direita, diante da usina-fortaleza, um grupo de lavadeiras esfregava roupas e lençóis sobre suas tábuas. A mais moça, atenta ao que se passava, saiu correndo pela margem e entrou nas águas até os joelhos, arrancando num só golpe o corpo que ainda boiava na correnteza. Fiquei estendido algum tempo no chão seco, depois me levantei e ela me levou pela mão até o quintal de sua casa, que não era distante e onde se erguia uma araucária.
Tirou minha roupa -uma camisa de verão e calças curtas- e pendurou-a no varal. Nu em pelo, subi até o galho mais baixo da árvore e fiquei sentado. Tremia de frio e de susto e, movido por um ímpeto de medo, desci da araucária e vesti a roupa ainda molhada. Entrei por uma trilha que dava bem longe da minha casa. Estava aturdido e, nos meus dez anos, nem agradeci à moça, que estava na cozinha da casa fazendo um café.
Nunca mais a vi, nem mesmo sei seu nome. Mas foi aquela Nausícaa proletária que me salvou e, ao largo do rio e da usina desativada, foi possível um encontro comigo mesmo após mais de 60 anos de esquecimento.


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