São Paulo, domingo, 16 de outubro de 2011

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CRÍTICA

A cidade e as pranchetas

A arquitetura precisa voltar ao primeiro plano

RESUMO Embora relegada ao segundo plano no debate cultural e urbanístico brasileiro, a arquitetura ensaia uma volta à pauta em revista e edições dedicadas a nomes menos óbvios. Na obra e no pensamento de arquitetos como Marcelo Ferraz e Tata Barossi, aflora a tentativa de fugir ao ambiente estreito da corporação.

RAUL JUSTE LORES

Constroem-se prédios por todos os lados, de torres envidraçadas com elevadores inteligentes aos conjuntos em série do programa federal Minha Casa, Minha Vida. Também estão na prancheta, supõe-se, obras icônicas para abrigar a Copa e os Jogos Olímpicos, com farto dinheiro público. Mas pouco se sabe sobre quem escolheu os arquitetos responsáveis, que cara terão essas obras, se melhorarão nossas cidades -e como o "Made in Brazil" será visto lá fora.
Os arquitetos no Brasil ainda sofrem de preocupante anonimato. Mas parte da afonia da classe é compensada por livros e revistas que dão visibilidade à renovação na área e tratam de mostrar ao mundo que existem mais arquitetos brasileiros além de Oscar Niemeyer e Paulo Mendes da Rocha.
Desde fevereiro, a revista "Monolito" [ed. Monolito, 152 págs., R$ 79], de Fernando Serapião, dedica edições a arquitetos elogiados no meio e premiados, mas invisíveis aos não iniciados, como Angelo Bucci e Andrade e Morettin. A mais recente edição evita o paulistanocentrismo e vai a Belo Horizonte mostrar a competência dos vários escritórios mineiros responsáveis pela maioria dos belos pavilhões do centro de arte contemporânea de Inhotim (MG).

FERRAZ Neste mês, dois lançamentos vêm combater a escassez de livros sobre arquitetura. Já no título de "Arquitetura Conversável" [Azougue, 242 págs., R$ 48], o arquiteto Marcelo Ferraz, 56, demonstra que não quer ficar no jargão e no mundinho um tanto endogâmico dos arquitetos. No volume, o discípulo de Lina Bo Bardi (1914-92) -com quem trabalhou por 15 anos, a partir da criação do Sesc Pompeia (1977-86)- discute de patrimônio histórico e condomínios fechados a shoppings e ao calçamento de Paraty (RJ).
"O absurdo da vida que levamos nas grandes cidades é uma das questões fundamentais dos dias de hoje", escreve. Entre amigos, sabemos nos queixar da violência, do trânsito, dos alagamentos e do estresse, mas nunca ou raramente tocamos na possibilidade de mudança ou solução dos problemas urbanos, "da falta de abrigo de ônibus à calçada esburacada".
O livro é uma coleção de entrevistas e artigos, alguns inéditos, outros publicados em jornais (incluindo a Folha). Para Ferraz, o Pelourinho revitalizado fracassou porque foi transformado em uma "Disneylândia histórica".
"A cidade tem que ser boa para o cidadão e para aquele que mora nela. Aí, sim, ela vai ser boa para o visitante." Acrescenta que "faltou diálogo com a comunidade, que em grande parte foi embora do centro histórico" de Salvador.
Critica o purismo no patrimônio histórico: para ele, um documento congelado no tempo perde sua razão de existir. "Questão de antiguidade não é valor para distinguir nada, como se a humanidade nunca tivesse feito um monte de porcarias." E, ao elogiar a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), descasca o calçamento empedrado da cidade: Toledo (Espanha), Assis (Itália) e Évora (Portugal) têm áreas com pavimentação regular e materiais modernos. "Precisamos de soluções adequadas."

SESC A lição de Lina, em particular a transformação de uma antiga fábrica no Sesc Pompeia, é o foco de alguns dos melhores trechos do livro. Em vez de "centro cultural" ou "esportivo", Lina chamava o lugar de "centro de lazer": para ela, não se faz cultura por decreto, e "cultura" era palavra que deveria ser posta em quarentena para recuperar seu sentido profundo. Já "esportivo" implica competição, rumo nocivo em uma sociedade já competitiva demais.
O centro de lazer traz outros ensinamentos: levar a vida pública para lá, com sua rua aberta e convidativa, o deque de madeira que vira praia de paulistano, o restaurante com mesas coletivas, o automóvel banido com rigor. "Quem não guarda uma boa lembrança desse lugar?", pergunta o autor.
Ele evita polêmicas, porém, ao não questionar o atual imobilismo da instituição, que há décadas não ousa repetir a experiência vanguardista e a qualidade arquitetônica obtidas no Pompeia (basta comparar com as unidades de Pinheiros e do Bom Retiro).

CLAREIRAS Em outro capítulo, diz que "São Paulo é tão densa que só conseguiremos melhorar se abrirmos clareiras, fizermos praças, demolindo muita coisa para fazer uma cidade melhor".
Um texto defende seu malogrado projeto para um shopping ao lado do Teatro Oficina, de Lina, fonte de briga ruidosa com o diretor Zé Celso Martinez Corrêa. Ferraz diz ter imaginado um espaço convidativo, como o Conjunto Nacional ou a Galeria do Rock, "nada de muros e labirintos de luz artificial, sufocantes espaços de negação da cidade". Segundo ele, ao contrário do que quer Zé Celso, "não há registros de que Lina tenha projetado um teatro de estádio".
Alguns debates que Ferraz propõe estão longe do consenso entre arquitetos progressistas. Ele critica a consolidação de antigas favelas e sua transformação, segundo ele, "por decreto", em bairros, "não importando aí a qualidade dos espaços e por consequência, da vida que ali se desenvolve". Chama a urbanização de favelas de "medidas paliativas" que consolidam e oficializam o desconforto urbano.
Depois de tantas décadas em que os arquitetos repetiram que "a arquitetura não é importante" e que a militância política se sobrepunha ao debate arquitetônico, Ferraz provoca: "O arquiteto hoje é quase inútil, saiu de pauta, não existe união e organização da categoria. É muita vaidade para pouca mixaria", lamenta. Nos últimos anos, Ferraz projetou museus, como o Rodin, de Salvador, e o do Pão, no Rio Grande do Sul, e assiste à construção de sua Praça das Artes, no Vale do Anhangabaú.

BAROSSI A Escola da Cidade cria seu próprio selo e lança com a Hedra volume bilíngue sobre o arquiteto Antonio Carlos "Tata" Barossi. Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Barossi, 57, não poderia ser menos "star architect". Suas obras são pequenas e difíceis de fotografar, muitas encaixadas em terrenos íngremes, sem querer chamar atenção e ofuscar o resto. As agências bancárias, escolas públicas e pequenas casas que projetou dificilmente viram matéria-prima para o que faz sucesso em revistas internacionais.
Ele dedicou boa parte de seu tempo ao ofício de professor de gerações de arquitetos; alguns hoje dirigem a própria Escola da Cidade. Em "Antonio Carlos Barossi" [org. Carlos Augusto Ferrata e Cesar Shundi Iwamizu, Editora da Cidade/Hedra, 194 págs., R$ 65], Tata reafirma o papel do professor em sala de aula: "O professor traz a vivência e o conhecimento, o repertório e a experiência". Ele rememora o Galpão, na Vila Madalena, mix de cooperativa, estúdio e república de uma geração de alunos da FAU. O Galpão foi sua casa por seis anos, além de local de trabalho, com idas e vindas, até o final dos anos 90.
A sociabilidade daqueles tempos parece ter sido uma peça-chave em sua formação: entre seus ex-colegas na FAU, estão eminentes não arquitetos, como o cineasta Fernando Meirelles, os músicos Paulo Tatit e Arrigo Barnabé, o fotógrafo Gal Oppido e o crítico de gastronomia da Folha Josimar Melo.

AUTOCRÍTICA Em entrevista publicada no livro, o arquiteto faz uma boa autocrítica ao ensino da FAU nos anos 70. "As referências eram muito limitadas à produção brasileira", avalia. "Na FAU, os professores davam pouca importância à produção internacional." Ele menciona os trabalhos de Norman Foster e Renzo Piano, praticamente ignorados na escola, e cita o colega Ferraz como um dos "descobridores", por lá, do grande arquiteto mexicano Luis Barragan. Também relata certa resistência, entre arquitetos e professores da FAU, a outra "estrangeira": Lina Bo Bardi, outsider na competição das escolas paulista e carioca.
A obra dedicada a Barossi, com 132 fotos e 74 desenhos técnicos, é a primeira de uma coleção produzida por professores e alunos da Escola da Cidade, no centro velho, vizinha à definhada sede do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB). As próximas edições são dedicadas a Solano Benítez e Salvador Cândia. Apesar do abuso do jargão acadêmico e do arquitetês -idioma que mais aliena do que aproxima a arquitetura da sociedade-, o livro traz uma voz apaixonada e ética para debater projeto e urbanismo. Em tempos de entressafra internacional e de um Ministério das Cidades que rivaliza com o da Pesca em irrelevância, os livros de Ferraz e Tata vêm a calhar para relembrar a importância da boa arquitetura brasileira.

Os arquitetos no Brasil ainda sofrem de preocupante anonimato. Mas parte da afonia da classe é compensada por livros e revistas que dão visibilidade à renovação na área

Discípulo de Lina Bo Bardi, Marcelo Ferraz demonstra em livro que não quer ficar no mundinho endogâmico dos arquitetos. Discute de patrimônio histórico a condomínios fechados

O volume dedicado a Antonio Carlos "Tata" Barossi traz uma boa autocrítica do arquiteto ao ensino da FAU nos anos 70: "As referências eram muito limitadas à produção brasileira"



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