São Paulo, domingo, 17 de abril de 2011

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CIÊNCIA

O verde e o maduro

Quando a ecologia vira matéria-prima literária

RESUMO
O ambientalismo e o aquecimento global tornaram-se tema recorrente em obras de ficção de língua inglesa, do britânico Ian McEwan ao norte-americano Jonathan Franzen. Ao entrar na composição psicológica e moral dos personagens, a causa do clima ora resulta em boa literatura, ora produz romances esquemáticos.

MARCELO LEITE

CADA TEMPO TEM o suspense que merece. Depois dos thrillers psicológicos e criminológicos, chegou a época dos ecológicos.
Os temas ambientais se disseminaram pelos romances anglo-americanos. O verde cresceu e apareceu, alcançou a maioridade e obtém agora um certificado de emancipação lavrado pelo mercado literário.
Não é trivial fixar o momento inaugural dessa onda, mas seguramente Michael Crichton foi um dos primeiros a surfá-la. Não tanto com seu "Jurassic Park" ("Parque dos Dinossauros"), ainda circunscrito aos terrores brotados da caixa de Pandora genética, mas com "Estado de Medo" [trad. Aulyde Soares Rodrigues, Rocco, 624 págs., R$ 69]-um quase risível romance de antipropaganda, dedicado a refutar a noção de mudança do clima planetário desencadeada pelo homem.
Crichton começou, mas com o pé esquerdo. Foi tão aplicado na tarefa que até referências científicas ofereceu no romance, obviamente escolhidas a dedo pelos "mercadores de dúvidas" (céticos profissionais do antitabagismo, da chuva ácida, do aquecimento global...) de que fala Naomi Oreskes. Conseguiu convencer o então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, que chegou a alistá-lo como conselheiro científico. Por incrível que pareça.
Mais nuançados, bem construídos e divertidos são os livros de uma nova safra verde. Outros do gênero existirão, mas esses bastam para discernir alguns traços salientes na onda.
Edward O. Wilson, em seu romance de estreia, "Anthill" (formigueiro) [WW Norton, 336 págs., R$ 57,14], talvez pela própria liberdade de novato, é o mais inovador. Biólogo consagrado, ganhador de dois prêmios Pulitzer de não ficção com livros sobre comportamento e formigas, formulador de três conceitos férteis da ciência contemporânea (sociobiologia, biodiversidade e biofilia): ninguém melhor do que ele para entronizar o próprio ambiente como personagem -na pessoa de Nokobee, se é que assim se pode falar.
Nas margens desse lago fictício no sul do Alabama, Raphael Semmes Cody acampava na infância. Futuro ecólogo e herói do livro, Raff se alia com o demônio -especuladores imobiliários- para salvar da destruição aquele pedaço de savana com pinheiros e muitas formigas.
O protagonismo de Raff enfrenta a concorrência dos próprios artrópodes no livro, mais exatamente do superorganismo (a Supercolônia) que se forma e domina os barrancos de Nokobee após a ocorrência de uma mutação que afeta o destino das rainhas e transforma o grupo numa potência expansionista. Sua saga ocupa as 70 páginas de "As Crônicas do Formigueiro", um romance dentro do romance "escrito de modo a apresentar a vida desses insetos, tão exatamente quanto possível, do ponto de vista das formigas".
O resultado literário é curioso, para não dizer exótico. Se nas páginas de "Estado de Medo" são os personagens que deitam falação científica, aqui é o narrador. Ninguém, em sã consciência, esperaria topar, num romance -mesmo escrito por um sociobiólogo de quatro costados-, com um trecho destes:
"Não deveria haver nada de surpreendente sobre a crise iminente da Supercolônia. Cada espécie avança sobre uma corda bamba pelo tempo ecológico. Uma vez lançada nele, só existe um caminho, seguir em frente, e milhares de modos de cair. Essa é a maneira pela qual a evolução opera, e é assim que o mundo natural como um todo se governa. Os instintos que movem o formigueiro são aqueles que tiveram sucesso no passado. Os genes que os programaram foram selecionados por eventos particulares no passado. Nem os instintos nem os genes, contudo, tinham meios de planejar o futuro".
O bom-mocismo, a aliança fáustica do herói ambientalista com o diabo capitalista, o final feliz e a paixão cunhada na infância por um ecossistema lacustre se repetem em "Freedom" [Farrar, Straus & Giroux, 576 págs., R$ 36,64], de Jonathan Franzen (é difícil contornar a sensação de que haverá aí mais do que uma coincidência). Walter Berglund quer salvar a mata em torno do lago Sem Nome, habitat de pássaros nos montes Apalaches, e também o mundo, com uma campanha para que os jovens renunciem a ter filhos. Termina bem-sucedido no primeiro objetivo, mas engravida a auxiliar décadas mais jovem e tenta convencê-la a não abortar, no que fracassa, mas essa será a menor de suas desventuras.
"Freedom" está anos-luz acima de "Anthill" como obra literária, a começar pela consistência dos personagens. Walter sofre a competição não de formigas e comportamentos estereotipados nos genes, mas de seres de carne e osso tipográficos: Patty, sua mulher, antiga estrela do basquete universitário que se torna dona de casa entediada no subúrbio, e Richard Katz, o melhor amigo, roqueiro de sucesso tardio e mulherengo contumaz.
O triângulo poderia aparecer como compilação esquemática e geracional das contradições da contracultura (drogas e liberdade sexual que escravizam, amor pela natureza na era da devastação, rebeldia seguida de sucesso profissional), mas são os conflitos pedestres, como o adultério, que infernizam as suas vidas.
Algo fundamental, no entanto, Franzen partilha com Wilson: tomar o sentimento ecológico como indicador de pureza de intenções ou, pelo menos, como reduto de convicções éticas num mundo subjugado pelo consumo e pelo hedonismo. Raff e Walter são os mocinhos de um planeta ameaçado por bandidos.
Ian McEwan adiciona um garrafão de ácido a essa mistura adocicada. Seu Michael Beard, em "Solar" [trad. Jorio Dauster, Companhia das Letras, 344 págs., R$ 48], é um ser desprezível, movido quase que exclusivamente por interesses pessoais, em geral mesquinhos. Eles e algumas circunstâncias encaminham o físico detentor de um Nobel, mas em ocaso, para o estrelato garantido aos campeões do combate ao aquecimento global. Pouco importa, para a credulidade geral, que Beard seja um escroque, capaz de se apropriar da invenção de uma fonte de energia revolucionária -fotossíntese artificial- criada por um aluno e de incriminar o amante da mulher pela morte do rapaz.
Beard engana muita gente por muito tempo, o que sugere uma suspeita generalizada acerca das motivações de cientistas militantes contra a mudança do clima global. Mas se equivocará quem tentar fabricar um paralelo entre Crichton e McEwan. O segundo avança com seu romance a ideia saudável de que pesquisadores não são impelidos por propósitos angelicais, mas não põe sob ataque a própria ciência do aquecimento global. Ao contrário, Beard prospera no mercado de soluções para o problema, dado como uma realidade. "Solar" não é um romance de tese, como "Estado de Medo" -é só um romance que pune o bandido com a morte, esquemático e decepcionante para quem produziu uma obra-prima com a engenhosidade de "Reparação".
Ao lado de Franzen, quem se sai melhor na dissecação moral do duplo vínculo contemporâneo com o ambiente é T.C. Boyle, em "When the Killing's Done" (quando a matança estiver consumada) [Penguin USA, 384 págs., R$ 41,20]. Ele vai direto ao ponto ao adotar o artifício de segregar os componentes dessa mescla duvidosa -sentimentalismo e irracionalidade de um lado, compreensão científica e valores baseados em evidências de outro- em dois personagens. Alma Boyd Takesue é a oficial do Serviço Nacional de Parques encarregada de convencer o público da necessidade de exterminar pragas ambientais introduzidas pelo homem -ratos e porcos, nada menos- em ilhas paradisíacas ao largo de Santa Barbara, Califórnia. Dave LaJoy é o fanático defensor dos direitos dos animais que lhe faz guerra, com "dreadlocks", vegetarianismo, pichações e terrorismo.
O produto é mais do que legível. Boyle nada de braçada no mar encapelado do entretenimento de boa qualidade. Nada é perfeito, contudo, nem o ecossistema, nem o autor de romances. No final, morrem todos os malvados: ratos, porcos e radicais da estirpe de LaJoy.

Edward O. Wilson, em seu romance de estreia, "Anthill", é o mais inovador. O resultado literário é curioso

Assim como Wilson, Jonathan Franzen toma o sentimento ecológico como indicador de pureza de intenções

McEwan avança com seu romance a ideia de que os pesquisadores não são impelidos por propósitos angelicais


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