São Paulo, domingo, 17 de abril de 2011

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

As tais fotografias

Brasília, 1958

ALBERTO VILLAS

A GUERRA FRIA estava na ordem do dia. Enquanto Nikita Khrushchev transformava-se no poderoso chefão da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, os americanos mandavam para o espaço o Explorer 1. Espiar era preciso. Em campo, com Gilmar no gol, Garrincha, Didi, Pelé, Vavá e Zagallo no ataque, o escrete canarinho dava um show de bola na Suécia.
Enquanto o escritor Boris Pasternak, autor de "Dr. Jivago", surpreendia o mundo recusando o Prêmio Nobel de Literatura, um cantor baiano de 27 anos e de nome João deixava o país de queixo caído cantando "Chega de Saudade" nas ondas médias dos rádios.
Era 1958, e foi nesse clima que o meu pai embarcou para o Planalto Central levando nas mãos uma mala Ika forrada de cetim e, na cabeça, o sonho de montar o serviço de meteorologia na futura capital do país.
- Cheguei cuspindo tijolos!
Essa foi a primeira notícia que tivemos dele, depois de dias de viagem por estradas de muita poeira vermelha. Dentro da mala, ele levava uma luxuosa Rolleiflex com capa de couro marrom e alguns filmes Kodak em branco e preto.
- Fiz as primeiras chapas!
Foi a segunda notícia que tivemos dele. Meu pai era Juscelino roxo. A ponto de cantarolar todos os dias debaixo do chuveiro "como pode o peixe vivo viver fora da água fria", a canção preferida do presidente bossa-nova.
Durante 15 dias, ele ficou por lá -comendo o pão que o diabo amassou, saberíamos mais tarde. Dormindo em redes improvisadas e acordando ao som de papagaios pulando de galho em galho das árvores secas do cerrado, praticamente sem rádio e sem notícias das terras civilizadas.
Minha mãe, aflita, respondia a cada parente que perguntava por onde andava o meu pai:
- Naquele fim de mundo!
Depois de planos, projetos e fotografias, ele começou a sua viagem de volta a Minas Gerais. Uma viagem lenta e gradual, desviando-se de antas e capivaras que, a todo momento, insistiam em passar à frente do seu Land Rover.
Um dia, finalmente, ele chegou à casa da rua Rio Verde, em Belo Horizonte, repetindo aquela mesma frase que criou quando foi tão longe -a tal "cheguei cuspindo tijolos!". O velho era poeira dos pés à cabeça, e sua mala, quase um enorme tijolo.
Dentro dela, além de um vidro de caju em calda comprado no interior de Goiás e cuidadosamente enrolado em roupa suja, estava intacta a Rolleiflex. E, num saquinho de pano de guardar confete, quatro filmes Kodak batidos.
No dia seguinte, logo cedo, ele pegou a lotação e foi até a cidade -era assim que chamávamos o centro- para revelar os filmes. Não via a hora de reunir todos os filhos em volta de uma mesa colonial que ficava no meio da copa e mostrar as tais fotografias de um canteiro de obras chamado Brasília.
Foram sete dias úteis de espera para que as primeiras imagens do sonho de JK ficassem prontas. No início de uma noite de 1958, ele chegou em casa com brilho nos olhos e um envelope pardo dentro da pasta de couro.
Na mesa de jacarandá, foi colocando as fotos e pedindo encarecidamente para que ninguém colocasse os dedos. Não queria que elas manchassem. Primeiro, surgiu uma do Palácio da Alvorada, já com os arcos geniais de Oscar Niemeyer.
O meu pai juntou os dois polegares e os dois indicadores e mostrou com suas mãos de onde viera a ideia do arquiteto.
A segunda mostrava dois esqueletos, duas torres gêmeas que abrigariam, de um lado, uma bacia virada para baixo, e do outro, uma virada pra cima, respectivamente, o Senado e a Câmara dos Deputados. Foram as duas únicas fotografias que sobreviveram nos últimos 53 anos para contar essa história.


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