São Paulo, domingo, 17 de julho de 2011

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RÉPLICA

Narração e silêncio

O mutismo da literatura de testemunho

RESUMO
Teriam os soldados alemães voltado "emudecidos" da Primeira Guerra Mundial, conforme a célebre observação de Walter Benjamin, ou esse seria um clichê intelectual, como apontou Marcelo Coelho na Ilustríssima? A crítica Jeanne Marie Gagnebin comenta o texto de Coelho e os significados da frase de Benjamin.

JEANNE MARIE GAGNEBIN

TODA QUARTA-FEIRA, leio com prazer a coluna de Marcelo Coelho na Ilustrada. Seus textos não só são interessantes como cheios de ternura e de humor. Em geral, partem de uma situação cotidiana para nos fazer pensar sobre ela com um olhar perspicaz. Evitam tanto o narcisismo quanto as polêmicas fáceis, dois defeitos tão comuns no meio jornalístico (não só nele!). Sempre fico feliz que haja ainda jornalistas dignos e irreverentes como Marcelo.
Fiquei, portanto, intrigada quando vi seu artigo mais longo nas páginas centrais da Ilustríssima de 26/6. E não queria, com essas observações, iniciar mais uma "polêmica", mas apontar para algumas reflexões suscitadas pelo artigo, a saber, a questão da literatura e da guerra, em particular a afirmação da impossibilidade de narrar acontecimentos violentos, que se costumam chamar, na esteira de Freud, de traumáticos.
O artigo analisa vários livros recentes ou recém-traduzidos, de poemas de Guillaume Apollinaire a "Literatura e Guerra", coletânea de ensaios organizada por colegas da UFMG, passando por Sebald, Remarque e Barker. Como ainda não li essas obras, não pretendo me deter nelas.
O que me interessa é o quadro construído por Marcelo entre a teoria da narração (e de sua impossibilidade) em Walter Benjamin e seus desdobramentos teóricos na "literatura de testemunho", em particular depois da Segunda Guerra Mundial e da Shoah -palavra cujo uso se estabeleceu depois do filme homônimo de Claude Lanzmann, em detrimento do termo Holocausto, criticado por suas conotações sacrificiais.

CACOETES Marcelo demonstra irritação com dois cacoetes dos meios acadêmicos e jornalísticos: o abuso das citações de Benjamin e um certo gozo em afirmar e reafirmar a "irrepresentabilidade" do horror. Compartilho plenamente dessa irritação, que me incita a tentar pensar de maneira mais cuidadosa sobre esses temas. Começando pelo último, o tema da "irrepresentabilidade".
O paradoxo do "indizível" consiste, em particular em Primo Levi, evocado por Marcelo, em reconhecer que aquilo que pode -e deve- ser narrado não é o essencial, porque quem "fitou a górgona não voltou para contar ou voltou mudo" (Primo Levi, em seu último livro, "Os Afogados e Os Sobreviventes"), e em saber que, portanto, só se pode testemunhar sabendo dessa falha inerente ao relato. Isso não impede o testemunho, o relato, mas nele inscreve uma não-coincidência estruturante.
Agora, como escreve Giorgio Agamben (outro autor na moda!), não podemos nem devemos confundir o "irrepresentável" ou o "indizível" da dolorosa literatura de testemunho com outras figuras do indizível na tradição filosófica e literária, como as belas figuras da teologia negativa (já que Deus não se deixa prender em nossas palavras) ou da Estética do Sublime (que implode as categorias clássicas do Belo).

PARADOXO No "paradoxo de Primo Levi" (expressão de Agamben em "O que Resta de Auschwitz"), a testemunha não pode dizer o que mereceria ser dito, porque isso pertence à morte ou, então, à condição inumana de muitos seres humanos, nos campos de concentração, os "muçulmanos", presos sem rosto que abdicaram da luta pela vida, mas também não têm a energia de morrer. O "paradoxo", justamente, é que aquilo que não pode ser dito, no entanto, deve ser lembrado, testemunhado, relatado e, nesse sentido amplo, dito, por uma obrigação ético-política de não-esquecimento.
Com isso, tento responder, em parte, à questão que Marcelo Coelho coloca no seu artigo ao perguntar: "De resto, como conciliar a dita mudez dos soldados com o fato de que romances, poemas e relatos autobiográficos acabaram sendo escritos?".
A questão está na sequência da citação de Benjamin que afirma, por duas vezes, nos ensaios "Experiência e Pobreza" (1933) e "O Narrador" (1936), que "as pessoas [die Leute] tinham voltado mudas do campo de batalha", "não mais ricas -mais pobres em experiência comunicável", e que isso não foi desmentido pelos "livros de guerra que inundaram o mercado literário nos anos seguintes", que "não continham experiência que passa de boca em boca" (modifiquei a tradução de Sérgio Paulo Rouanet em razão da palavra "experiência" estar no singular em alemão).
Benjamin faz essa constatação depois da Primeira Guerra Mundial (1914-18), sem saber, naturalmente, da Segunda (1939-45), mesmo que a pressinta já no ensaio de 1933, escrito no exílio, depois de Hitler assumir a chancelaria do Reich. Coelho observa que essa sentença de Benjamin é citada de maneira acrítica, como uma frase profética que se realizaria com a "literatura de testemunho", notadamente depois da Shoah.

APROPRIAÇÕES Que Benjamin seja um autor citado a torto e a direito, como se suas frases emprestassem um brilho teórico inquestionável a descrições cuja consistência teórica, de fato, é questionável, isso é bem verdade. O mesmo acontece, aliás, com outros autores na "moda", como Nietzsche, Deleuze ou Foucault.
O estilo muitas vezes fragmentário e as formulações ousadas de Benjamin contribuem para essas apropriações, que confundem, muitas vezes, a "paciência do conceito" (para citar um autor fora de moda!) com a justaposição de conceitos ditos teóricos ou filosóficos e de descrições, nem sempre precisas, de situações singulares e históricas concretas. Nessas aplicações e justaposições, nem a teoria, nem a singularidade do concreto se saem bem.
Vejamos de mais perto qual é a tese de Benjamin. A questão central é a definição do conceito de "experiência", base da narração tradicional em Benjamin, isto é, base de uma narrativa primeiramente oral ("de boca em boca"), que pertence à cultura comum de um grupo e que se transmite de geração em geração. Na esteira de Lukács ("Teoria do Romance", 1920), Benjamin alude inúmeras vezes à "Odisseia" como modelo basilar da tradição literária ocidental, mas fala também de coletâneas de narrativas como as "Mil e Uma Noites".
Quanto à "experiência" ["Erfahrung"], a própria palavra alude -no radical fahr, de que também deriva "fahren", viajar, atravessar um país- à temática da viagem e da passagem por provações, à viagem da vida ou do pensar (na "Fenomenologia do Espírito" de Hegel), travessia exemplar que pode ser retomada e dita pela atividade narradora.

NARRAÇÃO Como Lukács -e, mais tarde, Adorno-, Benjamin estabelece uma relação entre as transformações ocorridas na história dita real e as maneiras de contar e narrar dos homens, seja no cotidiano da vida, seja na literatura e na história. A narração tradicional, de origem coletiva e oral, nasce em formas de organização social pré-capitalista, com ritmos mais lentos e orgânicos de produção e de transmissão, organização solapada pelo desenvolvimento do capitalismo industrial.
Esse processo de destruição atingiu sua maior visibilidade na Primeira Guerra, no aniquilamento dos próprios homens pelas técnicas de destruição, por eles mesmos desenvolvidas no processo de produção e acumulação do capital. Não por acaso, o tema da "técnica" e de sua crítica vai se tornar tão preponderante na reflexão filosófica e política do século 20 até hoje.
Se os soldados voltaram "emudecidos" ["verstummt"] das trincheiras, se Freud teve, na mesma época, de tratar um novo tipo de paciente, os "traumatizados" que não conseguiam contar de maneira tranquila, mas só tremer ou ter pesadelos, é porque as formas simbólicas da narração tradicional, comunicável e transmissível em palavras e ritmos compartilhados, frutos de uma elaboração paciente num longo processo comum, não dão mais conta da violência e da velocidade do vivido.
Isso não significa que não se possa procurar por outras formas de escrita, em particular literária, de outras formas narrativas e artísticas, certamente menos harmoniosas e totalizantes que as tradicionais, mas que Benjamin, com sua leitura de Kafka, Proust, Döblin ou do surrealismo francês, analisa e defende. Tampouco significa, como Coelho parece supor no fim do seu artigo, que o silêncio seja por Benjamin justificado como solução.
Certamente, ele concordaria em dizer, como o médico do romance "Regeneration", citado por Marcelo, que a "melhor terapia é o testemunho". Só que se tornou difícil não só encontrar as palavras para testemunhar mas também, como Primo Levi evoca no centro de "É Isto um Homem?", no pesadelo que atormenta todos os presos de Auschwitz, encontrar outros homens fraternos o bastante para suportar essa narrativa entrecortada e dolorosa, outros que não sejam indiferentes, que não se levantem e vão embora.

"Se formas tradicionais de narração não dão mais conta da violência e da velocidade do vivido, não significa que o silêncio seja justificado como solução por Benjamin"

"Não podemos e não devemos confundir o "irrepresentável" da dolorosa literatura de testemunho com outras figuras do indizível na tradição filosófica e literária"

"O 'paradoxo' de Primo Levi é que aquilo que não pode ser dito deve ser lembrado, relatado e testemunhado,por uma obrigação ético-política denão-esquecimento"

"O processo de destruição da narração tradicional teve sua maior visibilidade na Primeira Guerra, no aniquilamento dos próprios homens pelas técnicas de destruição"


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