São Paulo, domingo, 17 de julho de 2011

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IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Da dívida que temos para com os cães

MARCÍLIO FRANÇA CASTRO

Não é uma questão de amizade -nada que diga respeito à suposta aliança entre eles e os homens. Talvez se trate apenas de mais um capricho da natureza. O fato é que, se não fosse a obstinação desses animais, senão fosse o hábito tolo com o qual atravessaram os séculos e espalharam sua fama, o de, abanando o rabo, vasculhar e cheirar por aí, aparentemente sem propósito, os assoalhos e os cantos, as ruas, as calçadas, os portões, os becos, os lotes e os tocos de pau, as frestas, as grades e os ladrilhos, os postes e os bueiros, os entulhos e as poças, e ainda, com a mesma displicência com que lambem o sapato de um desconhecido ou cochilam à sombra, a margem fatal das rodovias; se não fosse o espírito tenaz desses bichos, que farejam como se espera de sua raça o piso em que as pessoas cospem e, dessa maneira, vão construindo lentamente em sua débil lembrança, saturada de cheiros e vultos, o mapa das superfícies rasteiras, se não fosse, pois, a memória dos cães, o mundo -não havendo mais quem o imaginasse ao rés-do-chão- simplesmente desmoronaria.


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