São Paulo, domingo, 19 de junho de 2011

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INTERNACIONAL

Jogo de cena

A Guerra Fria ainda está em cartaz no paralelo 38

RESUMO
Palco de um dos episódios mais tensos da Guerra Fria (a divisão da Coreia em duas), o perímetro onde se localiza a zona desmilitarizada entre a Coreia do Norte e a do Sul abriga uma "área de segurança compartilhada", onde cada um dos lados procura demonstrar sua superioridade com histriônicas manobras militares.


LUCAS NEVES

FAÇAMOS DE SAÍDA a ressalva: a percepção deste repórter pode estar contaminada pelo período de dois anos na cobertura de artes cênicas. Ainda assim, parece impossível completar o tour de 2h30 pela área de segurança compartilhada (JSA, na sigla em inglês), dentro da zona desmilitarizada na fronteira entre a Coreia do Sul e a do Norte, sem divisar ali uma calculada "mise-en-scène".
A área inabitada -um círculo com apenas 800 m de diâmetro-, nos arredores de Panmunjeon, trincheira final da Guerra da Coreia (1950-53) e sede das negociações para a trégua, é o único ponto da linha divisória entre os dois países em que as tropas sul e norte-coreanas se encaram.
Fora desse perímetro, nos 248 km de extensão da fronteira assentada sobre o paralelo 38, os soldados devem recuar dois km para dentro de seus respectivos territórios, conforme prevê o estatuto da zona desmilitarizada, instituída com o armistício. A região é monitorada por um comando militar das Nações Unidas.
A brecha do face a face abre caminho para um jogo cênico de expressões crispadas, olhares enviesados e gestual prenhe de conotações subliminares. O antagonismo, este, é bem explícito, e se apresenta em figurino deliberadamente maniqueísta -como museu vivo da Guerra Fria que é. Os atores ensaiam a frieza do "Ricardo 3º" shakespeariano, mas a dramaturgia urdida nos gabinetes de Kim Jong-il e Lee Myung-bak é de (rasas) montagens infantis.

PRIMEIRO ATO Voltemos ao primeiro ato. Na porção final dos 50 km que separam Seul da JSA, erguem-se, à esquerda da paisagem, às margens do rio Imjin, duas barreiras paralelas de arame farpado e torres de observação equipadas com altofalantes e câmeras.
Quando o ônibus que leva a delegação de jornalistas sul-americanos para no primeiro posto de controle de civis, sobe um fiscal para checar uma lista de nomes e passaportes. A guia coreana abaixa a câmera do cinegrafista uruguaio e pede, em tom levemente alterado: "Só tirem fotos quando eu disser que é permitido, por favor". E emenda, para o cameraman: "Filmou algo?". "Um pouco", ele entrega, com um toque de dissimulação. Terá sido o primeiro espasmo de tensão do dia.
Na chegada ao centro de acolhimento ao visitante da JSA, construção de três andares que abriga um museu sobre a contenda Norte-Sul e um auditório, o oficial americano Ly Vang (do comando da ONU) assume a função de cicerone.
Recita um almanaque histórico da região conflagrada. Eis uma pílula: há 1.292 marcos ao longo da fronteira, um a cada 200 m. A orientação de "não se comunicar verbalmente ou não verbalmente com os soldados norte-coreanos" entrecorta a numeralha.
No ônibus que circula dentro da área de segurança compartilhada, Vang aponta um campo de golfe descrito pela revista "Sports Illustrated" como o mais perigoso do mundo -por ser cravejado de minas- e pede: "Não tirem fotos, por favor. Não queremos que a Coreia do Norte saiba mais do que já sabe". O temor é o de as imagens irem parar em mãos comunistas.
Na primeira parada, em frente à Freedom House (casa da liberdade), paradoxalmente, Vang amplia o leque de restrições: "É proibido gesticular, apontar ou acenar para o Norte. Tudo pode ser usado como propaganda contra o Sul". Aqui começará o segundo ato do grande teatro itinerante.
O imponente prédio envidraçado, construído em 1998 para abrigar reuniões sobre o status da trégua e eventuais reencontros de famílias separadas pela guerra -o que o Norte nunca permitiu, segundo Vang-, encara o seu análogo comunista, o cinzento Panmungak. Na prática, ambos funcionam como peças de propaganda de seus respectivos regimes.
Ao ver o gabarito da edificação do Sul, o estafe de Kim Jong-il tratou de erguer um terceiro andar em seu austero pavilhão sessentista.

CASA DE LOUCOS No meio dos 80 m que separam os dois prédios, passa a linha da fronteira entre as Coreias, sinalizada por uma tripa de concreto ladeada por uma faixa de areia, ao norte, e por um tapete de pedras, ao sul. Três casinhas azul-celeste, controladas por Seul, ocupam o centro da área, exatamente sobre o marco divisório. Nas extremidades, situam-se duas construções cinzas mantidas por Pyongyang.
À frente de jornalistas perfilados na porta da Freedom House, Vang aponta (ele pode), numa elevação de terreno do lado norte-coreano, uma edificação que o Sul apelidou de "monkey house" (algo como "casa de loucos"). Segundo o americano, trata-se oficialmente de uma casa de recreação para os soldados comunistas, degenerada em palco de provocações endereçadas ao vizinho. Quando as cortinas se abrem, dedos fazendo menção a degolas protagonizam a representação muda.
Vang então conduz o grupo ao interior de uma das casinhas azuis, usadas como salas de reunião entre os beligerantes. Ali, uma fileira de microfones atravessa uma mesa retangular de madeira: é a tradução "indoor" da fronteira. Na ponta esquerda, a compleição petrificada de um altíssimo soldado sul-coreano não sucumbe ao burburinho. Imóvel, de punhos cerrados e óculos escuros, ele é espiado, pelas janelas, por oficiais norte-coreanos que circundam o local. Em sua intimidação postiça, os olhares que vêm de fora nada devem aos dos vilões unidimensionais da série "007".
"Agora vai começar a partida de pôquer. Isso aqui é um filme", brinca, na saída, um jornalista de um grupo americano que se juntou ao quinteto sul-americano. O jogo de cena se estende à área externa. No corredor entre as casas, soldados sul-coreanos ficam perfilados de frente para o Norte. Seus oponentes ora encaram-se, ora voltam-se para o Panmungak -a fim de evitar deserções rumo ao Sul, sugerem os capitalistas.

SEM VOLTA O ônibus agora segue até o "checkpoint" 3, de onde é possível avistar a "bridge of no return" (ponte sem volta), via pela qual, após a trégua (o conflito nunca acabou oficialmente), cerca de 82 mil prisioneiros de guerra comunistas regressaram para o Norte e aproximadamente 13 mil para o Sul. O nome vem do fato de os libertos não poderem se arrepender, a meio caminho, da decisão de voltar para seus territórios de origem.
Mais adiante, aos pés de uma bandeira que serpenteia a 160 m de altura, ainda dentro do perímetro da zona desmilitarizada, ergue-se a vila de Kijong-dong, um endereço fantasma, segundo Vang, onde os prédios não têm piso e ninguém vive. Em suma, uma cidade cenográfica, construída na esteira do armistício, que previa o estabelecimento de um povoado de cada lado da fronteira.
O da porção sul atende por Taesong-dong e tem 212 habitantes que se dedicam quase que exclusivamente ao cultivo de arroz, soja e ginseng (erva usada em chás e remédios). O que não conseguem vender no mercado é comprado pelo governo. Há ali pouco mais do que uma capela e uma escola primária. É preciso estar em casa às 21h e fechar portas e janelas à meia-noite, impreterivelmente. A cem metros do chão, a bandeira sul-coreana resguarda o vilarejo.
"Usamos a nossa cidade para plantar; a deles está a serviço da propaganda e de sei lá mais o quê", desdenha o americano Vang.
A derradeira plataforma de observação do tour, Dora OP, se debruça sobre Kaesong, o complexo industrial levantado em 2003 pelo Sul no território da Coreia do Norte, com a anuência desta. Mais de cem companhias já se instalaram ali desde então. Importam matéria-prima do país capitalista e despacham de volta bens manufaturados por mão de obra barata. Pyongyang tem como contrapartida a geração de empregos (55 mil, estima o Sul, com salário médio de US$ 100, ou R$ 159). Kim Jong-il, astuto (ou paranoico) que é, mandou cercar de torres a cidade de ares sulistas: os monstrengos estão ali para cortar sinais de celular, internet e TV que Seul queira infiltrar no complexo que financia.
Quando o ônibus retorna ao ponto de partida, no centro de acolhida ao visitante, os americanos se precipitam na loja de suvenires. Entre colares, selos, bonecos, canetas e garrafas de uísque norte-coreano, buscam um certificado de presença, o equivalente da camiseta com a inscrição "Eu fui!" das montanhas-russas da Flórida ou dos musicais da Broadway.
As atenções parecem recair sobre uma blusa que estampa os dizeres "In Front of Them All" (na frente de todos eles), o lema do comando militar das Nações Unidas. Cai o pano.


Nota
O jornalista viajou a convite do Consulado da Coreia do Sul em São Paulo.


Vang amplia o leque de restrições: "É proibido gesticular, apontar ou acenar para o Norte. Tudo pode ser usado como propaganda contra o Sul"

A área -um círculo com 800 m de diâmetro- é o único ponto da linha divisória em que as tropas sul e norte-coreanas se encaram

Quando o regime de Kim Jong-il viu o gabarito da edificação do Sul, tratou de erguer um terceiro andar em seu austero pavilhão sessentista


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