São Paulo, domingo, 19 de setembro de 2010

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ENSAIO

Urubus no coração da Bienal

Bom e mau agouro na obra-prima de Niemeyer

RESUMO
Com inauguração no sábado, 25/9, a 29ª Bienal de São Paulo põe em pauta a reconstrução da instituição, após anos de crises financeiras e curatoriais. As contradições e os impasses persistentes na mostra são discutidos por Nuno Ramos em seu trabalho "Bandeira Branca", instalado no vão central do prédio.

BERNARDO CARVALHO

DEBAIXO DE UM SOL escaldante, do lado de fora do prédio da Bienal, onde está construindo uma estrutura de madeira pintada que lembra o altar de um templo do Vale do Amanhecer, o artista Kboco desabafa: "Isso aqui é o deserto do Saara. Essa luz aí em cima", diz, apontando para uma lâmpada no alto da fachada, "fica acesa o dia inteiro. À noite, eles apagam. E não tem ninguém pra acender". E de onde você tirou essas formas? "Do inconsciente", ele responde.
Falta uma semana para a abertura da 29ª Bienal de Arte de São Paulo e Kboco está construindo, com o arquiteto Roberto Loeb, um dos seis "espaços de convivência" idealizados pelos curadores, e nomeados "terreiros", que ficarão espalhados pela exposição.
O dele é o único do lado de fora do prédio. É reservado às "manifestações e reivindicações públicas". Mas não é contraditório delimitar um espaço para manifestações espontâneas?
"Essa é a grande polêmica. Meu foco vem dos skatistas. Mas skatista é feio e sujo. Pediram pra eu mudar o projeto inicial, porque skatista podia se acidentar. A Prefeitura está num processo de criminalização do skate. Como é que uma Bienal que quer tratar de política não quer que eu toque nessa questão? Botar skate no espaço da arte é a anarquia total. Os caras aqui ainda estão no Hélio Oiticica. Skate é contemporâneo."
E vão cercar o espaço? "Não sei. Também não sei se essa porta vai ficar aberta. Ninguém falou comigo. Os curadores estão fugindo de mim. Contestei tudo. Mas na Bienal não pode contestar. Vou defender a instituição? Eu não. Defendo o povo. Cada um defende o seu", diz.

RECONSTRUÇÃO Kboco pode não estar entendendo um monte de coisas, mas pelo menos uma ele já compreendeu: a Bienal da "arte e política" (tema da mostra deste ano) é, no fundo, a da reconstrução da instituição.
"As instituições foram destruídas pela Lei Rouanet. Sobraram as instituições que a lei criou: o CCBB, o Santander, a Caixa Cultural. Essas vão muito bem. Mas não têm acervo, não têm história, a maioria não tem prédio", diz Nuno Ramos, cuja obra "Bandeira Branca" ocupa o centro desta Bienal. "Devo muito a elas, mas é uma pena que instituições como o Masp e a Bienal tenham ficado à míngua. Estão um pouco melhor agora. O único modo de as obras aparecerem é tornando fortes as instituições. No Brasil, você prova que o Sarney é corrupto e ele sai ileso. Há um descolamento entre a consciência pública e a realidade institucional, que é nova. Talvez a política mais rica hoje seja mesmo a reconstituição das instituições."
Quem entrar no prédio da Bienal no próximo sábado, quando a mostra será aberta ao público, vai deparar com uma imensa estrutura cenográfica que, em sua monumentalidade, é capaz de ofuscar tudo em volta: três enormes esculturas negras -a maior com oito metros de altura-, terminando em capitéis sobre os quais estarão pousados três urubus -se não estiverem voando pelo vão central, cercado ao longo dos três andares por uma tela de proteção preta.
As formas das esculturas têm a ver com a arquitetura de Oscar Niemeyer, que desenhou o prédio, só que pretas, como gigantescos mausoléus cobertos de areia queimada e, no alto, lápides de mármore. "Acho que a gente está vivendo um tipo de desenvolvimentismo. Todo mundo eufórico, mas todo mundo muito cego. Quis romper isso com uma espécie de mau agouro que os urubus vão dar para o vão central, que é uma das coisas mais bonitas que o Niemeyer já fez", diz Ramos.

MOTE ESVAZIADO A referência a um novo desenvolvimentismo define essa edição da Bienal. Muito mais do que o mote multifuncional -e por isso mesmo esvaziado- de "arte e política". Uma crise administrativa, para dizer o mínimo, deixou a Bienal à morte nos últimos anos. As duas últimas edições -essas, sim, "políticas", no sentido de questionar (como Kboco entende que deve ser) o papel da instituição (a 27ª, ao decretar a obsolescência da autoria artística individual; a 28ª, ao propor uma autorreflexão no lugar das obras)- de certo modo reforçaram a ideia da crise. A despeito das boas intenções, foram bienais "negativas", de confronto. E uma instituição negativa é uma contradição em termos.
Ao insistir que a arte diz o que não pode ser dito de outra forma, o curador Moacir dos Anjos marca um corte definitivo em relação às duas bienais anteriores. E, ao trazer o foco de volta para a arte (o maior mérito e a verdadeira ação política desta Bienal), tenta recuperar o papel tradicional da instituição, mostrando as obras. É o que garante a volta do financiamento (cerca de R$ 30 milhões, pela Lei Rouanet).
Dos Anjos chegou a citar em entrevistas a frase seminal de Jean-Luc Godard, um dos artistas convidados, para justificar sua ideia de "arte e política": "A cultura é a regra; a arte é a exceção". Mas, enquanto forem eixos fundamentais da cultura, as instituições terão de ser necessariamente regra.
O que justifica a instituição é a noção de bem público, não a de fissura. Política mesmo seria uma Bienal cujo mote fosse "arte e mercado" (que é hoje a questão de fundo das artes -e sua maior contradição), mas dessa, provavelmente, nenhum artista ia querer participar. O poder contestatório da política é "negativo".

REFRÃO CONSENSUAL O guarda-chuva da "arte e política", embora contraditório e retórico, serve como refrão consensual, reconciliador (quem não quer ser identificado a arte e política hoje? -política bem entendida como exceção à regra) e "positivo" para a reconstrução da instituição num momento em que o país sonha com um novo lugar no mundo, como potência alternativa, já com um mercado desenvolvido, que clama pelas garantias de estabilidade de instituições igualmente sólidas para continuar a se expandir.
A ambiguidade do trabalho de Nuno Ramos permite sintetizar essa vocação e essa vontade ao exaltar, ainda que pelo aparente "negativo", uma brasilidade mais complexa, uma nova identidade nacional, mais séria e de peso -o que também ocorre na reapropriação da obra de Hélio Oiticica.
Nuno Ramos é um artista de exceção, em torno do qual vem se construindo um consenso nacional. É um artista que se reapropria positivamente de ícones da identidade popular do país (o futebol, o samba), não mais pela óptica da naturalidade tropical, mas no resgate da seriedade de uma tradição crítica.
"Ele fala de um sentimento que a gente deixa de lado quando fala de Brasil. Um lado mais sombrio, mais Goeldi", diz Dos Anjos, que o convidou a ocupar o vão central da exposição.

NÃO PENETRÁVEL Ao lado dos urubus, no alto das imensas estruturas negras, três caixas de som, feitas de vidro, emitem os acordes de canções populares brasileiras: "Carcará", "Bandeira Branca" e "Boi da Cara Preta". O urubu é, ainda que ironicamente, a ave nacional. É a natureza (embora Ramos insista em se referir ao bicho como uma citação de Goeldi) convertida em identidade cultural.
"Nas minhas obras, cultura e natureza viram um sabão", diz o artista. "A areia que cobre as peças é natureza queimada. A natureza está preta. É um não penetrável. O penetrável é a tradição forte que veio do Hélio. O meu é o avesso. O público não entra. Tem uma coisa de litania, um incômodo, uma coisa de sono, de luto."
Há, porém, mais de uma maneira de ler a obra. A grandiosidade parece mais vocacionada à reconstrução da nação do que à sua desconstrução crítica, trágica ou fúnebre. Mausoléu não é ruína. E urubu é uma ave que "limpa" o terreno da morte. "Acredito na nação. A informação do país é muito forte. É importante você saber que o Pollock ou o Warhol eram americanos. O que a gente precisa é singularizar. O nacional, nesse sentido, é uma arma", diz Ramos.
O discurso do artista mostra uma reviravolta no pensamento da arte no país, que a 29ª Bienal quer encampar. Não é à toa que o curador tenha declarado à imprensa o desejo de reavaliar a arte brasileira. A questão principal dessa edição é a refundação da arte nacional (e com ela, da instituição) sobre uma imagem da qual o novo Brasil possa se servir na sua projeção internacional como potência alternativa. Tampouco é à toa que Nuno Ramos mencione Pollock e Warhol. E que seu trabalho seja o coração desta Bienal.

Nuno Ramos se reapropria de ícones da identidade popular do país (o futebol, o samba), não mais pela óptica da naturalidade tropical, mas no resgate da seriedade de uma tradição crítica


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