São Paulo, domingo, 19 de setembro de 2010

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

O Bob Marley do morro

Rio de Janeiro, 1997

DANIELA THOMAS

A FOTOGRAFIA ao lado foi tirada no final das filmagens de "O Primeiro Dia", na favela Chapéu Mangueira, no Rio de Janeiro, em 1997. Estou conversando com o compositor Adão Xalebaradã ou Dãxalebaradã e ele está pleno, falante.
Em 2004, aos 48 anos, Adão morre, sozinho, no único asilo que o aceitou. É verdade que ele havia passado a maior parte da vida driblando a morte, como atestavam as cicatrizes no abdômen, marcas dos 11 tiros que levara na juventude e que o confinaram a uma cadeira de rodas. Mas foram a tuberculose, a hepatite C e principalmente a solidão que o derrubaram.
No intervalo entre a foto e a morte, Adão desabrochou: sorriu, atuou, gravou mais de 20 músicas, deu shows, realizou sonhos.
Adão Xalebaradã apareceu pela primeira vez, fora da favela, no documentário de João Moreira Salles e Katia Lund, "Notícias de uma Guerra Particular" (1999). Walter Salles me mostrou o material original da entrevista que, num só dia, consumira todos os rolos de uma semana de filmagem.
Adão tecia sua filosofia sócio-épico-transcendental e tocava algumas de suas 500 composições, acompanhando-se com tambores e com a dulcíssima voz de Janete (também na foto, encarando-nos). Luanda, a filha de 12 anos, sussurrava as letras que sabia de cor. A cena idílica passava-se num barraco no alto da favela Pavão-Pavãozinho.
Como João e Walter antes, fiquei transfixada. Incumbi-me de ajudar Walter a transformar aquelas imagens (e mais algumas que iríamos filmar), num curta sobre Adão.
Subimos a favela, em meio a uma ocupação ostensiva da polícia. Homens fardados com enormes fuzis nos encaravam. Adão, alheio à comoção, exibia o sorriso branquíssimo da dentadura que havia ganhado da produção de "Notícias de uma Guerra Particular". Estava exultante. Cantou outras músicas e teceu mais teorias sobre a condição do negro e do pobre nesse país injusto. O filme chamou-se "Adão ou Somos Todos Filhos da Terra", verso seu, e rodou por alguns festivais.
Esse foi o primeiro capítulo de várias parcerias nossas e de nossos amigos com Adão: dois discos gravados com Antonio Pinto (compositor da trilha de "Central do Brasil" e "Cidade de Deus"), um clipe da sua música "Armas e Paz", que realizamos com Katia Lund, uma participação de Adão em "Cidade de Deus", outra em "O Primeiro Dia" e vários shows.
A música de Adão havia saído dos limites da favela. Tinha obrigações artísticas no asfalto, trabalhava, fazia shows, era reconhecido nas ruas do morro. Estava feliz. Nós também. Tínhamos conseguido jogar luz sobre um talento exuberante que vivera escondido no morro.
Numa madrugada, recebo um telefonema arrepiante. Alguém que não conheço diz que está rodando pela cidade com Adão em seu carro, em fuga do morro. Diz que Adão havia se desentendido com o "movimento" na favela e que estava jurado de morte. Um detalhe shakespeariano aumenta o meu choque: o namorado de sua filha havia sido incumbido de matá-lo. A filha conseguira avisá-lo a tempo. "Adão não está passando bem", diz o motorista. Me pergunta para onde deve levá-lo.
Congelo: os eventos são inteiramente estrangeiros para mim. Uma amiga me ajuda a arranjar-lhe uma internação num hospital.
Walter aluga-lhe um pequeno apartamento na av. Princesa Isabel, em Copacabana, para onde Adão se muda logo após deixar o hospital. Contrato enfermeiras para cuidar dele em rodízio.
A partir daí, sacado de seu habitat, abandonado por seus próximos, e por mais que tentássemos promover encontros e shows, Adão foi definhando até morrer, sempre só.
Nosso envolvimento é um retrato torto da aparente futilidade de construírem-se pontes através do imenso abismo que separa os do asfalto dos do morro.
É com imensa tristeza que escrevo esse obituário tardio para o grande artista e querido amigo Adão Xalebaradã.


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