São Paulo, domingo, 19 de dezembro de 2010

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O filho predileto

Pode o maestro de uma orquestra sinfônica ser um fenômeno da alegria?

resumo Aos 29 anos, no comando de orquestras em Caracas, Los Angeles e Gotemburgo, o maestro venezuelano Gustavo Dudamel é um fenômeno pop no mundo da música erudita, não apenas por seu talento, mas pelo carisma que rejuvenesce plateias e lhe rende admiração de personalidades que vão de Julie Andrews aos Red Hot Chili Peppers.

JULIO VILLANUEVA CHANG
TRADUÇÃO PAULO WERNECK
ILUSTRAÇÃO ANA PRATA




NUMA MANHÃ de 2010, o maestro Gustavo Dudamel viu no YouTube um bebê alemão regendo uma sinfonia de Beethoven. Dudamel estava de pijama e navegava em seu laptop buscando besteiras para dar risada.
Em algum momento, todo pai de família vê seu bebê agitar os braços caoticamente e pensa que ele daria um maestro genial. Diante daquele prodígio em cueiros, o homem que ainda não completou 30 anos e já é regente de três orquestras sinfônicas chamou a mulher com o assombro urgente e primitivo de quem está vendo uma coisa que não vai se repetir.
Sentada no sofá de sua casa em Caracas, Eloísa Maturén, ex-bailarina de dança moderna que o maestro seduziu depois de tirá-la para dançar, tinha o olhar perdido e angustiado com a notícia de que acabara de tomar conhecimento no banheiro. Pensou que Dudamel a estivesse chamando para mostrar-lhe uma nova interpretação do "Lago dos Cisnes" ou alguma piada de internet.
Chegou até o computador, viu o bebê com trejeitos de maestro e, de repente, começou a chorar. "Que foi?", perguntou Dudamel.
"Estou grávida."
Dentro do computador, um bebê alemão continuava a agitar os braços diante de uma sinfônica imaginária. Fora dele, no sorriso de Dudamel, o último hit dos diretores de orquestra, a nota dissonante era de preocupação.
Agora, cabia-lhe reger uma família.

FAMÍLIA Uma orquestra sinfônica é, obviamente, uma família. Dudamel é o responsável por três: a Filarmônica de Los Angeles, a Juvenil Simón Bolívar da Venezuela e a Sinfônica de Gotemburgo.
Dirigir uma orquestra sempre foi para ele um jogo em que não faltou uma disciplina que não se confunde com severidade.
Aos seis anos, sua brincadeira favorita era dispor uns bonecos pigmeus no chão do quarto, em formação de orquestra, pôr uma gravação como o "Capriccio Italiano", de Tchaikóvski, e regê-la feito o bebê alemão.
Quando ia à escola em Barquisimeto, a cidade onde nasceu, no sul da Venezuela, deixava um aviso: "Não limpa aí", dizia à avó, "é a minha orquestra". Quando voltava, os músicos em miniatura ainda estavam lá. O pai tocava trombone numa banda de salsa e ele queria ser trombonista, mas, quando era criança, faltava braço. Uma tarde, quando tinha 12 anos e tocava violino numa orquestra de câmara, Dudamel deixou o instrumento numa cadeira e levantou-se para reger o ensaio, pois o professor de música não chegava. Quando chegou, disse algo sábio: "Continue."
Foi sua primeira vez. Dudamel não lembra direito se naquela tarde regeu Mozart ou danças renascentistas de Peter Warlock. "Sempre vi a música clássica como um brinquedo", disse-me ele numa tarde, em Caracas.

SEGREDO Um bebê por vir não era um brinquedo. Felizes e assustados, Dudamel e Eloísa Maturén decidiram guardar o segredo por três meses. Doze semanas depois, um médico lhes entregou um DVD com o primeiro ultrassom, em áudio e vídeo. Numa reunião familiar, enquanto comemoravam o aniversário das mães de ambos, anunciaram a notícia. E apertaram play no vídeo pré-natal: "Olha lá o bracinho mexendo!", disse alguém da família. "Vai ser maestro."
Enquanto o bebê prepara um concerto na barriga da mãe, ela prepara uma "playlist", uma lista de músicas. Dudamel costuma ouvir música em dois iPods: um prateado, com música erudita, e um preto, com música pop. Eloísa Maturén prefere os "Noturnos" de Chopin, a trilha de suas aulas de balé, e óperas de Mozart, como "Don Giovanni", mas também Pink Floyd e boleros de Celia Cruz. Nesses dias, o mais carismático dos maestros do século 21 gravou a batida do coração do bebê em seu BlackBerry.

CAMARIM Numa noite de outubro de 2010, depois de reger a Filarmônica de Los Angeles, Dudamel entrou em seu camarim do Walt Disney Concert Hall, onde um homem o aguardava impaciente. Dudamel usava um "smoking" com os suspensórios caídos até as pernas, feito duas serpentinas negras. Estava relaxado e risonho, conversando com as pessoas que tinham ido cumprimentá-lo.
Acabava de reger pela primeira vez a "Turangalîla", de Olivier Messiaen, uma história de amor em forma de sinfonia, desafio ao virtuosismo, à concentração e à unidade para os músicos das maiores orquestras do mundo. A complexidade da obra por vezes custa anos de aprendizagem aos maestros, e eles costumam adiar o momento de enfrentá-la. Os aplausos duraram cinco minutos. Num instante, Eloísa Maturén, sua mulher, como quem fizesse um passo de dança, levou Dudamel até o fundo do camarim e se fechou com ele atrás de uma porta de correr.
Quando abriram a porta, Dudamel apareceu sem o "smoking", vestido como de costume: camisa polo preta, calça jeans e mocassins, feito um garoto que vai à igreja no domingo. À sua frente, sentado no braço de um sofá, estava o lendário produtor de Michael Jackson e do último Frank Sinatra, o amigo íntimo de Ray Charles, o eventual trompetista de Dizzy Gillespie, o compositor das trilhas de Spielberg, o ex-marido de Nastassja Kinski -Quincy Jones, o homem à sua espera, fora ao camarim para cumprimentá-lo.
Conheciam-se fazia dois anos. Quincy Jones foi um dos curadores do espetacular concerto de Dudamel no Hollywood Bowl, na primeira vez que foi convidado a reger a Filarmônica de Los Angeles. Quincy usava um conjunto cinza-escuro e um cachecol com estampa de arco- íris. Estava ali com dois jovens músicos latinos de quem era o mentor, muito comovido com o concerto sobretudo porque, durante a juventude em Paris, estudara composição com Olivier Messiaen. Em vez de falar de música erudita, Dudamel prefere conversar sobre dança.
"Sou uma pessoa noturna", disse a ele. "Durmo de dia e leio de noite. E adoro sair para dançar. Você não gosta de salsa?" "Gosto", disse Quincy Jones. "E danço."
O maestro e sua mulher, a bailarina, convidaram Quincy Jones para ir à Venezuela. Ele impôs apenas uma condição: sair para dançar salsa. Fez uma pergunta a Eloí- sa Maturén. Queria saber se ela conhecia a música de duas cubanas: Celia Cruz, a lendária cantora de salsa, e principalmente La Lupe, a cantora mítica de boleros. "Ela foi minha namorada", disse Jones. Eloísa Maturén fez um breve silêncio, como quem toma fôlego para gritar uma notícia. "Vem cá, meu amor! O Quincy disse que namorou La Lupe!" Dudamel voltou-se para ele com cara de adolescente cúmplice. "Você foi namorado dela?" "Fui", respondi Jones. "Agora ela já deve estar bem velha."
La Lupe está morta, e ele não sabia. "Você é sensacional. Que mais, Quincy? Que mais?", insistiu Dudamel. "Que mais?" Jones precisava ir embora e se despediu com um abraço. Dudamel fez um afago na cabeça do mestre. Foi um abraço em forma de cadeado no pescoço, daqueles que damos nas crianças, quando queremos levá-las conosco.

PREDILETO Se da Venezuela ele é o filho predileto, em Los Angeles é um filho adotivo. Desde que assumiu a batuta da orquestra da cidade e se instalou no Walt Disney Concert Hall, o arquiteto Frank Gehry lhe propôs um projeto em parceria, os Lakers lhe deram de presente uma camisa em sua homenagem, um outdoor com sua imagem aparece no último filme de Julia Roberts -"Idas e Vindas do Amor"- e até uma cadeia de lanchonetes local batizou um hot dog com seu nome. Desde que ganhou, aos 23 anos, o primeiro Concurso Mahler para Jovens Maestros, na Alemanha, Dudamel foi se transformando num agitador de massas da música clássica. Três anos depois, a Filarmônica de Los Angeles o contratou como diretor musical, sucedendo ao prestigioso, intelectual e quase esotérico Esa-Pekka Salonen, maestro finlandês que, por mais de uma década e meia, experimentou com singular sucesso de crítica um repertório de música contemporânea. Ele foi jurado no Concurso Mahler que detonaria o boom de Dudamel. "É um animal da regência", ele disse, na ocasião, à presidente da Filarmônica de Los Angeles. Ela, Deborah Borda, saiu à procura dele, a fim de levá-lo para a cidade. Dudamel começou a rejuvenescer as plateias e a convocar novos fiéis para uma arte em que a novidade nem sempre é bem-vinda. A graça do clássico é sua duração no tempo. Com Dudamel na batuta, a última novidade da música erudita é a alegria.

EL SISTEMA Antes de aterrissar em Los Angeles, Dudamel era um maestro promissor, de cabelo bem curto e óculos de primeiro da classe. Mas era a esperança de José Antonio Abreu, o fundador de uma empreitada épica: o Sistema de Orquestras Juvenis da Venezuela, mais conhecido como El Sistema. Em mais de três décadas, essa instituição que criou Dudamel resgatou o talento musical de meio milhão de jovens de seu país, rodeados pela pobreza ou pelo esquecimento. Hoje o modelo de ensino de El Sistema está pronto para ser exportado a 50 países do mundo. Abreu, que além de maestro e organista é doutor em economia e foi ministro da Cultura da Venezuela, acredita que começou uma nova era em seu país: a arte como uma obra de maiorias para maiorias. Simon Rattle, diretor da Filarmônica de Berlim, a orquestra mais prestigiosa do mundo, sentenciou: o que acontece de mais importante na música mundial é o que está acontecendo na Venezuela, e Dudamel é o mais assombroso maestro que viu nos últimos anos. Ele não exagera: já são 300 mil os jovens educados pela música num país cuja capital tem uma das taxas de homicídios mais altas do mundo. Semear orquestras em cada povoado é uma revolução social silenciosa. Hoje Dudamel é a ponta do iceberg desse milagre coletivo -e não é preciso ficar enredado na fácil simpatia desses cabelos que riem. Com El Sistema Abreu atravessou nove governos de todas as identidades políticas. Seu país tem hoje dois símbolos de orgulho e exportação: Miss Venezuela e El Sistema.

FOME Uma noite, depois de reger seu segundo concerto da "Turangalîla", no Walt Disney Concert Hall, Dudamel estava com fome. No estacionamento do teatro, entrou num BMW azul, conversível, dirigido por Jean-Yves Thibaudet. O grande pianista francês, que interpreta de solos de Debussy a improvisações de jazz de Bill Evans, naquela noite estava usando um carro emprestado por um amigo. Naqueles dias, em Los Angeles, o maestro havia alugado um Mini Cooper azul que tinha ficado no hotel. No caminho, contou ao pianista que estava à procura de uma casa na cidade. Conversaram sobre comida e carros -Thibaudet tem uma Ferrari em Paris- e Dudamel lhe contou a alegria com o filho. Iam jantar com amigos, um luthier americano e uma advogada e produtora espanhola. Eloísa Maturén foi levada por um motorista num 4 x 4 e lá os esperava Alberto Arvelo, um dos amigos mais queridos de Dudamel, ex-músico que, também criado pelo milagre de Abreu, hoje é cineasta, autor de dois documentários sobre o efeito salvador que El Sistema teve sobre milhares de crianças educadas pela música mundo afora. O luthier morava no distrito de Brentwood, na zona oeste de Los Angeles, colinas onde, àquela hora, as únicas luzes visíveis eram as dos automóveis. Àquela hora, o lugar brilhava feito um bosque de árvores tenebrosas. Ao descer do carro, o maestro começou a imitar o "uuuuuuuuu" que as crianças fazem quando querem pregar sustos no escuro. Até o final do jantar, Dudamel ficou amassando pedacinhos de papel e jogando no cineasta. Este, tombado num sofá, acompanhava a brincadeira como um velho cúmplice de traquinagens. Depois de falar sobre futebol e beisebol, o maestro anunciou que, em sua próxima viagem de Los Angeles a Milão, ficaria no avião estudando a ópera "Carmen", de Bizet, que ia reger no Scala. Subindo pela colina em meio às trevas, procurando os automóveis, o maestro começou a correr atrás de Arvelo para atirar migalhas de salgadinhos nele. No carro, já no caminho de volta, Eloísa Maturén pôs "Carmen" no DVD, numa interpretação de Plácido Domingo e Teresa Berganza. Era madrugada e, no trajeto até o hotel, os dois foram adormecendo. Dudamel não gosta de falar de seus sonhos. "É muito engraçado: conto os meus sonhos para ele, mas ele não gosta nem mesmo que eu conte os meus sonhos para ele." "Você não sonha com música?", perguntei a ele no dia seguinte. "Sonho. Mas com ensaios."

ESTÁTUA Dudamel é o tipo de gente que, quando entra num lugar, faz as pessoas virarem a cabeça para olhar. O cabelo dança e ri por conta própria. Se o maestro mais pop do mundo já é um projeto de estátua, seu escultor do futuro terá sérios problemas para domar- lhe o cabelo. Dudamel é dono dessa energia luminosa e magnética a que chamamos carisma. "O carisma não se aprende", disse Charles Lindholm. "Apenas existe. Como a estatura, a cor dos olhos." Jose Antonio Abreu, o fundador de El Sistema e grande mestre de Dudamel, explica num monossílabo: "É um dom". Mas não é uma dádiva para sempre. Embora ainda se discuta o carisma de Hitler e o de Che Guevara, hoje quase ninguém dá o crédito entusiasmado do início a Barack Obama, o presidente dos EUA que brinca dizendo que não sabe quando deve aplaudir um concerto e que cumprimentou Dudamel numa carta de boas-vindas a Los Angeles para a nova temporada da Filarmônica. Por que Dudamel, o maestro de uma solene orquestra sinfônica, tem o carisma de uma estrela do rock tão cristão? As pessoas carismáticas alteram a nossa atenção e, em alguns casos, convertem-na em devoção. É matéria tão genética quanto divina, mais próxima da mágica e da vitalidade que da razão. O caso de Dudamel se intensifica por ser ele músico, ter cabelos eletromagnéticos, por ser alguém que se diverte com todos e tem o poder de reger uma orquestra. Queira-se ou não, as performances memoráveis de um maestro acabam sendo o grande ato de sugestão musical de um homem que nos dá as costas. Mas ele deixa a impressão de que o público paga o ingresso de um concerto para ir ver Dudamel e de quebra aproveita para escutar a orquestra. Seus fãs jamais votariam nele para presidente da República, mas talvez o nomeassem diretor de uma fundação de caridade ou líder de uma associação internacional de pais de família. Tem o ambíguo poder de ser muito familiar e, ao mesmo tempo, jamais parecer distante, embora saiba que é inalcançável. É a familiaridade não como rotina, mas como jogo: Dudamel nos faz acreditar com naturalidade que sempre está pensando em nos fazer felizes por um instante. Talvez seja assim porque Dudamel aprendeu música em doses similares de rigor e felicidade criativa. É herdeiro de maestros fora de série, como Claudio Abbado, Simon Rattle e Daniel Baremboim. Nos EUA, é comparado a Leonard Bernstein, outro carismático até os ossos, que gozou da fama de um artista de Hollywood. Mas Dudamel está construindo uma voz própria: é fotogênico e midiático, porém não controla as câmeras nem fecha pessoalmente negócios milionários, como fez Von Karajan em seu tempo. É enérgico, mas não um ditador, como foi Toscanini. "Dudamel tem uns olhos que transmitem o amor que tem pelo que faz. Então você o vê feliz", diz o pianista Jean-Yves Thibaudet, "e sente que tem ali um amigo, que adora o que você faz e, portanto, quer tocar o melhor para ele." Meredith Snow, que toca viola, comove-se com o talento que ele tem para encarnar a emoção: "Não somente faz a música envolver seu corpo. Ele a torna magnífica". Vijai Gupta, um violinista indiano na Filarmônica de Los Angeles, agradece a inspiração com um grande abraço: "Dudamel nos devolve em cada ensaio a memória de por que estamos fazendo música. É muito fácil esquecer isso: a gente vem aqui todo dia. Fazemos música bonita todo dia. Mas a razão que nos leva a tocar é recuperar aquela primeira vez que ouvimos uma coisa surpreendente e maravilhosa". Dudamel não exerce um poder autoritário tratando a seus músicos como súditos. É insólita sua liderança que inspira a fazer música. Dudamel é um gênio da comunicação musical. É alguém que, em todos os ensaios, diz aos músicos o que quer com metáforas que todos celebram. "Suas metáforas têm a ver com o amor ou com comidas deliciosas e bebidas inebriantes", lembra Mark Kashper, que nasceu na Rússia e toca para ele o segundo violino. Num dia, a orquestra ensaiava a "Sexta Sinfonia", de Beethoven. Uma das passagens estava ruidosa e o maestro disse aos músicos que deveriam tocar feito duas crianças apaixonadas, correndo peladas por um bosque.

ADVERSIDADES O maestro que parece o homem mais feliz da Terra nem sempre se diverte. Também acontecem com ele as adversidades do acaso. Numa noite de 2007, Dudamel regia a Filarmônica de Nova York e, segundos antes de terminar a "Quinta Sinfonia", de Prokofiev, sentiu um estalo. A batuta tinha se quebrado. A ponta voou para trás, até cair sobre um desprevenido senhor sentado na plateia. Dudamel havia sido convidado a reger a mesma orquestra que, na primeira metade do século 20, fora regida pelos lendários Mahler e Toscanini e, na segunda, por grandes maestros, como Bernstein, Pierre Boulez e Zubin Mehta. Mas a batuta que se partiu não era a dele. O convite incluía a honra de reger com a antiga batuta que pertencera a Bernstein. "Foi um acidente", disse-me Dudamel em Caracas. "Como eu estava regendo sem partitura, não tinha como ela ter batido em alguma coisa. Praticamente quebrou sozinha." O mesmo Dudamel foi buscá-la na plateia e pediu-a de volta ao homem que a guardara como se fosse um pedaço dos Beatles. Richard Horowitz, que toca tímpano na orquestra do Metropolitan Opera House, em Nova York, e compôs trilhas para filmes de Bertolucci e de Oliver Stone, ofereceu-se para consertá-la. "Mas, no final, me disseram que preferiam guardá-la assim", disse-me Dudamel. "Acharam mais histórico." A história da música do século 21 tinha reservado uma piada do destino ao menino que mais brinca com a batuta.

LÁGRIMAS Mas Dudamel também é um grande fabricante de nós na garganta. Depois de reger o terceiro concerto de "Turangalîla", havia gente às lágrimas. Isso é normal em seus concertos. O choro adquire com Dudamel a dignidade de um agradecimento calado, uma alegria paradoxal que estimula as glândulas lacrimais e promove a volta dos lenços. O maestro também faz sua mulher chorar. Eloísa Maturén se lembra sobretudo de um concerto em que ele regeu a Sinfônica de Viena, em Lucerna, com a primeira sinfonia de Mahler. "Chorei durante o concerto inteiro. Nem sempre tem a ver com a performance, às vezes também tem a ver com o momento que se vive." Em outra ocasião, na Itália, no comando da orquestra Santa Cecília, de Roma, Dudamel regia "Romeu e Julieta", de Prokofiev, uma das peças favoritas da mulher nos tempos em que fazia balé. "Eu gemia que nem um bebê", disse-me a ex-bailarina. "E a senhora ao lado ficava me perguntando se eu estava bem." Ela se lembra também de um concerto em La Vega, uma das favelas de Caracas, em que Dudamel lhe dedicou um repertório misto de música clássica e popular. "O mais comovente é ver a cara de agradecimento das pessoas", disse- me ela no camarim do maestro, em Los Angeles, enquanto o via, numa tela do circuito fechado de TV, reger a "Turangalîla". Contar, para ela, era outra forma de voltar a agradecer. Não são apenas a esposa e o público que choram. Em Nova York, durante a primeira turnê da Filarmônica de Los Angeles com Dudamel, houve um final inesperado para seus músicos depois de tocar a "Sexta Sinfonia", de Tchaikóvski. "Quando o concerto acabou", disse-me o violinista Vijay Gupka, "chorei no palco. Era no Lincoln Center, e vários de nós choramos." Os músicos também choram. Mas choram "de" Dudamel.

POR QUÊ Num domingo de outubro de 2010, antes de entrar para reger o último concerto da "Turangalîla", Dudamel andava pelo camarim buscando seu traje de gala enquanto procurava me explicar, de cuecas, por que ser maestro. Uma vez, aconteceu-lhe de estar tocando em Haifa, na fronteira do Líbano com Israel, minutos depois da queda de uma bomba perto do teatro. Os gerentes da Filarmônica de Israel perguntaram se queria suspender o concerto, mas ele continuou a tocar as "Kindertotenlieder" ("Canções sobre as Crianças Mortos"), de Mahler. "E as pessoas ficaram lá", disse-me ele. "É o poder da música..." Às vezes, uma melodia é tão necessária quanto um médico para aplacar a dor. Dudamel vive com tal intensidade física que já fez 39 exames cardíacos. Se roqueiros morrem de overdose, regentes de orquestra morrem de infarto.

RED HOT Naquela noite, em Los Angeles, quando estava prestes a entrar no palco, foi avisado de que os Red Hot Chili Peppers queriam vê-lo depois da récita. Eram o vocalista, Anthony Kiedis, e o baixista, mais conhecido como Flea, que dirige um projeto para crianças parecido com El Sistema, mas com rock. Kiedis e Flea não calcularam a duração do concerto e não conseguiram ir ao camarim. Uma vez, John Densmore, baterista do The Doors, foi procurar Dudamel e depois escreveu um artigo sobre seu encontro com ele. Dois dias antes, depois da função de sexta-feira, uma atriz tinha ido conhecê-lo. Ao ver que Julie Andrews, a noviça rebelde e a Mary Poppins, estava diante dele, Dudamel ficou besta, feito uma criança de desenho animado prestes a desmaiar. Eloísa Maturén pediu para tirar uma foto com os dois, e a atriz, que empresta sua voz a uma rainha em "Shrek", deu-lhes um conselho para saírem sempre bonitos na hora de posar: "Digam 'money'." Contaram que iam ter um bebê. "Nasce em março", disse-me a bailarina. "Vai ser de Áries. Alguém muito determinado." Dudamel é de Aquário e, apesar de Beethoven, não quer que o seu seja um bebê alemão. Ele e a bailarina viajam o tempo todo, mas eles desejam que o bebê nasça na Venezuela. Ela mantém um diário com todas as coisas que fizeram nos últimos meses. O maestro vai ser um pai coruja: já comprou sapatinhos para o pequeno e os mostra, pimpão, aos amigos em seu BlackBerry. A ela caberá o papel de malvada. "Um dos desafios que vamos ter é que o menino tenha a vida mais normal possível." Depois da temporada de "Turangalîla" em Los Angeles, foram a Milão, onde Dudamel ia reger no Scala. O maestro pensa no futuro. Eles viajam o tempo todo, mas nem sempre juntos. Quando isso acontece, têm uma frase para a despedida. "Diga ao piloto para guiar direito." Em janeiro de 2011, o bebê, um menino, vai completar seis meses na barriga. O maestro vai fazer 30 anos. Nessa idade, um maestro acaba de começar a escrever sua história. É preciso aprender a esperá-lo. Mas, nos tempos lentos e elegantes da música clássica, o bebê Dudamel já está consagrado.
Não esperem que o pai dele o coloque no YouTube.


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