São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

ARTE

"Sulrealismo" à vista

As inspirações de Maria Martins

RESUMO
Fundado em 1924 por André Breton, na França, o surrealismo ecoou na América do Sul na obra de diversos pintores e artistas plásticos do século 20, sem no entanto constituir um grupo coeso ou um programa estético autônomo. Livros buscam reconstituir, com maior ou menor êxito, a experiência surrealista debaixo do Equador.


ELIANE ROBERT MORAES

Entre os segredos que envolvem o último grande trabalho de Marcel Duchamp, há um que nos diz respeito mais de perto. Trata-se da supressão do nome de Maria Martins da instalação que, concebida em sigilo durante vinte anos, só veio a público após a morte de seu criador, em 1968.
Realizada entre 1946 e 1966, a obra reitera o clima de clandestinidade ao colocar o espectador na posição de um voyeur que espia, por duas fendas cravadas numa pesada porta, a cena de uma mulher nua deitada na relva, empunhando uma lâmpada em plena luz do dia, sob um pano de fundo silvestre no qual cintila uma cascata.
Ora, se o primeiro esboço do projeto, de 1947, ganhou o título de "Étant Donnés: Maria, la Chute d'Eau et le Gaz d'Éclairage" [Étant Donnés: Maria, a Queda d'Água e a Lâmpada de Gás], nas versões seguintes a menção à artista brasileira desapareceu sumariamente.
Como se sabe, Maria Martins manteve uma relação amorosa com Duchamp ao longo dos anos 1940, tendo sido sua musa em diversos trabalhos. Foi sobre o corpo dela que ele moldou a figura feminina da enigmática instalação, assim como a série de seios em espuma, lançada no mesmo ano sob o título "Prière de Toucher" [Favor Tocar].
Os exemplos se multiplicam e se estendem à obra da própria escultora, descortinando um campo de repercussões mútuas que excede o biográfico para iluminar o estético. Por isso mesmo, a exclusão do nome não se resume às contingências pessoais dos amantes, mas implica um feixe de questões essenciais para pensar o corpo a corpo entre as vanguardas europeias e as periféricas.
Se os nomes ganham relevo é porque vasculhar tais paralelos supõe, antes de tudo, a tarefa de esquadrinhar quem é quem, ou quem deve o quê a quem, numa história ainda repleta de lacunas. Desnecessário dizer que o capítulo das inclusões e supressões demanda especial atenção, ainda mais no caso do Brasil, onde a maior parte dos intérpretes ficou refém de um mote único. Nunca é demais lembrar que a tradição interpretativa do nosso modernismo à luz da questão nacional, embora rica, impediu o surgimento de outras chaves de leitura, igualmente promissoras, porém menos comprometidas com o problema da identidade.
A boa notícia é que três lançamentos se dispõem a realizar uma tal revisão, no empenho de reconhecer as singularidades de uma certa vanguarda tropical de inspiração dadaísta e surrealista, à qual Torres García deu o simpático nome de "Sulrealismo".
Sergio Lima, no segundo tomo de "A Aventura Surrealista" [Edusp, 296 págs., R$ 104], se propõe a interrogar os discursos que giram em torno desse movimento no Brasil, examinando tanto a produção artística quanto a recepção crítica. Proposta ambiciosa, que poderia render melhores frutos não fosse o estudo tão fortemente marcado por idiossincrasias.
As mais de 600 páginas do volume, dedicado aos "anos formadores" (1901-1920) do surrealismo tupiniquim, esboçam uma história interessante mas que parece sempre culminar nas incursões surreais do próprio autor, ele mesmo citado com frequência na terceira pessoa, inclusive em epígrafes. Basta dizer que só nas páginas 28 e 29 Lima se convoca nominalmente onze vezes, para fazer par com personalidades do porte de Luis Buñuel, André Breton, Flávio de Carvalho ou Pagu.
No afã de reclamar um lugar de honra para o surrealismo na cultura brasileira, o ensaísta acaba, de um lado, incluindo diversos nomes pouco identificados com o movimento (como Clarice Lispector ou Lima Barreto) e, de outro, desqualificando alguns dos nossos melhores críticos, invariavelmente acusados de não terem visto as marcas surrealistas neste ou naquele autor. A inclusão dos artistas caminha "pari passu" com a exclusão dos intérpretes, desenhando uma argumentação cartorial, que recusa qualquer diálogo.
Bem distinta é a visada de Raúl Antelo em "Maria com Marcel" [Ed. UFMG, 386 págs., R$ 55], que investiga a fundo as ressonâncias mútuas entre o artista francês e certos modernistas da Argentina e do Brasil, reservando boas surpresas aos interessados no tema. Antes de abrir o livro, porém, o leitor deve saber que terá nas mãos um texto difícil de acompanhar, tanto pela estrutura labiríntica quanto pelo excesso de referências conceituais nem sempre elucidadas, tais como "antiocularcentrismo", "semirrealismo sucessivo", "infratenuidade das fotomorfoses", "heterogeneidade descendente" e assim por diante. A travessia não se faz sem esforço, mas promete recompensas.
O ponto de partida do ensaio é a temporada que Duchamp passou em Buenos Aires, entre setembro de 1918 e junho de 1919, à qual se deu pouca atenção. Por certo, tal descaso se deve às opiniões do próprio artista acerca da capital argentina, que considerava provinciana e sem graça. Chegou a qualificar sua experiência portenha como "aborrecida, mas produtiva", numa frase que talvez tenha sido lida rápido demais. Se a crítica costuma se deter no primeiro termo, o mérito de Antelo está precisamente em atentar para o segundo, explorando as derivas dessa produtividade até capturar suas linhas de fuga.
Um bom exemplo está na conhecida Mona Lisa de bigodinhos e cavanhaque, à qual Duchamp acrescentou as iniciais L. H. O. O. Q. que, pronunciadas em francês, produzem um som semelhante ao da expressão brasileira "ela tem fogo no rabo". Datado de 1919, logo após o retorno de seu criador à França, esse "ready-made" pode ter se alimentado dos novos meios culturais de massa que aportavam na Buenos Aires daqueles anos.
Entre as novidades que anunciavam a modernização da cidade, com forte impacto sobre o gosto médio urbano, estava a marmelada La Gioconda, doce comercializado em lata redonda, com o ícone de Leonardo estampado em série, que pode ter sido para Duchamp o mesmo que viria a ser a sopa Campbell's para Andy Warhol.
Associações como essa, que abundam no livro, ficam ainda mais ricas quando postas em diálogo com a arte e a literatura que instituíam então os modernismos sul-americanos, sobretudo se atentarmos aos nomes mais à margem dos movimentos. A lista de artistas portenhos que repõem um tal diálogo é tão extensa quanto a dos brasileiros. Entre estes, o ensaísta devota especial atenção a Raul Bopp e a Flávio de Carvalho, que, segundo ele, configuram o cerne da estética antropofágica, afinada com o surrealismo herético de Georges Bataille. De fato, trata-se de uma parcela da nossa vanguarda que foi atenta à "parte maldita brasileira", nela explorando as manifestações da escatologia, do informe e de outros elementos que definem o baixo materialismo do autor de "O Erotismo".
A rigor, é também a essa inquietante vertente do modernismo francês que Antelo vincula o trabalho de Maria Martins, refutando as objeções de Mario Pedrosa, para quem as esculturas da artista padeciam de um "excesso de romantismo". Ali onde este denunciava as falhas de um realismo visual, o autor de "Maria com Marcel" vê "os achados de um realismo intelectual", alinhando-se aos admiradores da escultora, como Murilo Mendes e Benjamin Péret.
Vale dizer que semelhante disposição inspira o livro "Maria" [Cosac Naify, 336 págs., R$ 198], organizado por Charles Cosac, com fotos de Vicente de Mello e contribuições de Francis Naumann, José Resende e Verônica Stigger. Dentre elas, destaca-se o ensaio de Dawn Ades, que coloca o primitivismo vanguardista de Martins em diálogo com Giacometti, Brancusi e Arp para apostar na sua poética de fronteira entre o mítico e o erótico.
Retirada da clandestinidade, Maria Martins tornou-se um caso particular que requer especial cuidado dos intérpretes, e não sem razão. Afinal, é tão falacioso aprisionar a escultora no mito duchampiano que se construiu em torno dela quanto acatar, de forma fácil, o rótulo de artista cult ao qual ela foi alçada recentemente.
Oscilando entre a apologia de um exotismo tropical e a manifestação de um primitivismo informe de tom batalliano, sua obra recoloca em pauta certos pontos nevrálgicos do debate sobre o modernismo brasileiro.
Ainda há muito a se desvelar nessa paisagem, que só agora pode ser contemplada por novas fendas. Se a figura de Maria já está ao alcance de nossa visão, em muitos outros aspectos o "sulrealismo" ainda é sendo "terra incognita".


Texto Anterior: A gente morria por ela e se matava por ela
Próximo Texto: Diário de Londres - O mapa da cultura: O sexo no museu
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.