São Paulo, domingo, 20 de junho de 2010

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ENSAIO

O tango dançou

Viagem a uma anacrônica Buenos Aires

RESUMO O crítico literário e ficcionista argentino Damián Tabarovsky ataca um dos mais sólidos símbolos da cultura de Buenos Aires. Das letras machistas às anacrônicas perucas de seus intérpretes, o tango não se renovou esteticamente e permanece apenas como objeto turístico e como clichê nostálgico de um mundo antiquado.

DAMIÁN TABAROVSKY
tradução JOSÉ RUBENS SIQUEIRA

COMECEMOS PELO FINAL, PELO FINAL DO TANGO, porque o tango finalizou, acabou, concluiu-se. Poderia dizer também que "morreu", mas não me animo a tanto: acredito em fantasmas, logo toda morte invoca ressurreição, a dimensão espectral da questão. E nada seria mais lamentável para a cultura portenha do que a volta do tango. Há quanto tempo não se escreve uma letra de tango? Vinte, trinta, quarenta anos?
Impossível saber. Do tango não sabemos mais nada, ou melhor, sabemos alguma coisa, um dado crucial: ele não encarna mais o espírito de Buenos Aires. Não representa mais os portenhos, não lhes conta nenhuma história, se é que acaso algum dia contou (desconfio imensamente, sobretudo numa cidade que vive de seus mitos e glórias passadas: Gardel, o doce de leite, a avenida mais larga do mundo, a Paris da América do Sul).

RECEITA TURÍSTICA E o que é o tango hoje? Uma das principais fontes de receita turística. O governo municipal alimenta anualmente a questão com seu "Festival do Tango" (anunciado em agências de viagens da Europa, dos EUA e do Brasil) e, todas as noites, as "milongas" (os salões onde se dança tango) se enchem de turistas.
"Ah, o tango é tão sensual!", é o que se ouve pelos cantos do dancing club, entre os professores de tango, os nativos em busca de garotas estrangeiras, um ou outro casal de argentinos jovens que imita o gosto dos pais. E os turistas que vêm em busca de "autenticidade", ainda mais agora, em junho, mês em que se dá a partida para a corrida de viajantes -muitos deles brasileiros- em busca do tango, mas também dos bons preços dos shoppings (ah, a desvalorização do peso perante o real!). O tango das "milongas" é o tango dançado, o tango instrumental, sem cantor, sem letra. Mas houve tempo, nos anos 40, 50, talvez até meados dos anos 60, em que o tango marcou, sim, a pulsação da cidade. As orquestras típicas tocavam em bares, clubes e cabarés: e as canções tinham música e letra, palavras de grandes compositores.

MACHISMO INSUPORTÁVEL Muito se pode dizer sobre o tango em geral e sobre essas letras em particular, mas há um aspecto sobre o qual vale a pena se debruçar: o insuportável machismo de sua lírica. O lugar da mulher no tango é traumático: o homem é sempre abandonado por uma mulher que, no fundo, é uma puta, uma ambiciosa, uma malvada.
A mulher maldita o deixa, mas o macho dolorido nunca pergunta nada sobre si mesmo. "O que eu fiz para ela me abandonar?" é a pergunta tabu do tango (curioso: me ocorre agora que o final do tango, nos anos 60, é concomitante com o triunfo absoluto da psicanálise em Buenos Aires, disciplina que só trabalha com esse tipo de pergunta. O tango: a grande barreira contra a psicanálise!). E o que faz o macho dolorido depois que é abandonado pela mulher que tanto amou e que acabou de descobrir que é uma puta? Espécie de gay reprimido, ele sai correndo em busca dos braços da mãe: a única que o compreendeu na vida (ou também sai correndo para os braços dos rapazes do bar, do botequim, que na verdade é quase como outra mãe, outra "minha velha", como se escuta em "Cafetín de Buenos Aires", um dos tangos mais famosos: "E nesta queixa quem te esquece,/ botequim de Buenos Aires/ se só você em minha vida/ à minha velha se parece?)".
De tão binário, o esquema ideológico do tango dá uma certa vergonha alheia: mulher que o abandona (descoberta de que ela é puta, má, ladra, desalmada), mãe boa e amigos fiéis. Mas assim são as coisas no universo do portenho vencedor.
Vejamos agora, como exemplo mínimo, umas poucas letras. Podemos começar com "Tomo y Obligo", do próprio Carlos Gardel, de 1931. Depois de explicar que sobre as mulheres é "melhor não falar", termina com um conselho fundamental para a ética varonil do tango: "Força, caramba, sofra e não chore,/ que um homem macho não deve chorar".
Chorar não é coisa de homem, mas de maricas, ou de mulheres; jamais do tangueiro masculino. Por essa época, Carlos Gardel cantava "Contramarca" (a letra é de Francisco Brancatti), em que, depois de narrar a maldade da mulher, termina dizendo: "De verdade, eu insisto/ que ao lado do tigre/?é fácil que periguem/ as raposas como tu".
Outro tango chave dessa época fundamental é "Chorra" (em lunfardo: ladra), de Enrique Discépolo. O final também é imperdível: "Ladrões!/ Você, sua mãe e seu papai./ Alerta!/ Cuidem-se: ela está à solta,/ se te pega, vai te enrolar/ não dá tempo de escapar./ O que mais raiva me dá/ é ter eu sido tão tonto". O homem é um tonto por não ter se dado conta de que a mulher que amava era uma "chorra", uma ladra. E não só ela, mas toda sua família.
Entre as esquisitices machistas, há uma letra que não se pode esquecer, de 1951: a adaptação para o tango de "Venganza", originalmente uma canção brasileira ("Vingança"), de Lupicínio Rodrigues, vertida ao espanhol pelo escritor paraguaio Augusto Roa Bastos, que depois ficaria célebre como romancista. A canção foi um dos grandes sucessos daquele ano, em pleno governo de Perón. Aqui vai a primeira estrofe: "Gostei tanto, tanto quando me contaram/ que te viram bebendo e chorando na mesa de um bar,/ e que quando os amigos do peito por mim perguntaram/ um soluço cortou tua voz, não te deixou falar./Eu gostei tanto, tanto, quando me contaram/ que tive mesmo de fazer esforço pra ninguém notar".

ROCK Podia continuar dando exemplos até o infinito, mas é melhor parar por aqui. É um bom momento, porém, para fazer uma digressão e passar para o rock. Uma pergunta: quem é o artista mais revolucionário da história do rock??Peter Gabriel. Ele foi o primeiro que se dispôs a cantar careca.
Antes dele, o rock era coisa de cabeludos, de melenas ao vento. Mas Peter Gabriel conseguiu fazer com que ser careca virasse "cool" (Moby não seria nada sem Peter Gabriel). Pois no tango não existem cantores carecas. Ou melhor: claro que há carecas, só que a virilidade kitsch do tango proíbe carecas, então os cantores calvos são obrigados a usar peruca: horrendos "peluquines" que esquentam a cabeça de um jeito absurdo.
A mensagem seria algo assim como dizer que o macho não perde o cabelo. E mais ainda: não pode ficar de cabelo branco (o macho tem cabelo bem preto, como um cavalo tem toda a potência sexual). E o que faz o tangueiro grisalho? Pinta o cabelo! É ligeiramente patético ver, nos poucos programas de televisão que ainda passam tango, os velhos cantores sofrerem o efeito da luz forte dos refletores: a transpiração derrete a tintura e um suave jorro de cor negra avermelhada costuma lhes escorrer pela testa, pelo pescoço; e a peruca brilha demais, como uma pedra lunar apoiada num vale de lágrimas.
O tango é hoje um objeto turístico ou um objeto de estudo para pesquisadores de ciências sociais e estudos culturais. Os livros sobre tango continuam a sair e alguns são até recomendáveis: penso em "101 Discos de Tango para la Discoteca" [Sudamericana], de Héctor Angel Benedetti, um dos maiores eruditos do tema, publicado no ano passado, ou "Esos Malditos Tangos - Apuntes para la Otra Historia" [Biblos], de Ricardo Horvath, que narra a história secreta do gênero; ou outro livro também recente, cheio de cruzamentos culturais muito interessantes, "Bossa Nova y Nuevo Tango - Una Historia de Vinicius a Astor" [Corregidor], de Enrique Strega. Aos quais se soma o sempre eficaz DVD do filme "Café de los Maestros", de Gustavo Santaolalla. Mas os livros e até uma certa moda recente de tango eletrônico (tango com DJ!) não fazem reviver uma música que já não tem mais nada a dizer sobre o presente.
Estou exagerando? Pode ser. Sou muito arbitrário, quase caprichoso? Talvez. Mas criticar o tango em Buenos Aires continua sendo uma heresia. A sociedade condena quem o faz, transforma-o em alguém irremediavelmente contracorrente.
Como aquela velha piada portenha que gosto de contar: um carro vai na contramão por uma rodovia. O motorista liga o rádio e escuta: "Cuidado, um maluco está dirigindo na contramão por uma rodovia de intenso tráfego"; e pensa: "Um só? Mas são milhares!".


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