São Paulo, domingo, 21 de agosto de 2011

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PERFIL

Roleta paulistana

Fernando Haddad tenta se cacifar para concorrer à prefeitura

RESUMO
Neófito em campanhas eleitorais, o ministro da Educação, Fernando Haddad, conta com o beneplácito de Lula para tentar se firmar candidato do PT à Prefeitura de São Paulo. Reivindicando os CEUs da gestão Marta e o ProUni federal, projeta-se como promessa de renovação do partido após a crise do mensalão, em 2005.


VERA MAGALHÃES
ilustração RAFAEL CAMPOS ROCHA

NUM PAVILHÃO abarrotado de alunos da rede pública de São Bernardo do Campo, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, suando e descabelado, abraça um menino aqui, dá um autógrafo ali, caminha com dificuldade enquanto tentam lhe puxar a jaqueta esportiva, ao som de "Ô, Lula! Cadê você? Eu vim aqui só pra te ver!".
Cem metros adiante, o ministro da Educação, Fernando Haddad, segue acelerado, sorridente e alheio aos (raros) pedidos de pose para fotos. Quase vai embora sem se despedir. "Ministro, o presidente...", alerta um assessor. Ele dá meia-volta e completa o ritual.
Fernando Haddad, 48, ensaia os primeiros passos na política eleitoral. A feira literária no ABC foi a estreia ao lado do mentor de sua pré-candidatura a prefeito de São Paulo pelo PT. Os dois se revezaram para ler para as crianças, e Lula disse ter certeza que, se for escolhido, seu pupilo será um "excelente candidato".
Para isso, terá antes de cruzar a linha que separa o acadêmico multidisciplinar e gestor do candidato que resolveu aceitar ser.
BIOGRAFIA Diferentemente de outras passagens de sua biografia, em que se valeu de disciplina, estudo e mérito para alcançar seus objetivos, desta vez Haddad terá de se movimentar pelo terreno acidentado da lógica interna do partido, ao qual se filiou em 1983. Quem acompanha a trajetória do filho de imigrante libanês que começou ajudando o pai, Khalil, no comércio atacadista de tecidos, aposta que ele vai levar a empreitada a sério.
Foi no terceiro ano da faculdade de direito da USP, no largo São Francisco, perto da loja do pai, na rua 25 de Março, que Haddad começou a militância política. "Logo que entrei na faculdade, só se falava em marxismo. Depois descobri que muito se falava, mas pouca gente lia. Mas eu levei a sério. Nos dois primeiros anos, li muito Marx. O que me inquietava era como um pensamento de tal forma libertário podia ter resultado em regimes tão fechados e totalitários."
A imersão marxista e a crítica aos regimes comunistas levaram à aproximação com militantes de fora das duas correntes que se revezavam no Centro Acadêmico 11 de Agosto -o Partido Comunista Brasileiro, alinhado à União Soviética, e a trotskista Libelu (Liberdade e Luta), que se opunha à linha soviética.
"Eu não conseguia ver no trotskismo uma crítica consistente ao stalinismo. Considerava a crítica trotskista um pouco moralista. Era como se o problema fosse a substituição das pessoas que estavam à frente do processo, e não a estrutura do regime."
Por ironia, essa última frase talvez seja um bom resumo de sua ascensão aos píncaros do poder, mais de 30 anos depois, após as sucessivas crises do governo Lula.

THE PRAVDA A insatisfação levou à formação da chapa The Pravda, encabeçada pelo veterano Eugênio Bucci, para disputar o "11". O logotipo misturava as letras góticas da marca do jornal "The New York Times" ao alfabeto cirílico do diário soviético "Pravda" ("verdade"). "Éramos uma corrente descendente da esquerda, mas muito crítica ao dogmatismo de esquerda", rememora Bucci, eleito tendo Haddad como vice.
"Aquilo não era um centro acadêmico, era uma empresa, com um restaurante com 17 funcionários, gráfica, campo de futebol e estacionamento. Ali, o Fernando, que vinha do comércio na 25 de Março, ganhou traquejo administrativo e começou a se mostrar vocacionado para a gestão", conta Bucci.
Haddad não demorou a se tornar o candidato "natural" à sucessão no "11" -o único ensaio, até aqui, de algo próximo a uma campanha eleitoral. O futuro pupilo de Lula não tinha votado nele para o governo paulista em 1982, e sim em Rogê Ferreira (1922-91), do PDT brizolista. Não achava que o PT fosse socialista. "O Lula vive brincando comigo e dizendo: 'Haddad, você nunca votou em mim'."

CRISES Dos tempos da São Francisco, Haddad conservou a gaforinha de galã, cuja peça de resistência é o "mullet" (corte típico dos anos 80, mais curto na frente e dos lados e com alguns dedos avançando sobre o colarinho na parte de trás), e a amizade com Bucci. As crises no PT, porém, os levaram a destinos opostos.
Enquanto o mensalão, em 2005, abriu os caminhos do poder para Haddad, Bucci viu-se sem o respaldo do Planalto ao tentar evitar que a Radiobrás, emissora pública que presidia, fizesse uma cobertura "chapa-branca" da CPI dos Correios, que investigou o escândalo. Já Haddad, adjunto de Tarso Genro na Educação, tornou-se, de novo, candidato "natural" a suceder ao chefe, que foi chamado às pressas para presidir o PT, no lugar de José Genoino, cujo irmão fora flagrado com dólares na cueca.
Amargurado, Bucci deixou seu posto em Brasília e voltou para São Paulo, não sem publicar o livro "Em Brasília, 19 Horas - A Guerra entre a Chapa-Branca e o Direito à Informação no Primeiro Governo Lula" (Record). A experiência ainda lhe rendeu poemas sobre o desencanto com o poder -dois deles podem ser lidos na pág. 10.
Já Haddad, assim como Dilma Rousseff, é um dos quadros que Lula catapultou ao primeiro plano da política depois de ver os nomes históricos do PT saírem de cena com os escândalos de corrupção.
Questionado pela Folha sobre a existência do mensalão, o ministro não enviou resposta. Sobre o tema, limita-se a dizer: "Nenhum partido tem se saído bem nesse campo".

TRAQUEJO Como ficou claro no evento em São Bernardo ao lado de Lula, não será por osmose que o pré-candidato vai ganhar traquejo no trato com as massas. Se o perfil "almofadinha" e a fala que mistura linguajar técnico e alta política têm apelo junto à classe média, sua performance na extenuante agenda política a que tem se submetido mostra que ele ainda precisa conquistar a militância.
Na sexta, dia 12, chegou no horário marcado a uma reunião na Vila Formosa, zona leste paulistana. Esperou por duas horas e, escalado para ser o primeiro, discursou sobre suas realizações na Educação.
Logo pediu desculpas e saiu: era esperado para jantar. Não ouviu os demais oradores.
No sábado, fez o contrário. Chegou com duas horas de atraso a uma plenária em Cidade Tiradentes, na mesma zona leste. Sua fala, sobre gestão, equilíbrio de gastos e superavit soou professoral e pedante a uma plateia bem mais interessada em transporte e saúde. Interpelado por vestir jaqueta sob forte calor, confessou: "Ainda vou ter de me acostumar a uma dose maior de informalidade".
Seu habitat natural era o jantar no qual era esperado na véspera. Ele falou sobre sua ideia para uma escola de turno integral em toda a cidade, avaliou que a administração da Saúde por Organizações Sociais retira transparência do sistema e fez uma peroração contra a omissão da prefeitura em relação à especulação imobiliária e a projetos que descaracterizam o urbanismo de certos bairros da cidade.
Entre os comensais, estavam o cientista político André Singer, a economista Leda Paulani, a psicanalista Maria Rita Kehl e o filósofo e colunista da Folha Vladimir Safatle -quase todos habitués da "pizza socialista", célebre na esquerda ilustrada de São Paulo, que nos anos 1990 e 2000 se reunia todo domingo na pizzaria Bonde Paulista, na rua Oscar Freire, em torno de Paulo Arantes (orientador de Haddad no doutorado), Roberto Schwarz e outros intelectuais.
Naquela sexta, ele convidou a turma para jantar em sua casa, a fim de expor suas ideias para a prefeitura paulistana.

SUCESSÃO O quadro político para a sucessão de Gilberto Kassab mal começa a se esboçar. A indefinição não se restringe ao PT, à exceção de Gabriel Chalita, já lançado pelo PMDB e que tende a rivalizar com Haddad como boa-pinta egresso da educação. Com a recusa de José Serra em se candidatar, o PSDB deve realizar prévias entre três secretários de Geraldo Alckmin -José Aníbal (Energia), Andrea Matarazzo (Cultura) e Bruno Covas (Meio Ambiente)- e o deputado Ricardo Trípoli.
No partido, Haddad tem como rival a ex-prefeita e atual senadora Marta Suplicy, que não esconde sua antipatia pelo "protégé" de Lula. Em entrevista ao jornal "O Estado de S. Paulo", ela afirmou: "Se não quiser ganhar, Lula vai com Haddad". ?No evento em São Bernardo, o ministro respondeu de maneira enviesada, mas reafirmou o laço com o ex-presidente: "Lula acha que o PT precisa passar por uma renovação, alargar seus horizontes, o diálogo com outras camadas da sociedade que se afastaram um pouco do nosso ideário".
As chances de Marta emplacar sua candidatura, no entanto, se reduziram drasticamente com a operação da Polícia Federal que no dia 9 prendeu um ex-assessor seu no Ministério do Turismo, pasta que ela ocupou entre 2007 e 2008.

SAYAD Foi na gestão Marta, no entanto, que Haddad assumiu seu primeiro posto na administração pública, pelas mãos do secretário de Finanças, João Sayad, que o conheceu nos anos 90.
Após concluir o doutorado em filosofia, ele voltara a trabalhar na loja do pai, a Mercantil Paulista de Tecidos, que enfrentava a crise do setor têxtil com a abertura econômica dos anos Collor (1990-92).
Conseguiu sanear a empresa e diversificou os negócios, com investimentos em construção civil, mas o Plano Real e a concorrência chinesa os levariam à falência -e, segundo à família, à morte de um desgostoso Khalil, em 2008, por acidente vascular cerebral.
"Um dia, eu estou no balcão da loja", conta ele, "e uma secretária diz: 'É o João Sayad'. Achei que era trote." Quem fez a ponte foi a amiga Leda Paulani. Os dois passaram a almoçar regularmente e a trocar ideias sobre economia e filosofia.
Quando foi eleita, em 2001, Marta convidou seu amigo Sayad, que não é petista, para assumir as Finanças de uma prefeitura devastada após oito anos de Paulo Maluf (1993-97) e Celso Pitta (1997-2000).
Sayad, seu assessor Haddad e o atual líder do PT na Câmara, Paulo Teixeira, então secretário de Habitação, sobrevoavam a periferia de helicóptero quando o hoje ministro teve a ideia dos CEUs (Centros de Educação Unificada), futura vitrine da gestão Marta.
"Voltamos daquele voo muito impactados, o Sayad e eu", narra o próprio Haddad. "A Secretaria de Finanças ficava na praça da República, onde você tem a Biblioteca Mário de Andrade, tem o Theatro Municipal, tudo num perímetro próximo. E eu disse: 'João, vamos montar uma praça da República em cada uma dessas localidades?'. E ele falou: 'Sensacional'. A Marta abraçou a ideia com entusiasmo e mandou fazer."
"Eu estava lá quando o Fernando teve a ideia dos CEUs, a partir de uma constatação de que na periferia não havia lugares que integrassem educação, lazer e cultura", entusiasma-se Teixeira. Eugênio Bucci também atesta a "paternidade" dos CEUs: diz que, ao ouvir o "insight" que Haddad teve no helicóptero, seu irmão, o arquiteto Angelo Bucci, disse-lhe que havia um projeto naqueles moldes, de autoria do arquiteto Alexandre Delijaicov, engavetado na prefeitura desde a gestão Celso Pitta.
A amigos, Sayad se refere ao ex-assessor como "brilhantíssimo". E confirma a história do helicóptero.

BRASÍLIA Quando os primeiros CEUs foram inaugurados, em setembro de 2003, Haddad já integrava o governo Lula. Leda Paulani, de novo ela, deu uma "bronca" em Guido Mantega durante a festa de aniversário do recém-nomeado porta-voz presidencial André Singer: "Como é que você não chama o Fernando para o governo?".
Haddad saiu da festa com um convite para ser assessor especial de Mantega no Ministério do Planejamento. Recebeu a missão de montar o projeto de PPPs (Parcerias Público-Privadas), lançado em seguida, mas que só saiu do papel no segundo mandato, com as obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).
Estela, com quem se casou em 1988 e teve duas filhas, também foi nomeada para cargo no MEC, sob Cristovam Buarque. "Um dia, ela me liga chorando com a carta de uma mãe que não sabia o que fazer para pagar o financiamento estudantil de um filho morto", conta Haddad. "Eu disse que deveria haver uma anistia, como há em financiamentos imobiliários. Fomos estudar a legislação tributária e o regime jurídico das instituições, juntando um quebra-cabeça, e disso nasceu o ProUni", diz, reivindicando direitos autorais -endossados por Lula- de mais um plano de alta voltagem eleitoral.
Ao assumir a Educação, logo depois, Tarso Genro chamou Haddad para ser seu adjunto. "O presidente disse que queria lançar um plano de impacto na educação. E eu disse: 'Eu e a Estela temos um programa que vai te permitir matricular 400 mil jovens nas universidades'. Ele perguntou a que custo. E eu disse: 'Zero'. Da posse do Tarso ao lançamento do projeto, se passaram duas ou três semanas."
Quando fala em "custo zero", Haddad quer dizer que as instituições privadas de ensino, que concedem bolsas de estudos a alunos que não poderiam pagar, recebem incentivos fiscais do governo. "Antes essas instituições já não recolhiam nada", diz o ministro.
O ProUni, criado em 2004, foi o cartão de visita de Haddad para o coração de Lula e uma das principais bandeiras na reeleição, que se deu sob o signo de escândalos como o mensalão e o dos "aloprados", como o presidente chamou os petistas que tentaram comprar um dossiê para prejudicar a candidatura de José Serra.

REVESES O ministro assume um tom defensivo quando fala dos recentes tropeços do MEC sob sua gestão. Reclama, por exemplo, da atuação da imprensa na cobertura da fraude do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) em 2009. E do que considera uma cobrança indevida dos órgãos de controle para que prova "tão complexa" fosse licitada.
"O que nos tranquilizou foi a contratação do maior parque gráfico da América Latina", diz ele sobre a Plural (parceria do Grupo Folha e da Quad Graphics). "Mas houve um vazamento que trouxe uma instabilidade para o Inep, que é um dos melhores institutos de pesquisa em educação do mundo, que só agora está sendo superada. O fato de termos sido vítimas de um crime e ainda assim termos reestruturado a prova em 60 dias não foi levado em conta."
Em relação à polêmica em torno da cartilha e do kit anti-homofobia que o ministério planejava implementar nas escolas, em parceria com uma ONG, mais uma vez o postulante a prefeito se queixa da imprensa -expediente utilizado em larga escala pelo PT e levado ao paroxismo por Lula.
Ele diz que o material nem chegara ainda para sua aprovação. O kit era composto por uma cartilha e vídeos que seriam exibidos em escolas para combater o preconceito contra homossexuais.
"Nesse caso, o parecer do Ministério Público pedindo o arquivamento da representação diz que a imprensa teve um comportamento temerário. O debate, na minha opinião, é bem-vindo, mas poderia ter se dado num nível mais elevado", diz Haddad, sem explicar por quê, então, o governo resolveu suspender a elaboração do kit.

DESAFIO A forma quase ofendida com que Fernando Haddad reage às críticas mostra que o exercício da humildade e do jogo de cintura político serão seu grande desafio de agora em diante.
Reconduzido por Dilma Rousseff ao MEC e às voltas com o Pronatec -projeto de ensino técnico que a presidente quer igualar ao ProUni-, ele usará os fins de semana para dar conta do périplo que o PT promove para os pré-candidatos ao posto de Gilberto Kassab. A desconfiança generalizada que de início envolveu seu nome já se transformou em apoios no PT paulista, como o do presidente estadual, Edinho Silva, e os de prefeitos da Grande São Paulo.
A candidatura começou a ser gestada em março, quando Lula o chamou para uma conversa no Instituto Cidadania, no Ipiranga. Pediu sua autorização para "conversar com algumas pessoas" sobre seus planos. Haddad jura que, até então, a disputa eleitoral não lhe passava pela cabeça.
Agora, pretende promover o que chama de "radicalização da democratização das oportunidades" -seja lá o que isso signifique. Ele tenta explicar: "As pessoas estão desprovidas de bens essenciais. Quando se leva uma escola técnica para o meio do nada e se vê a transformação que ela gera, não há como não entender isso como uma ação transformadora".
E continua socialista, depois de tantos anos e de tantas andanças? "Eu, hoje em dia, me definiria como uma pessoa dessa linhagem marxista, mas a da teoria crítica. Não consigo deixar de buscar nas brechas do capitalismo oportunidades de melhorar a vida das pessoas, mas preservando todas as liberdades individuais."

Dos tempos da São Francisco, conservou a gaforinha de galã, cuja peça de resistência é o "mullet", e a amizade com Bucci. As crises no PT, porém, os levaram a destinos opostos

No partido, ele tem como rival a senadora Marta, que não esconde sua antipatia para com o 'protégé' de Lula. Em entrevista, ela afirmou: "Se não quiser ganhar, Lula vai com Haddad"

João Sayad, Fernando Haddad e Paulo Teixeira sobrevoavam a periferia de São Paulo de helicóptero quando o hoje ministro teve a ideia dos CEUs, futura vitrine da gestão Marta


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