São Paulo, domingo, 21 de agosto de 2011

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ARTE

Renascença no gueto

O grafite, filho bastardo da liberdade e do caos

RESUMO
Ícone da cultura urbana de Nova York, o grafite passou de expressão de guetos e minorias raciais ao status de arte, ganhando mostras em museus como o Moca (em Los Angeles) e o Masp paulistano. Livros narram origens, evolução e perspectivas da arte urbana, que enfrenta onda de repressão em Nova York e São Paulo.


FRANCISCO QUINTEIRO PIRES

QUATRO DÉCADAS ATRÁS, um adolescente de 17 anos se tornou o rei das ruas de Nova York. O epíteto veio depois de ele deixar sua assinatura, TAKI 183, pelos muros cidade afora.
Em entrevista ao "New York Times" publicada em 21 de julho de 1971, ele disse agir por vontade própria, não para impressionar as garotas, "que parecem não se importar".O perfil do jovem marcava a estreia na grande imprensa da rubrica "grafite", arte até ali marginal que apagava os limites entre os espaços público e privado.
As transformações desse movimento artístico ilegal ganharam o ambicioso volume "The History of American Graffiti" (história do grafite americano) [Harper Design, 400 págs., R$ 89,30], em que os autores Roger Gastman e Caleb Neelon condensam uma pesquisa que incluiu mais de 500 entrevistas para retraçar a trajetória do grafite nos EUA. Nova York, o epicentro evolutivo do movimento, é o fio condutor da narrativa, que percorre 25 Estados.
O lançamento é oportuno. Apesar de ter cada vez mais praticantes nos EUA, mesmo em localidades pequenas, as autoridades continuam a tratar os artistas do grafite como vândalos.
"Governos são péssimos no que se refere a entender e encorajar a arte pública", diz Neelon à Folha. "O grafite permanece controverso porque há uma dificuldade em conceber algo fora do padrão: a noção de arte de rua se restringe a estátuas de ilustres e figuras abstratas pouco expressivas."

EXPOSIÇÃO CANCELADA O exemplo mais recente dessa leitura enviesada do grafite foi o cancelamento da itinerância da exposição "Art in the Streets" no Brooklyn Museum, prevista para 2012. Segundo o diretor do museu, Arnold L. Lehman, a suspensão se deveu a cortes orçamentários.
Mas a explicação pode ser outra. Em abril, um editorial feroz do tabloide "New York Daily News" censurou a mostra, que acaba de deixar o Museum of Contemporary Art (Moca) de Los Angeles, onde foi a mais visitada da história da instituição.
"Eles [os curadores] estão dando à destruição da propriedade alheia um lugar sagrado nos salões da grande arte", dizia o texto. "Estão furando os olhos dos donos de bares e restaurantes que lutam para manter seus negócios livres de grafite, para não falar de todos os nova-iorquinos que se lembram com vergonha dos vagões de metrô cobertos de grafite."
O artigo também tratava, com estupefação, do fato de latas de tinta em spray estarem à venda na lojinha de suvenires do museu californiano, ao mesmo tempo que grupos de estudantes passeavam pelos corredores do Moca.
Segundo as autoridades de Los Angeles, áreas vizinhas ao Moca foram cobertas por desenhos feitos com spray porque a exposição teria glorificado a prática criminosa. Após ler o editorial do "Daily News", Peter F. Vallone Jr., do City Council, onde as leis de Nova York são criadas, pediu o cancelamento da mostra na cidade.
Vallone Jr. lembrou que a cidade destina ao Brooklyn Museum US$ 9 milhões (R$ 14,2 milhões) anuais -quantia que o editorial não se furtou a mencionar, comparando-a com os US$ 2,4 milhões (R$ 3,8 milhões) gastos por ano no combate ao vandalismo. Por enquanto, nenhuma galeria ou museu de Nova York se prontificou a acolher a mostra, apesar do sucesso de público na temporada californiana.

REPRESSÃO Em sintonia com a recueta nova-iorquina, as cidades de Albuquerque, Chicago, Denver, Nashville, Newark, Miami, Portland e Washington endureceram a repressão ao grafite. A fiança para o reincidente pode ultrapassar os US$ 4 mil (R$ 6,3 mil).
No mês passado, policiais de Los Angeles prenderam oito membros de uma gangue, expressão que os grafiteiros rejeitam. Eles preferem "crew" (grupo). "Gangue é uma palavra tão maldita na América quanto comunismo e terrorismo", diz Neelon. Os jovens teriam feito mais de 1.600 desenhos nos muros da cidade.
Omaha, cidade de pouco mais de 400 mil habitantes no Estado de Nebraska, destinou cerca de US$ 40 mil (R$ 63,2 mil) para a repressão ao vandalismo.
A 370 km dali, quartel-general do bilionário Warren Buffett, encontra-se North Platte, o paraíso dos grafites. Os trens de carga que circulam pelos EUA se cruzam ali, no maior pátio ferroviário do país.
Desenhos de diferentes origens podem ser vistos nos vagões que se movimentam por essa galeria itinerante a céu aberto.
A associação do grafite à destruição de bens públicos, segundo Neelon, reflete uma psicose norte-americana. As autoridades ignoram, ele prossegue, as históricas barreiras raciais e econômicas que essa arte urbana teria derrubado. Originalmente identificada com negros e latinos, a atividade caiu também no gosto de brancos e asiáticos. Em torno dela, os grupos andavam juntos e trocavam experiências, situação improvável fora do movimento artístico.

GRAFITE KASSABISTA No Brasil, há demonstrações recentes de uma perspectiva menos criminalista -liberal, "ma non troppo". A Prefeitura de São Paulo autorizou a colocação de murais e obras de grafite nas laterais de prédios -que, até a promulgação da Lei Cidade Limpa, em 2007, não raro abrigavam anúncios imensos.
As empresas que bancarem a realização dos trabalhos poderão neles exibir suas marcas, com discrição. Há um porém: Kassab não quer saber de desenhos "pesados", com motivos "tristes", seja lá o que isso signifique. Enquanto isso, o Masp reúne na exposição "De Dentro e de Fora", até 23/12, criações de oito expoentes da arte de rua, incluindo a trinca francesa JR, Invader e Remed.
Todos desdobram princípios e práticas que estavam na raiz da explosão do grafite, a partir de 1972, graças ao sistema metroviário nova-iorquino. "Os maiores saltos evolutivos foram causados pelo metrô", diz Neelon. "Os artistas viram nele a possibilidade de falar com a cidade inteira." Cerca de 40% dos trilhos foram construídos acima da superfície, o que deu mais publicidade aos desenhos.
Neelon e Gastman chamam de "anos dourados" o período entre 1974 e 1979. Os grafiteiros tinham no máximo 20 anos e nutriam um desejo comum de reconhecimento. Em "American Graffiti", eles apontam uma política governamental e um urbanista como molas propulsoras dessa arte adolescente.
"O sistema educacional falido ajudou a aumentar a negligência em relação aos jovens." Quando a União Soviética lançou o satélite Sputnik 1, em 1957, assumindo a dianteira na corrida espacial, soou o alerta de que a educação nos Estados Unidos falhara. "Para incentivar os estudos matemáticos e científicos, ocorreram cortes em esportes e artes."
A decadência do ensino foi contemporânea do planejamento urbano de Robert Moses (1888-1981) para a Nova York do meio do século. As medidas implantadas por ele privilegiavam os carros: construiu estradas e pontes para favorecer a circulação automobilística entre a cidade, onde as pessoas trabalhariam, e os subúrbios, onde morariam. O transporte público não estava entre suas prioridades.

ESCAPE O êxodo dos ricos coincidiu com a crise econômica da cidade, que foi à bancarrota em 1975, depois de o governo federal lhe negar auxílio. Um espaço urbano desolado, onde grassavam a sujeira e a violência, parecia lançar os jovens rumo a grandes declarações identitárias, válvulas de escape da terra arrasada.
Nesse contexto, surgiram bolsões de pobreza isolados, como o sul do Bronx. Ali, em meados da década de 1980, imigrantes caribenhos inventaram o hip-hop. O novo movimento adotou o grafite como um dos seus quatro elementos (ao lado do som dos MCs e dos DJs e dos passos do "break") e assim o divulgou nacionalmente.
A propagação dos desenhos ilegais era encarada nos anos 1970 como indício de inação do poder público municipal. Era preciso coibi-los para que nova-iorquinos e turistas se sentissem mais seguros. Em 1972, o prefeito John Lindsay, que tachara os grafiteiros de "covardes inseguros", assinou a primeira lei antigrafite.
Uma década depois, a repressão se baseou na teoria das janelas quebradas, de George L. Kelling e James Q. Wilson. Segundo esse raciocínio, os pequenos delitos sugerem que existe espaço para os crimes mais graves. Por isso, devem ser punidos com bastante rigor.
A prefeitura declarou o fim da batalha em 1989, quando limpou as inscrições de todos os vagões do metrô. O então prefeito Ed Koch celebrou a realização apontando Nova York como a tela mais maravilhosa do mundo. "Mas ela não pertence a um vândalo. É do povo", ressaltou, à época.
Nos anos 1980, após se espraiarem pelos EUA, os grafites nova-iorquinos inspiraram jovens pelo mundo. Neelon aponta o livro "Subway Art" (1984) e o documentário "Style Wars" (1984) como os evangelhos da juventude rebelde.
Na mesma década, ocorreram, ainda que sem frutos duradouros, os primeiros flertes entre galeristas e artistas de rua. Jean-Michel Basquiat (1960-88) e Keith Haring (1958-90) incorporaram técnicas do grafite a seus trabalhos, cada vez mais disputados. Houve até grafiteiros, como Lee George Quiñones, a circular em festas descoladas no Upper East Side.
Até 8 de janeiro de 2012, obras de Quiñones e de outros 74 artistas estão em cartaz na "The (S) Files 2011", bienal organizada pelo Museo del Barrio (NY) com foco na "street art".

A ERA DE BANKSY A relação entre o circuito oficial e a arte de rua se consolidou no início da década passada, segundo Neelon, também autor dos livros "Street World" [2007, Harry N Abrams, 384 págs., R$ 78] e "Graffiti Brasil" [2005, Thames & Hudson, 128 págs., R$ 37]. Despontaram estrelas de primeira grandeza, como Banksy, Osgemeos, JR, Marc Ecko e Shepard Fairey. Suas obras viraram objeto de culto.
Neelon tem medo, no entanto, de que o grafite acabe por se transformar em um "jogo de adultos", para aqueles com mais de 30 anos. Os jovens sentem hoje mais dificuldade em começar por conta da competição dentro de um espaço institucional fechado.
Os grafiteiros do futuro, ele prevê, vão aparecer em regiões menos cosmopolitas dos EUA ou em cidades como Istambul, Teerã, Xangai, Cidade do Cabo, Cabul e São Paulo. "O grafite sempre vai representar a oportunidade de o jovem sair às ruas, ser rebelde e extrair diversão dessa rebeldia", diz."Pois ele é o filho bastardo da liberdade e do caos."

Apesar de a arte ter cada vez mais praticantes nos EUA, mesmo em localidades pequenas, as autoridades continuam a tratar os grafiteiros como vândalos

Albuquerque, Chicago, Denver, Miami e outras cidades americanas endureceram a repressão ao grafite. A fiança para o reincidente pode ultrapassar US$ 4 mil

"History of American Graffiti" define como "anos dourados" o período entre 1974 e 79. Os grafiteiros tinham até 20 anos e nutriam um desejo comum de reconhecimento

A relação entre o circuito oficial e a arte de rua se consolidou no início da década passada, quando despontaram Banksy, Osgemeos, JR e outros


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