São Paulo, domingo, 21 de agosto de 2011

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CRÍTICA

Cabo de guerra multiculturalista

Será o politicamente correto uma ameaça ou um alento?

RESUMO Livros discutem prós e contras do discurso e das atitudes politicamente corretas. A britânica Susan Haack critica o excessivo relativismo, que em nome das diferenças terminaria por reforçar preconceitos; o espanhol Xavier Rubert de Ventós vê no politicamente correto uma tentativa de reparação em curso.

OSCAR PILAGALLO

DERIVADA DO multiculturalismo, que procura relativizar os valores do segmento dominante da sociedade, a atitude politicamente correta, embora ainda goze de prestígio, vem perdendo o apoio quase consensual de que chegou a desfrutar e cada vez mais enfrenta focos de resistência.
A inversão da tendência se deu em dois tempos. Primeiro, a aplicação excessiva do corretivo ameaçou tolher a liberdade dos defensores do politicamente incorreto. Segundo, estes, no papel de vítimas, conquistaram simpatia e ganharam espaço na sociedade.
Reagindo ao recrudescimento da onda reacionária, Marcelo Coelho, por exemplo, cunhou, em sua coluna na Ilustrada, a expressão "politicamente fascista" para se referir a piadas sobre Auschwitz feitas pelo humorista Danilo Gentili, que tem um livro e um show intitulados "Politicamente Incorreto".
A disputa ideológica ganha densidade acadêmica com o lançamento de obras que sondam a natureza das atitudes antagônicas.

PURISTA ANTIQUADA A filósofa Susan Haack se alinha aos críticos do multiculturalismo no livro "Manifesto de uma Moderada Apaixonada - Ensaios Contra a Moda Irracionalista" [trad. Rachel Herdy, editora PUC-Rio e Edições Loyola, 336 págs., R$ 55]. Para a britânica, "a verdade é objetiva".
Enfrentando os "pseudosofisticados da nova moda", ela se descreve como uma "purista antiquada" e dispara: "Embora algumas proposições verdadeiras façam sentido somente quando entendidas em relação a um lugar, tempo, cultura, sistema jurídico etc., a verdade não é relativa".
Haack investe contra os multiculturalistas, para os quais a investigação intelectual não seria possível nem desejável. Tal corrente, diz ela, acredita que "todo aquele papo-cabeça sobre investigação desinteressada [...] é nada menos do que uma cortina de fumaça a esconder operações de poder".
A professora diz que o multiculturalismo, apesar de parecer atraente, é um termo que, por sua ambiguidade, chega a ser ameaçador. No caso da educação, por exemplo, ela diferencia o multiculturalismo pluralista do particularista. O primeiro defende a ideia de que os estudantes conheçam outras culturas além da própria. Mas Haack acha perigoso o multiculturalismo educacional particularista -aquele que prega que os estudantes de ascendência estrangeira sejam educados em sua própria cultura, e não na do país que os recebeu.
Para ela, trata-se de uma ideia equivocada, pois pode contribuir para a intolerância e o ressentimento mútuos. "Isso é errado não só em sua pressuposição de que o aumento da autoestima dos alunos é uma meta imediata da educação mas [...] em sua incapacidade de reconhecer que um sentimento de autovalor provavelmente será mais bem encontrado no domínio de alguma disciplina difícil do que no encorajamento étnico."

ESSÊNCIA RACISTA A síntese da argumentação é a seguinte: "A 'cultura ocidental', costuma-se pensar, tem sido em grande parte o trabalho de homens brancos, heterossexuais etc.; esta, consequentemente, dá uma desmerecida autoridade às suas formas de saber [...] e serve a seus interesses.
A primeira frase sugere que há 'modos de saber' dos negros ou das mulheres, ou dos homossexuais, uma ideia que me parece ser [...] a essência do racismo e do sexismo; a segunda marca a ligação com filosofias radicais que negam a possibilidade de separar conhecimento e poder".
Tal "contraculturalismo epistemológico", diz a autora, "é uma manifestação do irracionalismo incrivelmente difundido e articulado dos nossos tempos".
Uma das ações afirmativas do politicamente correto é o sistema de cotas de inclusão social, que Haack desaprova. "Quando se sabe que uma diretriz de contratação preferencial está em vigor, incentiva-se a crença de que a nomeação de uma mulher se deve ao fato de ela ser uma mulher, e não porque é a melhor candidata. Se uma mulher fraca ou medíocre é contratada, suas fraquezas serão salientes demais para muitos daqueles que [...], ressentidos com a contratação preferencial [...], facilmente conseguem não perceber as fraquezas dos muitos homens fracos e medíocres à sua volta."
Para ela, cotas são "esforços bem-intencionados, mas mal concebidos". Ela defende a meritocracia e lamenta que alguns proponentes da ação afirmativa aludam a um "mito do mérito".

CONTRAPONTO Em "Deus Entre Outros Inconvenientes" [trad. Eliana Aguiar, Objetiva, 208 págs., R$ 34,90], o intelectual espanhol Xavier Rubert de Ventós faz um contraponto irreverente às posições de Haack.
Ele denuncia o conservadorismo das anedotas sobre o politicamente correto. Para Ventós, "são essas as histórias, tidas como engraçadas, com que muitas vezes se põe uma pedra sobre o assunto, depois de alertar para todos os perigos que essa 'maquiagem', tão americana, dos verdadeiros conflitos e desigualdades comporta para a verdadeira igualdade".
O espanhol, no entanto, acha que o politicamente correto é o oposto de uma maquiagem. Para ele, "a ação de lutar tanto pela contratação (discriminação positiva para minorias) como pela designação (linguagem politicamente correta) dos grupos marginais ou minoritários não parece mais que uma tímida tentativa de amenizar ou compensar a desigualdade de oportunidade de que eles partem".
Para o pensador espanhol, há um aspecto ainda mais importante. "A correção política [representa uma] intenção legítima de 'correção em curso' tanto das inércias sociais e linguísticas que atazanam o presente quanto das tendências predatórias que ameaçam o futuro do planeta."
Ventós lembra que o preconceito contemporâneo não atinge só minorias marginalizadas. Há ainda o que ele denomina de preconceito estético-erótico.
O argumento é esmiuçado com uma lembrança pessoal, dos tempos na Universidade de Berkeley (EUA). Lá, conheceu duas moças simpáticas, uma feia, outra bonita. Elas combinavam concorrer a uma mesma vaga, de secretária, por exemplo.
A primeira comparecia à entrevista e demonstrava competência em tudo o que era exigido. Depois, a bonita se apresentava, demonstrando "um angelical desconhecimento da informática e até da gramática". Quando acontecia de a bonita ser contratada, o que era frequente, as duas processavam a empresa, e chegaram a ganhar algum dinheiro com isso.

COMPENSAÇÃO A partir do episódio, Ventós reflete: "Penso que o mais honesto e efetivo nesse caso não é negar nossos preconceitos, mas tomar consciência deles para chegar, eventualmente, a compensá-los."
O pensador acredita ser justa a denúncia da discriminação no mercado de trabalho por causa da aparência, como fizeram suas amigas da universidade. Mas esse seria apenas o primeiro passo. "Também é necessário que belos e feios tomem consciência de que essa discriminação opera e continuará operando apesar de tudo."
O que fazer, então? Ventós sugere: "Ser consciente do próprio 'handicap' pode permitir superá-lo ou neutralizá-lo".
Para o espanhol, "o dogma liberal desejaria que a aparência e outros fatores genéticos não tivessem influência decisiva na vida dos indivíduos". Afinal, para o liberalismo, cada um merece aquilo que recebe. "A face obscura dessa ideia é a convicção de que, se nos coube a desgraça ou a miséria, algo fizemos para merecê-la [...]. Esta é a crença liberal que culpa o desgraçado por suas desgraças ao mesmo tempo em que exime o agraciado de qualquer responsabilidade para com os outros."
Ventós lamenta que não se tenha criado nada mais eficaz do que a discriminação positiva nem menos brega do que o politicamente correto. O que não o impede de defender a compensação social de distorções causadas pela desigualdade de oportunidades. A autocrítica bem-humorada, aliás, pode facilitar tal defesa, ao tirar um pouco do peso de uma bandeira que, às vezes, é difícil carregar.

A disputa ideológica entre correção e incorreção política ganha densidade acadêmica com o lançamento de obras que sondam a natureza das atitudes antagônicas

A filósofa britânica Susan Haack diz que o multiculturalismo, apesar de parecer atraente, é um termo que, por sua ambiguidade, chega a ser ameaçador

O pensador espanhol Xavier Rubert de Ventós denuncia o conservadorismo das anedotas a respeito do politicamente correto, que põem uma pedra sobre conflitos e desigualdades


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