São Paulo, domingo, 21 de novembro de 2010

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LITERATURA

Amor, sexo e ciúme

A turbulenta vida familiar do casal Tolstói




RESUMO
A "beatificação" do autor de "Anna Kariênina" e o estigma de "megera" de sua mulher reforçaram a mística em torno do casal Tolstói. Em textos de Liev, contra o casamento e a hereditariedade, e nos diários de Sofia, marcados pelo ciúme e pela devoção, aflora a peculiar visão de amor, sexo e vida familiar do mestre russo.

BERNARDO CARVALHO
ilustração MARCELO COMPARINI

O CASO FAZ PARTE do anedotário da literatura universal: na madrugada de 28 de outubro de 1910, aos 82 anos (48 deles casado), Liev Tolstói (1828-1910) abandona para sempre a propriedade rural da família, Iásnaia Poliana, onde nasceu e onde será enterrado dias depois, a 200 km a sudoeste de Moscou. Como o protagonista de sua novela "Padre Sérgio" (1898), pensa em se refugiar num mosteiro distante ou numa ermida e lá, longe da mulher, Sofia Andrêievna, viver finalmente em paz.
Não é a primeira vez que foge (ou ameaça fugir) de casa. Vinte e seis anos antes, quando a mulher entrava em trabalho de parto (pela 15ª gravidez), o escritor saiu de casa para fazer a vida na América. E voltou horas depois, a tempo de ver a criança nascer.
"Ele estava passando por sua conversão -para o Cristianismo! Só que nesse Cristianismo, o martírio era meu", escreve Sofia Andrêievna nos diários recém-publicados em inglês, pela Harper Perennial, com tradução de Cathy Porter e prefácio de Doris Lessing.
ATO PATÉTICO Ao acordar e ler a carta de despedida (desta vez, definitiva) do marido, ela decide se afogar. Está com 66 anos. Atira-se num tanque. O ato patético e intempestivo lembra mais uma cena do filme "A Última Noite de Bóris Grushenko", de Woody Allen, do que um texto do autor de "Anna Kariênina". Não é a primeira vez que ela tenta o suicídio. Nas anteriores, além do tanque, recorreu à inanição, à overdose por ópio e à morte por congelamento, indo deitar-se na neve depois de uma briga conjugal.
Retirada das águas pela filha mais jovem, Aleksandra, de 26 anos, e pelo secretário do marido, ela passa dias delirando, aos prantos, até receber o telegrama de um jornalista caridoso que revela enfim à família o paradeiro do escritor -conhecido até então apenas pela caçula, que tinha razões de sobra para escondê-lo da mãe.
"Serei grata até a morte ao correspondente do jornal 'A Palavra Russa'", escreverá anos depois a filha mais velha, Tatiana, num opúsculo publicado em francês, em 1928 ("Sur Mon Père", Editions Allia), para salvar a reputação dos pais -na verdade, mais do pai do que da mãe: "Se hoje saio do silêncio, é porque apareceram certos livros [...] que pintam um quadro falso das relações entre meus pais e, de minha mãe, um retrato deformado pela parcialidade". Ainda assim, não vai se conter em sentenciar sobre a mãe: "Esse ser doente, profundamente infeliz e moralmente só, me causava a maior piedade. [...] A culpa da solidão era dela".
DEMÔNIO Informada pelo telegrama, Sofia parte às pressas, com os filhos, para Astapovo, onde uma pneumonia obrigou o marido a abortar a fuga -e onde ele agoniza, com febre de 40º C, na casa do chefe da estação de trem. Só vai conseguir vê-lo quando ele já estiver inconsciente. Como se escoltassem o demônio, os próprios filhos preferem mantê-la longe do pai, ao qual reservam tratamento de santo. "Retiveram-me à força, trancaram a porta, atormentaram meu coração", ela desabafa ao diário dias depois, já viúva.
As circunstâncias da fuga de Tolstói são conhecidas (em seu diário, ele exprime a revolta e a repugnância de pegar a mulher vasculhando entre seus papéis pessoais, na véspera, às escondidas -não é a primeira vez, é claro, nem o pior que ela já fez).
A julgar pelo testemunho da filha Tatiana, Sofia vai passar os nove anos que lhe restam depois da morte do marido preocupada em limpar o nome: "A calma veio para ela nesses últimos anos. [...] Era menos estrangeira às ideias de meu pai. Tornou-se vegetariana. [...] Mas conservou uma fraqueza: [...] temia por sua reputação. E assim não perdia a oportunidade de justificar suas palavras e seus atos". Não obstante, ainda terá forças para, pouco antes de morrer, durante a guerra civil que sucede à Revolução de 1917, encantar-se com os rapazes mais prestativos do Exército bolchevique acampados em suas terras.
RAZÃO Contra tudo o que já se disse, a voz convincente dos diários vem dar alguma razão a essa figura condenada pela história a não ter razão nenhuma, megera histérica e intratável, principal estorvo na vida do santo escritor e de seu projeto de despojamento dos valores burgueses e dos interesses materiais.
A publicação simultânea, na França, da autobiografia inédita, "Minha Vida" (Editions des Syrtes), e de uma nova tradução do único romance que Sofia Andrêievna escreveu, "De Quem é a Culpa?", relançado pela editora Albin Michel como "uma resposta a Liev Tolstói e a 'A Sonata a Kreutzer'" (novela na qual o escritor apresentava uma visão idiossincrática sobre as mulheres casadas e o sexo), faz pensar no sentido de oportunidade revisionista dessas edições como um efeito de certo modo tardio e desesperado dos estudos culturais e de gênero.
Como se, além de pôr em dúvida a canonização do autor por ocasião dos cem anos de sua morte, já não restasse nenhuma outra forma possível de resistência ou dissonância ao consenso natural que vai se formando em torno do realismo da obra de Tolstói como paradigma absoluto para uma literatura que precisa superar os questionamentos pós-modernos e se massificar para sobreviver.
MOÇA INEXPERIENTE Quando ele se apaixona por Sofia Behrs, filha de um médico do Kremlin cuja família vai lhe servir de modelo para os Rostov de "Guerra e Paz", tem 34 anos e ela é uma moça inexperiente de 18. Antes de se assentar na propriedade rural de 1.600 hectares e 300 servos, o jovem conde levou uma vida de prazeres em Moscou e São Petersburgo (à qual a mulher vai se referir como "as abominações do seu passado"), viajou pelo Cáucaso e participou como oficial do Exército russo na Guerra da Crimeia (1854-56).
Mesmo antes de escrever as obras-primas "Guerra e Paz" e "Anna Kariênina", já era um escritor respeitado. Quando se encontram, Sofia está acompanhando a mãe e os irmãos numa visita ao avô, vizinho de Tolstói. Dois meses depois, estarão casados. Duas semanas depois de casados, ele lhe dirá que já não confia no seu amor. E em dois meses, ela estará grávida.
A primeira gravidez é o batismo de fogo. Sofia passará por outras 15 até os 44 anos. E a provação só vai aumentar conforme também forem se agravando as contradições do ascetismo cristão prescrito pelo marido. Um ascetismo que, embora não lhe impeça o sexo fora do casamento (Tolstói teve um filho, Timofei, com uma camponesa, Aksínia, que vivia em suas terras) nem as crises de ciúmes, condena a contracepção e restringe o sexo matrimonial a fins reprodutivos, banindo-o durante a gravidez: "Ele não me deixa entrar em seu quarto [...]. Tudo o que é físico o enoja. [...] A verdade cruel é que a mulher só descobre se o marido realmente a ama quando está grávida".
CIÚME Sofia se martiriza lendo o diário do marido às escondidas. É um costume incontrolável, que ela manterá até o fim: "Procuro com avidez [...] alguma referência ao amor, e fico tão atormentada pelo ciúme que já não consigo ver nada claro". Vai acabar encontrando: "Não existe amor, apenas a necessidade física do sexo e a necessidade prática de uma companheira de vida", ela lê no diário do marido. E responde no seu: "Quem me dera tivesse lido isso há 29 anos, então nunca teria me casado com ele".
Os diários de Sofia revelam o escritor como a maior vítima dos próprios instintos: "Liovochka (diminutivo de Liev) me acordou esta manhã com beijos apaixonados [...]. Sucumbi à libertinagem mais imperdoável - na minha idade! [47 anos] Estou tão triste e envergonhada! [...] Que homem estranho é o meu marido! Na manhã seguinte a uma cena terrível entre nós dois, ele diz que me ama de paixão. Diz que está completamente sob o meu domínio e que nunca imaginou serem possíveis tais sentimentos. Mas é tudo físico".
Em outra ocasião, referindo-se à filha Aleksandra, ela comenta: "Se ao menos ela soubesse como o 'papai' dela ficava animado depois de desfrutar do amor que ele nega!".
Com 18 anos, Sofia ainda esperava que o nascimento do primeiro filho pudesse resgatá-la do martírio. Era só o início de um ciclo. Quando nasce Sergei, ela não consegue amamentá-lo, por causa de uma inflamação nas mamas. Tolstói se recusa a chamar uma ama de leite; acha que é dever da mãe amamentar a criança. Dois anos depois, tendo dado à luz a filha Tatiana, ela desabafa ao diário: "Agora estou bem de novo e não grávida -fico aterrorizada só de pensar na frequência em que estive nesse estado".
E, alguns anos mais tarde: "Pensar nesse novo bebê me enche de tristeza; meus horizontes se estreitaram tanto e meu mundo é um lugar tão pequeno e lúgubre". Dos 13 filhos do casal que sobreviverão ao parto, 11 serão amamentados pela mãe.
MANUSCRITOS Logo, entretanto, ela vai encontrar uma função além de procriar, amamentar, educar os filhos e administrar a propriedade: passa a datilografar os manuscritos do marido, obsessiva e incessantemente. É outra maneira de dar sentido ao casamento. "Liovochka estava mais carinhoso hoje. Chegou a me beijar pela primeira vez em dias. Estou copiando sem parar e fico feliz por ser de alguma utilidade."
Quando Tolstói termina "Guerra e Paz", ela relata: "Liovochka passou o inverno escrevendo, irritadiço e excitado, muitas vezes com lágrimas nos olhos". A depressão, o temor da morte e a crise espiritual vão ganhando a alma do escritor. Ele abre uma escola para os camponeses, começa a escrever "Anna Kariênina", o filho Nikolai morre de meningite com apenas 10 meses e Sofia perde uma filha no parto.
É inevitável ver na equação conflituosa e contraditória do ascetismo cristão defendido pelo autor da célebre abertura de "Anna Kariênina" ("Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira") um círculo vicioso e uma explicação possível para a sua inaptidão à vida familiar: o horror da iminência da perda, a ameaça de um sofrimento potencial que o maior número de filhos só faz renovar e que será confirmada pela morte prematura, em 1895, do temporão Ivan, adorado pelo casal, marcando com tintas trágicas os últimos 15 anos da vida do escritor. "A cada nova criança, sacrificamos um pouco mais de nossa vida e aceitamos um ônus ainda mais pesado de aflições e doenças", Sofia escreve no diário.
HUMILHAÇÃO PÚBLICA É difícil não pensar também nesse horror como o que está por trás da visão tão peculiar e paradoxal que ele vai acabar exprimindo sobre o casamento, a mulher e o sexo em "A Sonata a Kreutzer" -e que Sofia receberá como uma humilhação pública. O amor é insuportável, porque é a iminência da perda. É a própria perspectiva do amor individual (e de suas consequências) que o leva ao cúmulo de prescrever a abstinência sexual no casamento, contradição que só se resolve no ideal do amor universal.
O conflito se torna insustentável conforme Tolstói vai percebendo a incompatibilidade entre seus ideais e a realidade da vida familiar, que a mulher, cuidando dos filhos e da propriedade, passa a representar. Realidade que ele associa aos valores burgueses e, em última instância, à injustiça e à desigualdade social da Rússia czarista. O escritor passa a pregar o amor desinteressado pela humanidade, sem objeto definido, sem família. É o momento da "conversão".
Quanto mais a mulher assume as responsabilidades da casa (ocupando-se das doenças e da educação dos filhos, da administração da propriedade e dos direitos autorais das obras do marido), mais ele rejeita tudo o que é material. Aos poucos, também a literatura vai dando lugar aos panfletos e artigos de cunho religioso e social, a ponto de fazer o autor renegar os próprios romances como moralmente irresponsáveis.
Contra a truculência e a corrupção do Estado e da Igreja Ortodoxa, ele propõe um ascetismo incompatível com sua posição de proprietário de terras, tendo que sustentar mulher e uma prole que não para de crescer: "Hoje ele gritou [...] que o seu maior desejo é abandonar a família".
PAPEL INGRATO Num cabo de guerra progressivo e silencioso, o escritor vai lutar para impor à mulher seu desejo de abrir mão dos direitos de propriedade, inclusive intelectual, condenando-a ao papel ingrato de matriarca insanamente apegada aos bens materiais em nome do futuro dos filhos. Ao principal discípulo e interlocutor, Vladimir Tchertkov, ele descreve a relação com Sofia como "uma luta até a morte".
E ela se queixa ao diário: "Todos nesta casa -especialmente Liev Nikoláievitch, que as crianças seguem como um rebanho de ovelhas - me impingiram o papel de carrasco. [...] Pergunto-me por que já não acredito cegamente nele como escritor. [...] Liovochka tem agora apenas dois assuntos extremos de conversa: contra a hereditariedade e a favor do vegetarianismo".
Aos poucos, Iásnaia Poliana se transforma em centro de peregrinação dos discípulos do escritor que Sofia identifica a fanáticos e aos quais chama "obscuros": "Não há entre eles um único normal. E a maioria das mulheres é histérica" (ironicamente, será o principal deles, Tchertkov, que, levando a obra do mestre para o exílio inglês, vai salvá-la da sanha destruidora do obscurantismo czarista).
SONATA É nessa época que Tolstói ouve o filho Sergei ao piano, tocando a "Sonata a Kreutzer", de Beethoven, acompanhado pelo professor de música ao violino. Em 1890, a novela homônima é publicada, sendo em seguida censurada e oficialmente proscrita. Humilhada pela condenação veemente que o marido faz da vida matrimonial, Sofia reage, escrevendo o romance "De Quem é a Culpa?", publicado postumamente.
"A Sonata a Kreutzer" conta a história de um homem que assassina a mulher, por ciúme. O personagem desfere um ataque radical ao casamento: "O inferno terrível, em consequência do qual aparecem bebedeiras, assassínios, o envenenamento de si mesmo ou do cônjuge [...] Insisto: todos os maridos que vivem como eu vivia têm que se entregar à devassidão, divorciar-se ou matar a si mesmo ou a esposa, como eu fiz".
E sobre o sexo: "Observe o seguinte: os animais unem-se unicamente quando podem engendrar uma descendência, e o imundo rei da natureza, sempre que lhe apraz. E, como se fosse pouco, eleva essa ocupação simiesca a pérola da criação, a amor".
Ainda assim, é Sofia quem vai tomar a iniciativa de pedir uma audiência ao czar, em São Petersburgo, para pleitear a suspensão da censura à novela do marido. Quando o czar lhe pergunta se ela deixaria os filhos lerem um livro como aquele, ela responde: "A história tomou infelizmente uma forma demasiado radical, mas a ideia fundamental é que o ideal da castidade absoluta é inatingível". E lhe assegura que o marido está disposto a deixar de lado os textos religiosos e filosóficos e voltar à literatura. "Seria ótimo! É um grande escritor!", o czar responde. E a publicação de "A Sonata a Kreutzer" é liberada.
IMPASSE Os textos doutrinários de Tolstói fazem crer que o escritor abriu mão da literatura por um ideal moral superior e ascético de justiça para o mundo. O que se depreende dos diários de Sofia é, ao contrário, que a descrença do escritor na literatura era resultado do impasse ao qual fora condenado pela própria loucura. Nas últimas semanas antes da fuga, ele andava lendo "Os Irmãos Karamázov" e achando os diálogos ruins.
"Acredito em bons e maus espíritos. O homem que eu amo foi possuído por maus espíritos, mas não sabe disso. Sua influência é perniciosa: seu filho está sendo destruído, suas filhas estão sendo destruídas, assim como todos os que entram em contato com ele", ela desabafa num dos instantes de maior desalento. E, sem perceber, descreve o que está na base do desespero do escritor.
"Um cristão só pode contrair matrimônio sem cometer pecado no caso de saber que todas as crianças que existem têm a vida assegurada", Tolstói escreveu no comentário a "A Sonata a Kreutzer". Estava falando da miséria do mundo, é claro.
Mas não é preciso chegar ao extremo de reduzir sua imagem pública de santidade e ascetismo a mera vaidade e egoísmo, como faz Sofia Andrêievna em sua exasperação cega, para entender que, se ele chegou à verdade terrível e autopunitiva dessa frase, foi porque também amou e viu a morte dos próprios filhos, dentro de casa.

Contra tudo o que já se disse, a voz convincente dos diários vem dar alguma razão a essa figura condenada pela história a não ter razão nenhuma, megera histérica e intratável, principal estorvo na vida do santo escritor e de seu projeto de despojamento dos valores burgueses e dos interesses materiais

Com 18 anos, Sofia ainda esperava que o nascimento do primeiro filho pudesse resgatá-la do martírio. Quando nasce Sergei, ela não consegue amamentá-lo, por causa de uma inflamação nas mamas. Tolstói se recusa a chamar uma ama de leite; acha que é dever da mãe amamentar a criança

O conflito se torna insustentável conforme Tolstói vai percebendo a incompatibilidade entre seus ideais e a realidade da vida familiar, que a mulher passa a representar. Uma realidade que ele associa aos valores burgueses e, em última instância, à injustiça e à desigualdade social da Rússia czarista

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