São Paulo, domingo, 22 de maio de 2011

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CULTURA

Síndrome de Velázquez

A fecunda tradição nanoliterária

Gianni Dagil Orti/Museo del Prado Madrid
"El bufón Don Diego de Acedo, el Primo" (1640-42), pintura de Velázquez



RESUMO
Da pintura de Velázquez ao cinema e à literatura contemporânea, artistas de diferentes tempos e culturas deixaram-se fascinar pelo simbolismo dos anões, representando-os ora como personagens malignos, ora como seres dotados de pureza. Propõe-se um inventário dessa tradição, aqui batizada de "síndrome de Velázquez".


ALVARO COSTA E SILVA

EM "HOP-FROG e os Oito Orangotangos Acorrentados", publicado pela primeira vez em 1849, Edgar Allan Poe descreve o andar do bobo da corte. Anão e coxo, ele caminha saltando como uma rã, "algo entre um pulo e uma contorção". Nem mesmo a terrível desforra que Hop-Frog arquiteta contra o rei e os sete ministros é capaz de desfazer a simpatia pelo mais fraco e mais astuto dos diminutos personagens do conto.
"O relato de Poe é a vingança de todos aqueles que são vistos como figuras bizarras, excluídas, à margem da sociedade", define o ensaísta Luís André Nepomuceno, autor da novela "Os Anões" [7Letras, 118 págs., R$ 29], em que o narrador se vê preso numa casa tomada por seres liliputianos - estranhos, burocráticos, indiferentes à dor física e moral, mas não necessariamente malignos. "O mais comum é que sejam criminosos e traidores, fisicamente deformados, mentalmente débeis e identificados com bobos da corte. Os anões compõem um vasto acervo de personagens memoráveis que entram em cena para um determinado tipo de representação da condição humana, sobretudo ligada ao mal", completa Nepomuceno.

NANOLITERATURA
Ao lado da novela de Nepomuceno, lançada em 2009, outros livros lançados recentemente têm nos anões o centro da narrativa. Se não é uma tendência contemporânea, a "nanoliteratura" mostra uma fascinação dos escritores pelos anões que não vem de hoje -inclui até mesmo um Prêmio Nobel.
O truão Piccolino narra em primeira pessoa "O Anão", do sueco Pär Lagerkvist, que gozou de imensa popularidade à época do seu lançamento, em 1944 -o autor ganharia o Nobel sete anos depois. Hoje esquecido e fora de catálogo no Brasil -teve uma edição da Civilização Brasileira, em 1970-, o livro tem admiradores ferrenhos, como o escritor e colunista da Folha Carlos Heitor Cony, que nele votou numa enquete realizada pelo jornal, em 1999, para eleger os cem melhores romances do século 20. "É um livro fundamental, a que volto sempre, para entender o que se passa no mundo e até no meu dia a dia", diz Cony. "O personagem funciona como o outro que trazemos dentro de nós mesmos, e é por isso que, às vezes, me sinto como o anão de Lagerkvist, com sua dose de mau humor e permanente irritação. Aprontou tanto que o príncipe o desterrou, trancando-o numa enxovia cheia de cobras e morcegos. Ele nem deu bola. No fundo, sabia que nenhum príncipe pode passar muito tempo sem o seu anão."

VELÁZQUEZ
É curioso que nenhum acadêmico, salvo erro, tenha escrito uma tese -cujo título poderia ser "A Síndrome de Velázquez"- sobre a fixação de artistas no fenótipo do anão. O pintor espanhol foi pioneiro na fixação artística pelos "hombres de placer", como eram conhecidos os anões que trabalhavam como bobos nas cortes europeias, tendo-os representado em diversos de seus quadros, sem que tivessem sido encomendados. No mais famoso deles, "As Meninas", apenas dois personagens retratados olham diretamente para o observador: o próprio pintor e a anã Maribárbola.
A condição de "bobos" permitia aos anões algo vedado ao resto da corte: dizer ao rei, entre piadas e gracejos, a verdade. O crítico de arte Rodrigo Naves propõe uma explicação pela obstinação de Velázquez em retratá-los: "O que acho extremamente interessante é que o corpo 'humilhado' dos anões dá a possibilidade de reproduzir o corpo humano de maneira distante do corpo real."

FASCÍNIO
Professor de teoria da linguagem na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Tadeu Capistrano considera que anões, pigmeus e pessoas portadoras da síndrome de Marateaux- Lamy (mal hereditário que causa baixa estatura e traços faciais grosseiros) sempre exerceram fascínio no imaginário artístico e coletivo, desde os antigos carnavais da Idade Média, chegando ao circo e à literatura infantil do século 19.
"Pelo fato de serem pequenos, eram vistos em analogia com seres maravilhosos, gnomos, de onde descendem narrativas populares, entre elas a do Pequeno Polegar. Geralmente, nessas histórias, os anões são considerados amigos e de coração puro, ao contrário dos gigantes", explica. Segundo ele, o caráter anárquico e transgressor trouxe os anões de volta à cena contracultural dos anos 60 e a filmes sensacionalistas dos anos 70, sobretudo de horror e pornografia, ou nas mãos de diretores autorais como Werner Herzog e David Lynch. "Recentemente, Keenan Cahill, portador da síndrome de Maroteaux-Lamy, fez grande sucesso no YouTube, ao se exibir interpretando canções do universo pop", lembra Tadeu Capistrano.
SÍNDROME Padeceriam da hipotética "síndrome de Velázquez" o dramaturgo britânico Harold Pinter, que deu a seu único romance o título de "Os Anões", embora nele ninguém seja, de fato, anão de verdade. Ou William C. Gordon, marido da best-seller chilena Isabel Allende, que neste ano lançou no Brasil seu romance policial "O Anão" [Record, trad. Gabriel Zide Neto, 272 págs., R$ 39,90] .
O cubano Guillermo Cabrera Infante construiu um relato admirável, "Muerte de um Autómata", que descreve a agonia do anão Schlumberg, que manejava um famoso autômato de madeira, o Turco, inventado no século 18 pelo barão Wolfgang von Kempelen.
Mais conhecido como Jogador de Xadrez de Maelzel, o Turco desfilou por toda a Europa (bateu-se com Napoleão, que, deselegante, não aceitou o xeque-mate, espalhando as peças pelo tabuleiro) e meia América, encantando as plateias e enganando-as na mesma proporção.
Edgar Poe, o criador de Hop-Frog e da literatura de enigma, provou que tudo não passava de um truque: quem manejava o mecanismo do autômato era um anão. No conto de Cabrera Infante, o Turco agoniza em Havana, sedento por chocolate. O autômato ainda inspiraria o romance, do alemão Robert Löhr, "A Máquina de Xadrez" [Record, trad. André del Monte e Kristina Michahelles, 406 págs., R$ 52,90].

BRASIL
No Brasil, não faltam livros e filmes com a marca da "síndrome de Velázquez". O pequeno Tico é o encarregado de vigiar a mocinha Inocência na obra romântica de Visconde de Taunay, que foi filmada por Walter Lima Jr. Um dos primeiros livros do gaúcho Moacyr Scliar intitulou-se "O Anão no Televisor"; um dos últimos de Plínio Marcos, "O Assassinato do Anão do Caralho Grande". Personagens anões também proliferam em contos de Rubem Fonseca e Lygia Fagundes Telles.
Na adaptação cinematográfica que Walter Salles fez do romance "A Grande Arte", de Fonseca, quem encarna o pequeno Nariz de Ferro é José René Ruiz "Tun Tun", esplêndido ator mexicano -só comparável, entre nós, a Dilim Costa, parceiro de Adele "Sardinhas 88" Fátima na pornochanchada "Histórias que Nossas Babás Não Contavam" (1979).
Mais recentemente, em "Os Anões" [Cosac Naify, 60 págs., R$ 37], conto que dá título ao livro de Veronica Stigger publicado em 2010, o misto de compaixão e repulsa que marca a representação artística dos anões é encapsulado num flagrante de violência. Trata-se de um casal; ele com a altura de um pigmeu, ela batendo na cintura dele; "não eram deformados, nem tinham aquele aspecto doentio característico de alguns anões".
História familiar com toques de realismo mágico, passada na zona rural de Minas, a estreia de Andrea del Fuego no romance -"Os Malaquias", de 2010 [Língua Geral, 276 págs., R$ 39]- traz um anão inspirado em um tio-avô da autora: "Mantive até seu nome verdadeiro, Antônio".
Ao esboçar o protagonista do romance "Grande Circo Humano", Marçal Aquino quis fugir ao estereótipo. Ele seria rico, inteligente, charmoso, mulherengo e protagonista. "Um anão vencedor, se é que isso é permitido", questiona o escritor.
Por outros motivos, o livro desandou: "Depois, pensei em transformar a história num filme. Conversei com produtores americanos e chegamos a procurar atores com o, perdão da palavra, 'physique du rôle'. Mas nada foi adiante. Impossibilitado de escrever o romance, falei dele em excesso e acabei com ele", explica Marçal que, das muitas leituras sobre o tema, deixa uma dica: "Um livro muito mal escrito, mas com um personagem encantador, é 'O Anão de Mendel', do geneticista Simon Mawer".

HERZOG
O cinema europeu registra alguns casos clássicos de "síndrome de Velázquez". Em 1970, Werner Herzog filmou, em pouco mais de um mês, em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, o longa "Até os Anões Começaram Pequenos", que mostra uma rebelião de anões num asilo. A demência e o vandalismo tomam conta do lugar: anões cegos brandem bastões; um macaco é crucificado vivo; flores são regadas com gasolina e incendiadas; um anão com feições hitlerianas tortura outro; quebram-se ovos e máquinas de escrever.
Por fim, a cena inesquecível: um dromedário se ajoelha e defeca sob os olhares e risos sádicos. "É a essência do cinema de Herzog: personagens de exceção, aquém da normalidade, vivendo em grupo e em conflito num universo à parte", afirma o cineasta Carlos Reichenbach.
Inácio Araújo, crítico de cinema da Folha, destaca uma produção recente: "A comédia 'Morte no Funeral', em que a surpresa do aparecimento do anão desnuda hipocrisias. Gosto de uma cena de 'O Incrível Homem que Encolheu', de Jack Arnold, na qual o personagem, em meio ao processo de mutação, encontra uma anã. É tão bonita que até me inspirou um conto", revela Araújo.
Em suas memórias, o cineasta espanhol Luis Buñuel faz um elogio ao caráter, ao profissionalismo e à lealdade dos anões que conheceu e com quem trabalhou. "Por nada no mundo aqueles que conheci gostariam de se transformar em homens de estatura normal", escreve ele em "Meu Último Suspiro".
"Têm também uma grande potência sexual. O que atuou em 'Nazarín' tinha duas amantes de estatura normal na Cidade do México, a quem visitava alternadamente. Algumas mulheres gostam dos anões. Talvez porque tenham a impressão de ter, ao mesmo tempo, um amante e um filho."


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