São Paulo, domingo, 22 de maio de 2011

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IMAGINAÇÃO

A casa amarela

Cena 6

GERO CAMILO


Van Gogh está deitado na cama. Acorda assustado com a presença de Gauguin, que lhe impõe um sabre. Os dois passam a circular pelo quarto em posição de ataque. Olhos fundos. Atentos ao menor movimento.
Os dois se abraçam e aí ficam. Os dois se confundem e se fundem num único corpo.

Gauguin - A porta estava aberta.
Van Gogh - Para você estará sempre. Bem-vindo! Te esperei tanto que me assustei com a tua chegada. Adormeci.
Gauguin - Arles não me parece assim tão animada! (apontando para a garrafa de absinto quase vazia no chão da cama) Pelo menos à primeira vista.
Van Gogh - Arles não será mais a mesma, meu querido Gauguin.
Gauguin - Um senhor no café me deu as boas-vindas. Não imaginei que fosse tão esperado.
Van Gogh - Viu só, já é famoso aqui. Me deixe te mostrar a casa. Esse, claro, é o meu quarto. Começou pela bagunça. O seu está bem mais arrumado. Se não gostar dos móveis, depois podemos trocá-los. Lá embaixo, está a sala que é nosso estúdio, e a cozinha, que também será ateliê. Bom, se faltar parede de dentro, ainda temos as de fora. Meu Deus, não te mostrei. Você os viu antes que eu te apresentasse?
Gauguin - Quem?
Van Gogh - Os quadros!
Gauguin - Ah! Os da sala?
Van Gogh - Gauguin, você viu a luz deste lugar? É impressionante! Eu não sei o que aqueles loucos estão fazendo em Paris. Isso aqui não é a Europa, é a Eureca! Você vai ver, você vai ver e pintar. Estamos no vértice da cor. Vem, vamos, vamos dar uma volta. Tudo bem que Paris é o vasto mar, mas já estamos afogados demais. Precisamos de terra. Meu Deus, me desculpe. Não paro de falar. É que... bom, você chegou, meu caro. Até que enfim você chegou. Você deve estar cansado, né? Bom, é melhor descansar. Fazemos o passeio depois. Café?
Gauguin - Já tomei. Prefiro realmente descansar.
Van Gogh - Como vai de saúde, amigo?
Gauguin - Vai-se indo.
Van Gogh - Tempo ao tempo. Agora vamos poder assentar e cuidar um pouco mais da gente. Ou pelo menos tentar.
Também não tem muito onde gastar aqui, e nem temos o que gastar. Aqui temos a ganhar. E vamos ganhar, meu amigo. Guarde esse florete e essa espada para os talos de girassóis que vamos pintar. A natureza está viva. Desembainhe o pincel, teu cavalete é teu escudo, homem. Começou a guerra santa. E o que quer que digam, será tarde demais: já teremos ultrapassado a velocidade da cor.
Ainda bem que temos Theo van Gogh em nossas vidas! Meu irmão é tão artista quanto nós. Às vezes, tenho a nítida impressão de que ele já sabe dos nossos quadros. De que ele nos encomenda em sonhos. E fico eu a tentar inutilmente descrevê-los daqui por cartas, enquanto ele com calma serena me diz: "Meu amado irmão, me mande os quadros".
E quando aqueles olhinhos brilham, a melancolia que havia neles escorre em tintas pelo rosto. E afora toda essa poesia, ele tem mesmo é bom olho. Tem tino pro negócio, vai saber vender muito bem nossos quadros. E mais que tudo, botá-los em evidência. Estender o varal e pendurar as nossas jutas. Por juta causa! Um quadro tem fim ou é arrancado da gente?
Vamos reunir aqui nossos companheiros. Meu Deus, tem tantos que devem passar por aqui!
Lautrec, Bernard... nosso mascotinho. Se trabalharmos com afinco, logo, logo, Arles será conhecida como a nova fortaleza, donde podem comer e beber esses loucos que se aventuram a desregrar os cômodos da casa. Da Casa Amarela. (ri de felicidade) Enquanto descansa, vou escrever ao Theo. Ele ficará feliz de saber que chegou bem. Fique à vontade.
Com isso, eu quero lhe dizer, amigo, que você é muito bem-vindo nessa casa. Que ela agora é tão sua quanto minha. E que desejo no mais profundo da minha existência que sejamos felizes nela e que possamos realizar tudo o que pretendemos. Temos muito trabalho pela frente. Desejei tanto esse momento de sua chegada... Até queria recebê-lo acordado, mas trabalhei tanto para deixar tudo em ordem que desmaiei no cansaço. Mi casa, su casa.

Van Gogh sai. Gauguin olha para a bagunça no quarto. Vai até a cama e se deita. Pega a garrafa de absinto e seca num único gole. Adormece.

Há momentos tão íntimos entre alguns seres que nada pode descrever. Fica nesse silêncio o grande mistério. Donde coexistem vida e arte de que até Deus se permite ser traço, rabisco, estudo mal- acabado.

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