São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2010

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DIÁRIO DE PEQUIM

O MAPA DA CULTURA

Uma nova China?

Arte, liberdade e censura

FABIANO MAISONNAVE

A pergunta tem um ar subversivo: "Vocês querem ir ao estúdio?". Convite aceito, sigo os irmãos Gao pelas escadas de um prédio de aspecto abandonado até chegar a uma ampla sala repleta de estátuas de Mao Tse-tung, todas com seios de fora e nariz digno de Pinóquio.
Na escultura mais forte da série "Miss Mao", o rosto do líder comunista estampa uma voluptuosa mulher dourada, deitada e de pernas abertas, em tamanho natural. Em sua vagina, desponta um dragão vermelho.
Ver a ridicularização do símbolo máximo de um regime responsável pelo massacre na praça da Paz Celestial, em 1989, cheira a clandestinidade, mas não é bem assim. Afinal, estamos no distrito 798, uma antiga fábrica que, com o aval oficial, se transformou, na última década, no centro da arte contemporânea chinesa.
Inicialmente um polo de artistas em busca de espaço para trabalhar, o 798 foi encampado pelo governo e hoje se tornou um popular destino turístico de Pequim, com vários espaços de arte, restaurantes e lojas. Segundo a administração do local, são 10 mil trabalhadores para atender 1 milhão de visitantes por ano, entre turistas e compradores estrangeiros, estudantes de arte e famílias chinesas tanto da capital quanto do interior do país.
Além do estúdio, restrito a convidados, os dois irmãos Gao mantêm uma galeria na rua principal do 798. Ali, a única "Miss Mao" tem 30 cm de altura e está coberta por uma camiseta branca. "Custa € 13.500 [R$ 30.500]", diz um deles, revelando pela moeda de onde vêm seus clientes. O mais polêmico ali é uma estátua do líder comunista segurando um rifle.
A poucos metros, do outro lado da rua, uma livraria de arquitetura modernosa vende a imagem de Mao em canecas, camisetas e pôsteres. Um exemplar do "Livro Vermelho" editado na época da Revolução Cultural custa R$ 30. A dona da livraia é Kong Dongmei, neta do "grande timoneiro".
"O 798 tem duas 'Miss Maos", brinca Gao Qiang, cujo pai, um operário, foi preso durante a Revolução Cultural Chinesa para reaparecer morto 25 dias depois -o governo alegou suicídio. Nenhum dos dois irmãos jamais conversou com a vizinha.
A aparente diversidade do 798 é celebrada por Taylor Lin, presidente da Associação de Arte e Investimento da Universidade de Pequim. "Os artistas têm diferentes opiniões sobre figuras como Mao, e no passado isso não era possível. É uma prova de que as coisas estão mudando", diz Lin, durante conversa num dos vários cafés do distrito.
Para ele, a "harmonia da contradição" do 798 tem uma função pedagógica. "As pessoas do interior vêm aqui, sentem esse ambiente especial e voltam às suas vilas. Isso traz mudança."
Os irmãos Gao discordam. "O governo quer criar uma ideia de que a China está mais aberta não só economicamente como também culturalmente, mas não é assim", diz Gao Zhen, 54.
Os irmãos, que sempre assinam juntos seus trabalhos, já tiveram vários problemas com a censura, como o fechamento de uma exposição por policiais e a apreensão de uma obra. Eles afirmam que um espaço a céu aberto foi fechado e que vários artistas não tiveram licença para abrir estúdios no 798 porque desagradam ao governo.
Esse jogo de xadrez com a censura, às vezes, leva ao paroxismo. Em outubro do ano passado, o "New York Times", tido como o jornal mais influente do mundo, publicou uma longa reportagem sobre os irmãos Gao.
O material incluía um vídeo que exibia a abertura de uma exposição. Enquanto as pessoas sorriam e conversavam com copos na mão, o narrador dizia, sem ironia: "Esta é uma inauguração de arte proibida na China".
Há oito anos atuando no 798, a curadora francesa Bérénice Angremy afirma que os irmãos Gao são um caso à parte. "Os artistas estão mais interessados em tópicos não controversos e em fazer dinheiro." Angremy critica o "ambiente de Disneylândia" tomado por galerias que só "jogam seguro". Os melhores artistas, diz, já deixaram o lugar. Como exemplo, ela mostra um catálogo com vários artistas do 798. "O que é subversivo aqui?", pergunta a curadora, enquanto folheia. "Nada."
Assim como os irmãos Gao, a francesa tampouco vê mais abertura na China. "As regras da censura são as mesmas e não mudarão. Mas, algumas vezes, o governo pode fazer vista grossa."

DEMOLIÇÃO À VISTA
Em 2000, o principal artista contemporâneo chinês, Ai Weiwei, desenhou e construiu a sua casa e montou a sua galeria em Caochangdi, à época um bairro quase nos limites de Pequim.
De louco ermitão, Ai virou pioneiro: descontentes com os aluguéis altos e com o burburinho do 798, muitas galerias começaram a se instalar na silenciosa vizinhança do artista. Hoje, são cerca de 30 espaços de arte ali, numa espécie de dissidência do distrito mais famoso da capital chinesa.
Agora, Ai Weiwei deve se mudar de novo, mas contra a sua vontade: em abril, o governo local notificou formalmente a todos os espaços de arte de que seus estabelecimentos serão demolidos. Até a semana passada, a data para o fim da região ainda não havia sido informada.

TERREMOTO NAS BILHETERIAS CHINESAS
Em três semanas de cartaz, o filme "Aftershock", de Feng Xiaogang, se tornou o maior sucesso de bilheteria da história da China, arrecadando US$ 79,4 milhões (R$ 139 milhões). Só na estreia, mais de 36,2 milhões de pessoas lotaram as salas de cinema para ver a história do terremoto que arrasou a cidade de Tangshan, matando 240 mil pessoas em 1976.
A superprodução incluiu uma impressionante (e desnecessária para o enredo) reprodução do funeral de Mao, morto no mesmo ano. Mais distante de uma escultura dos irmãos Gao, impossível.


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