São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2010

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IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Lições de anatomia

LUIZ SCHWARCZ

Passei boa parte do jantar tentando me lembrar de onde conhecia aquele rosto. Sempre que atravessava a galeria, eu olhava o cardápio colado na vitrine do restaurante, mas nunca entrava. Fazia tempo que queria experimentar aquela comida diferente, e agora, sozinho mas distraído, mal distinguia seu sabor, apesar da minha determinação de finalmente comer de tudo, barbatana de tubarão, umbigo de porco, quanto mais exótico e selvagem melhor.
Numa outra ocasião até tentei. Convidei uma conhecida para jantar, depois de tanto tempo sem botar os pés fora de casa. Ao sentarmos, embalado, fui logo pedindo os pratos mais bizarros, porém, ao notar as expressões de nojo da minha acompanhante, voltei atrás. Chamei o garçom, mas ele se fingiu de morto, ou quem sabe estava compenetrado, pensando na família, na mulher infiel, no filho que gazeteava na escola. Fui atrás do sujeito até a cozinha e cancelei o pedido, mudei para frango xadrez, carne desfiada com broto de bambu e duas porções de arroz branco, de preferência servidos numa travessa avantajada, onde eu pudesse enfiar a cara. Estava tudo errado, a companhia, o lugar, os pratos. Que ideia, sair com a filha da melhor amiga da minha mãe. Uma moça tão tímida quanto eu, e magra, magérrima. Talvez até fosse anoréxica e estivesse ali só para agradar à mãe. E o restaurante típico chinês, numa cidade quase sem chineses, escondido numa galeria do centro de São Paulo. Parecia sonho ou alucinação. Os patos pendurados na vitrine, como numa Chinatown da Costa Oeste americana. Patos mirrados como aqueles eu nunca tinha visto, nem laqueados deviam ser, a pele era mole, pintada com colorau, com algumas manchas avermelhadas, o resto sem cor. O local era sujo, os lustres coloridos de papelão projetavam uma luz que deveria ser forte mas era desbotada, e as toalhas de papel engorduradas denunciavam o paladar do cliente anterior.
Agora, sozinho, eu ouvia a conversa da mesa ao lado. Um dos homens falava em inglês, sem parar, com um sotaque carregado do Texas que estranhamente o tornava mais familiar. Usava terno claro, echarpe com um nó lateral, botas de bico estreito e salto elevado. No bico que mexia incessantemente, como se apagasse um cigarro atrás do outro, havia pequenas lantejoulas brilhantes representando um laço de vaqueiro solto no ar.
A conversa era sobre mulheres, com longas descrições de proezas sexuais do tal estrangeiro. O interlocutor, brasileiro, trajava moletom e camiseta bem justos, tinha jeito de personal trainer, saído direto da academia para o restaurante. Ele se esforçava para entender o que o americano dizia num tom professoral, apesar da pequena diferença de idade entre os dois. Mal piscava. No fundo, talvez esperasse o mesmo de seus alunos quando demonstrava a posição correta nos aparelhos de musculação.
Não senti o gosto das barbatanas de tubarão, na verdade nem sei se as identifiquei no meio do molho gosmento e da profusão de cebolinha e broto de bambu. O umbigo de porco, de textura pronunciada, quase não tinha sabor, como os torresmos mal tostados que ficam expostos por dias nos bares. Não me importei. Desde que meus vizinhos de mesa haviam chegado, eu queria era me lembrar de onde conhecia aquele rosto. Enquanto ouvia o que podia da conversa -as receitas para tratar e agradar na cama uma mulher mais velha, a diferença de apetite sexual entre loiras e morenas-, eu me esforçava tentando juntar o sujeito a um nome ou referência qualquer.
Dando a batalha por perdida, decidido a voltar minha atenção para o que comia, finalmente lembrei. O americano era idêntico ao vaqueiro texano de "Midnight Cowboy", no modo de falar, nos trajes, até na forma de reclamar dos novos tempos. O chapéu, pousado no canto da mesa, próximo ao prato de macarrão com carnes e verduras mistas, era igual ao que Jon Voight usava no filme. A conversa adequava-se ao personagem, como se a película estivesse sendo refilmada naquele estranho restaurante chinês do centro de São Paulo. Por outro lado, quem contracenava com o caubói-michê não se parecia em nada com o personagem representado por Dustin Hoffman, tratava-se de um legítimo personal trainer paulista. A semelhança entre o caubói do filme e aquele da vida real era tão notável, que fiz as contas para ver se seria possível que o próprio Jon Voight estivesse ali sentado a meu lado. Impossível. Só podia então ser seu filho, que, por obra do destino ou do acaso, comia no tal restaurante.
Pelo que dizia, imaginei que seu objetivo era exportar seu know-how e buscar novos mercados. Queixava-se daquele campo de trabalho, excessivamente competitivo, do advento do sexo virtual, e da proliferação das sex shops e academias. A parte mais interessante da conversa foi quando ele discorreu sobre a influência das curvas anatômicas na psicologia feminina. Reparei que, assim como eu, o personal trainer não entendeu muito bem a teoria do texano. No final da falação, eu não sabia mais se eram as curvas que influenciavam o temperamento das mulheres ou se, ao contrário, a personalidade é que condicionava a anatomia.
O que o tornava ainda mais parecido com o pai era a melancolia, pouco condizente com o sotaque ou com seu tom de voz elevado. Apesar das receitas que transmitia ao pupilo, suas histórias eram todas enunciadas no passado, como se tivessem sido vividas pelo pai. Nada podia soar mais deslocado no tempo e no espaço do que aquele jovem vaqueiro em São Paulo, o filho do midnight cowboy.
Desisti logo dos meus pratos. Nunca fui ligado em comida ou em exotismos. Também abri mão de entender o que havia me atraído àquele local. Saí do restaurante logo após a dupla de galãs. Fui na mesma direção que eles, sem a pretensão de segui-los. Ainda ouvi à distância algumas das lições eróticas do texano pelas ruas vazias do centro da cidade. Passadas poucas esquinas, a calçada refletia luzes de neon coloridas, antecipando os inferninhos da rua transversal. Ali perdi de vista os dois profissionais do amor. Mas acredito que tenham cruzado com um travesti e depois com uma menina, muito jovem, que, como num sonho ou numa alucinação, me ofereceu, em inglês, um boquete, hey man, do you want a blow job? Sem resposta, ela insistiu, hey gringo, a blow job, blow job? Provavelmente a garota falou comigo como falara com o filho do midnight cowboy, se insinuando, sem disfarçar a boca banguela. Imagino que, contrariado, ele a ignorou. Ou não. Quem sabe por gentileza agradeceu, levantou e abaixou com a ponta dos dedos o chapéu de abas largas, e, pisando bem firme sobre os calcanhares elevados, pensou, quanta humilhação.


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