São Paulo, domingo, 24 de julho de 2011

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LÓGICA

Contrabandista de critérios

O que Adhemar de Barros diria a Tweedledee

RESUMO
Qual é o argumento oculto por trás do dito adhemarista "rouba, mas faz"? Ou da declaração de Lula de que o PT fez o que todos fazem? As críticas a esses ditos estão geralmente baseadas num "contrabando", para o campo da política, de critérios que um juiz emprega num tribunal, ou todos nós na vida cotidiana.

JOÃO VERGÍLIO G. CUTER

O QUE É a lógica? "Se foi assim, podia ser; e, se fosse assim, seria; mas, como não é, não é. Isso é lógica", ensina Tweedledee em "Alice Através do Espelho" (1871), de Lewis Carroll. Em grande medida, isto é verdade. A lógica não tem outra pretensão que não seja a explicitação do óbvio. Abrange absolutamente tudo -o que é, o que foi e o que poderia ter sido- ao preço de não dizer absolutamente nada sobre coisa alguma.
Minha única restrição à definição de Tweedledee é que ela pode dar a impressão de que a lógica seja tão inútil quanto desinteressante. Talvez não seja nem mais nem menos interessante do que qualquer outro jogo, para quem o joga. Vez que outra, porém, sua intercessão é crucial.
Obviedades têm às vezes o poder de quebrar a pose da falsa sabedoria. Wittgenstein -um lógico, do começo ao fim de sua vida- era especialista na aplicação desse tipo de corretivo no filósofo de corte mais tradicional.
"Será que o vermelho que eu vejo é o mesmo que você vê?", pergunta o filósofo circunspecto. "Com certeza, caso você não seja daltônico." "Mas como saber se é exatamente o mesmo?", insiste o filósofo, indignado. "Aplicando os critérios de identidade cabíveis neste caso, ora essa."

DESCONCERTANTE A menção do critério tem esse efeito desconcertante quando ele foi esquecido ou se confundiu com algum outro critério de sua vizinhança. Pois esse é todo o problema: critérios são às vezes semelhantes entre si ou se aplicam a casos muito próximos. Embaralham-se.
Considerem, por exemplo, o velho bordão adhemarista - "rouba, mas faz". Somente aqui, nessas três palavrinhas singelas, misturam-se pelo menos três tipos de juízo, três esferas de avaliação, cada qual com critérios muito próprios.
Há critérios jurídicos para determinar se alguém é ladrão, há juízos éticos que fazemos sobre quem rouba, e há finalmente os juízos políticos que o eleitor vai fazer enquanto delibera em quem deve votar.
Os critérios jurídicos são os menos disputados, pois estão explicitados na lei. No interior desses critérios, as provas têm um papel decisivo. Não se trata aqui de meras evidências. Uma evidência tem que passar por diversos testes antes de ser aceita como prova, no sentido jurídico do termo.
Uma evidência de roubo obtida sob tortura não é prova, por exemplo. Evidências cabais no dia a dia são muitas vezes imprestáveis num tribunal. E o contrário é também verdadeiro.
Só loucos esperam por provas no sentido jurídico do termo para tomar decisões no seu cotidiano. O empresário nem sempre vai esperar por provas irrefutáveis de que seu contador anda roubando o seu dinheiro antes de despedi-lo. Uma pessoa não avalia o caráter de outra mediante o uso de critérios jurídicos.
Evidências muito mais tênues nos bastam. Não precisamos tomar conosco as precauções que a sociedade toma com seus julgadores profissionais.

ELEITOR O eleitor não está muito distante, enquanto julgador, do empresário que avalia o comportamento de um empregado ou da pessoa que avalia o caráter de alguém que acaba de conhecer. Está pelo menos bem mais próximo dessas situações do que daquela outra que mencionamos, do juiz num tribunal.
Um eleitor não pede provas. Se for o caso, sopesa evidências dos mais diversos tipos, num espectro que vai da prova cabal à vaga desconfiança. Somente loucos consultariam o Código de Processo Penal para justificar seu voto.
Por outro lado, a situação do eleitor tem uma peculiaridade marcante: a escassez de opções. Isso determina uma cisão entre o juízo do eleitor e aqueles juízos que fazemos a respeito da honestidade dos contadores ou do caráter das pessoas.
Vou propor aqui um símile que nos ajudará a pensar. Imagine que você viva num regime totalitário. Suas menores escolhas de vida são monitoradas por uma instituição estatal. Se quiser um contador para a sua empresa, essa instituição vai apresentar dois candidatos escolhidos pelo Estado, para que você eleja um deles para um mandato fixo, de quatro anos.
O mesmo vale para um amigo. O Estado lhe apresenta dois candidatos, e você elege um, com a possibilidade de reconduzi-lo ao cargo após quatro anos de convívio forçado.
Ponha-se na pele de um empresário desse país imaginário e suponha que um dos candidatos a contador foi pego com a boca na botija em seu antigo emprego. Sofreu um processo, mas conseguiu ser absolvido graças a uma série de chicanas jurídicas. Contra o outro, nada consta na Justiça.
No entanto, você tem evidências mais ou menos seguras de que ele não é mais honesto que o primeiro e, o que é mais importante, você o considera bem menos eficiente. Em quem é que você vota?
Adhemar de Barros (1901-69) não tinha dúvidas em dizer aos eleitores: "Votem em mim". Foi prefeito de São Paulo (1957-61) e duas vezes governador do Estado (1947-51 e 1963-66).

MORALISTA A figura histórica de Adhemar de Barros pouco me interessa. Meu alvo, aqui, é o moralista. Quem é ele? Antes de mais nada, um argumentador falacioso. Um contrabandista de critérios. O moralista toma critérios que são perfeitamente aceitáveis e válidos no plano das discussões éticas e jurídicas e os transporta clandestinamente para a região da política.
Articula um estilo de argumentação que é perfeitamente cabível em determinadas situações cotidianas, ou mesmo num tribunal, mas que, no plano político, é, na melhor das hipóteses, insuficiente. É essa unilateralidade que o bordão adhemarista explorava.
"Rouba, mas faz" é, na verdade, um argumento comprimido. "Certamente é indesejável que um político roube, mas, dado que os outros políticos com chances reais de vitória também roubam, melhor votar neste, que pelo menos faz alguma coisa."
Pode-se contra-argumentar de muitas formas, é claro. Mas, se alguém disser que não existe aqui um argumento perfeitamente bom e com excelentes chances de vitória, eu diria que essa pessoa está obcecada por um conjunto de critérios, esquecendo-se da existência de todos os outros.
O eleitor que pensa assim pode estar enganado quanto aos fatos. Adhemar de Barros talvez não fosse tudo isso que julgava ser.
É possível que houvesse um político honesto, eficiente e eleitoralmente viável no cardápio. Mas, se coisas desse tipo não ficarem estabelecidas, não tenham ilusões: o "rouba, mas faz" pode se transformar num excelente argumento a ser cuidadosamente considerado.

LULA Quando Lula declarou em Paris que o PT "faz o que todos fazem", estava apresentando um argumento político análogo.
Dito por extenso, ele soaria mais ou menos da seguinte forma: "Dadas as regras vigentes, ninguém consegue levar adiante um projeto político nacional caso não consiga levantar dezenas de milhões de dólares junto à iniciativa privada. Para isso, é preciso fazer um caixa dois e estabelecer acordos de diversos tipos com o empresariado. Uma vez no poder, ninguém consegue construir maiorias no Congresso caso não ceda em alguma medida ao jogo do fisiologismo. O PSDB fez isso. O PT está fazendo isso também".
Alguém pode achar absurda a situação pressuposta pelas premissas desse argumento. Eu também acho. Mas, logicamente, ele é irretocável. Isso quer dizer apenas o seguinte: ele exige uma resposta. Foi isso que Lula disse, e foi isso que seu eleitor entendeu com a clareza de quem entende um piscar de olhos numa situação difícil.
O que fez o moralista de ocasião? Em vez de enfrentar o argumento implícito na piscadela, refugiou-se nos argumentos jurídicos, ou então passou a clamar pela "ética na política". O eleitor, atento aos meandros da lógica informal, permaneceu impassível.
"Mas, veja, meu senhor... Isso é um crime!", dizia o moralista. O eleitor dava de ombros -"Não sou juiz". "Mas pelo amor de Deus! O senhor não percebe que isso é antiético?" "Isso o quê, exatamente? Isso que o PT está fazendo, ou isso que nós sabemos que todos têm que fazer para chegar ao poder e governar?"
O argumento de Lula, que tantos condenaram, ficou pairando soberano na cabeça do eleitor. Não é à toa. As premissas podem ser falsas -é algo a ser mostrado, e não pressuposto. Do ponto de vista lógico, Tweedledee não teria objeções a fazer. Está perfeito.

"Um eleitor não pede provas. Se for o caso, sopesa evidências dos mais diversos tipos, num espectro que vai da prova cabal à vaga desconfiança"

"Alguém pode achar absurda a situação pressuposta pelas premissas do argumento de Lula. Eu também acho. Mas, logicamente, é irretocável"

"A figura histórica de Adhemar pouco me interessa. Meu alvo, aqui, é o moralista. Quem é ele? Antes de mais nada, um argumentador falacioso"


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