São Paulo, domingo, 25 de julho de 2010

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CRÍTICA

Brasileirismos confessados
Drummond, vanguarda e nacionalismo

RESUMO
Dois lançamentos -a edição fac-similar do primeiro livro de Drummond e um estudo crítico de Arnoni Prado sobre as vanguardas- jogam luz sobre o cenário estético e ideológico do Brasil dos anos 20 e 30, em particular a busca artística da identidade nacional, a forte influência francesa e o nacionalismo nas artes.

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

"TAMBÉM JÁ FUI BRASILEIRO" é um célebre poema de Carlos Drummond de Andrade [1902-87], embora não o mais célebre de seu livro de estreia, "Alguma Poesia". Lançado em 1930, o volume reunia títulos que se tornariam "clássicos" drummondianos e de nossa poesia moderna, como "Poema de Sete Faces", "No Meio do Caminho", "Cota Zero", "Anedota Búlgara" e "Cidadezinha Qualquer".
Projeta-se já na obra inaugural do autor mineiro sua peculiar subjetividade lírica, associada ao temperamento ensimesmado, "irônico e melancólico", como observa Eucanaã Ferraz no ensaio introdutório à recém-lançada edição comemorativa ["Alguma Poesia - O Livro em seu Tempo", org. Eucanãa Ferraz, Instituto Moreira Salles, 392 págs., R$ 50].
O volume traz em fac-símile o precioso exemplar de "Alguma Poesia" que pertenceu ao poeta, com anotações de próprio punho, além de comentários de personagens do círculo literário e resenhas publicadas pela imprensa da época.
Por intermédio da correspondência entre Drummond e o amigo Mário de Andrade, Ferraz conduz o leitor pelo longo e acidentado percurso da formação do livro, cujos poemas começaram a ser escritos a partir de 1923. Em 1930, alguns deles já haviam sido publicados em revistas ou jornais, como o famoso "No Meio do Caminho", que veio à luz em 1928, na "Revista de Antropofagia", dirigida por Oswald de Andrade.
Como notou Manuel Bandeira, em comentário no "Diário Nacional", mais tarde incluído nas "Crônicas da Província do Brasil", o alongado tempo de gestação propiciou a Drummond uma vantagem em relação a seus companheiros de geração. No calor da hora, em maio de 1930, Bandeira assinala que o itabirano apareceu "perfeitamente assentado e amadurecido", sem "as incertezas e as facilidades que degeneraram em cacoetes" -como ocorreu com as primeiras incursões poéticas dos desbravadores modernistas.
O amadurecimento a que se referiu Bandeira deve muito à sistemática troca de ideias com Mário, a quem Drummond dedica o livro. Conheceram-se em 1924, quando passou por Belo Horizonte a famosa excursão paulista às cidades históricas de Minas, com as ilustres presenças da mecenas Olívia Guedes Penteado e do poeta franco-suíço Blaise Cendrars.
Nove anos mais velho, Mário tornou-se conselheiro e amigo inseparável de Drummond, que na primeira carta lhe escrevia: "Procure-me nas suas memórias de Belo Horizonte: um rapaz magro, que esteve consigo no Grande Hotel, e que muito o estima". Já nesse contato inicial surgia o tema, complexo e cheio de sugestões, do ser brasileiro, que, ao poeta de Minas, parecia de "uma originalidade delirante".
Com ironia que se dobra sobre si mesma, "Também Já Fui Brasileiro" contracena com o pano de fundo do nacionalismo, indissociável da animação modernista e do panorama ideológico daqueles anos. O poema, que foi suprimido numa edição de 1942 e reabilitado em 1948, quando "Alguma Poesia" ganhou contornos definitivos, parece refletir a fadiga do autor com a torção que a busca obsessiva da identidade nacional impunha ao escritor brasileiro da época.
"Também eu já estou aporrinhado com brasileirismos confessados", escreveu em 1928, quando já não lhe agradava o título que anteriormente pensara para o livro -"Minha Terra Tem Palmeiras".
Até Mário, que nas primeiras trocas de ideias manifestara simpatia com a sugestão, já considerava àquela altura que poemas "brasileiros" estavam em moda "até demais".
É conhecida, na troca de cartas entre os dois (tão bem comentada pelo crítico e escritor Silviano Santiago), o momento em que Drummond envia a Mário um artigo escrito a título de homenagem póstuma a Anatole France, intelectual francês de grande prestígio entre os brasileiros.
Mário horroriza-se com o que lê. Segue-se um diálogo em que o mineiro apresenta-se como "hereditariamente europeu, ou antes francês", e resmunga por ver-se constrangido a "rejeitar a única tradição verdadeiramente respeitável" que conhecia. Sente-se um exilado no país e considera "lastimável essa história de nascer entre paisagens incultas e sob céus pouco civilizados". Inflexível diante dos argumentos do brasileiríssimo interlocutor paulista, o autor de "Também Já Fui Brasileiro" dispara: "Acho o Brasil infecto".
Àquela altura, a França representava o papel de uma Grécia para nossos intelectuais e homens de letras. Até mesmo Oswald, "enfant terrible" modernista, entrou na cena literária com um texto escrito em francês, em parceria com Guilherme de Almeida.
Em 1922, ano da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, e de episódios premonitórios, como a fundação do Partido Comunista e a revolta dos Dezoito do Forte de Copacabana, comemorou-se o centenário da Independência. Pode-se imaginar a agenda patriótica que pautou o país na contagem regressiva para a grande efeméride -e suas repercussões no debate dos anos subsequentes.
A ideia de um país novo, que precisava deixar para trás seu complexo de inferioridade e lançar-se numa revigorante aventura civilizatória nos trópicos, aparecia, com diferentes matizes, no pensamento das elites e disseminava-se pela sociedade. Instituições políticas, escolas, jornais, associações, por todos os cantos a questão nacional se apresentava, fosse em vestes passadistas, fosse em trajes futuristas -não raro, em bizarras combinações de ambos.
As articulações entre o discurso nacionalista, com seus variados matizes, o movimento modernista, a política e o poder na Primeira República [1889-1930] foram objeto de uma tese de doutorado de Antonio Arnoni Prado, sob orientação do professor e crítico Antonio Candido, editada em livro em 1983. Remodelado, "Itinerário de uma Falsa Vanguarda - Os Dissidentes, a Semana de 22 e o Integralismo", de Antonio Arnoni Prado [Editora 34, 296 págs, R$ 42], ganha nova edição.
O autor concentra-se na evolução de uma perspectiva reformista da cultura nacional, da literatura e do papel das elites que estará presente na Semana de 22 e irá desaguar no lançamento do Integralismo, no início da década de 1930.
O estudo contempla um arco de publicações e personagens, como Graça Aranha, João do Rio, Ronald de Carvalho, Cassiano Ricardo e Plínio Salgado, mas detém-se, com especial interesse, na rica, contraditória e reacionária figura de Elísio de Carvalho (1880-1925).
Num texto de 1978, "Radicais de Ocasião", o próprio Candido referiu-se ao socialismo "passageiro e confuso" do personagem, que misturava alhos com bugalhos numa verdadeira salada ideológica -algo que, aliás, não era estranho ao ambiente ainda provinciano do país, mesmo no Rio de Janeiro, onde afetação e citações ecléticas de autores europeus procuravam encenar uma ligação estreita com o que se fazia "lá fora".
Antonio Arnoni Prado mostra como o intelectual carioca, que financiou e esteve à frente de revistas como "A Meridional", "Kultur" e "América Brasileira", influenciou seus pares e o reformismo reacionário que sonhava com a superação da barbárie cultural e do primitivismo de nosso meio, manchado pela "herança desastrosa" da miscigenação.
"Itinerário de uma Falsa Vanguarda" esmiúça aspectos pouco estudados do mesmo Brasil em que nasceu "Alguma Poesia". O esforço de pesquisa e interpretação pode revelar-se útil para quem pretenda compreender, de modo mais detalhado, os embates que se travam no contexto estético e ideológico dos anos de formação do modernismo e de gestação da crise que culminaria na ascensão de Vargas.
Trata-se, no entanto, de leitura penosa, que enfrenta um tipo de registro acadêmico marxista que prosperou de maneira cerrada no meio universitário paulista. É farta a utilização do jargão sociológico de esquerda, sem, ao menos, a clareza e o sabor da escrita dos melhores pais fundadores.

A ideia de um país novo, que precisava deixar seu complexo de inferioridade, disseminava-se nas elites e pela sociedade


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