São Paulo, domingo, 26 de junho de 2011

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CRÍTICA

As letras na trincheira

A ficção como rescaldo da memória




MARCELO COELHO
ilustração MARINA RHEINGANTZ

Está para ser feita a lista das dez citações mais frequentes na crítica literária, na sociologia e no ensaísmo acadêmico.
Ganharia o primeiro lugar, provavelmente, aquela de Marx segundo a qual a história se repete como farsa. Não ficaria muito atrás a observação de Walter Benjamin (1892-1940) sobre o declínio da experiência e da arte de narrar.
No final da Primeira Guerra Mundial (1914-18), escreve Benjamin, "os combatentes tinham voltado mudos do campo de batalha". Não retornaram mais ricos em experiência comunicável, prossegue ele, e sim mais pobres. "Os livros de guerra que inundaram o mercado literário nos anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca."
O próprio Benjamin inaugurou a prática de enunciar a sentença em mais de uma ocasião. Tanto no ensaio "Experiência e Pobreza", de 1933, quanto em "O Narrador", de 1936, deparamo-nos com a mesma ideia. Os soldados voltaram silenciosos do front. Ponto. A frase também nos deixa mudos, com seu baque de verdade. Mas será verdade? Se for, em que medida? E por quê? De resto, como conciliar a dita mudez dos soldados com o fato de que romances, poemas e relatos autobiográficos acabaram sendo escritos?
Perguntas demais para um artigo só. De início, vale registrar que o tema benjaminiano do silêncio nas trincheiras aparece em dois lançamentos de não ficção, "Guerra Aérea e Literatura", do escritor alemão W. G. Sebald (1944-2001), e "Literatura e Guerra", coletânea de ensaios organizada por Elcio Cornelsen e Tom Burns.

RANCOR
Romancista de excepcional sobriedade, capaz de escrever suas obras de ficção ("Os Anéis de Saturno", "Austerlitz") no tom desenganado e ensaístico de um testemunho real, W. G. Sebald não se sai particularmente bem nos textos de "Guerra Aérea e Literatura" [trad. Carlos Abbendseth e Frederico Figueiredo, Companhia das Letras, 136 págs., R$ 39].
O primeiro se dedica a investigar, com algum rancor acusatório, por que motivos os principais escritores alemães depois da Segunda Guerra Mundial (1939-45) evitaram tratar dos bombardeios que se abateram sobre cidades como Dresden, Colônia e Berlim, nos últimos anos do Reich.
Segue-se um texto de resposta às muitas polêmicas que o ensaio suscitou, e o livro termina com uma análise bastante impiedosa da carreira de Alfred Andersch (1914-80), escritor posudo e oportunista que sobreviveu aos anos de Hitler, não sem passar pela indignidade de divorciar-se de sua mulher judia durante o auge do Holocausto.
Centenas de milhares de civis alemães morreram sob o impacto das bombas incendiárias dos aliados na guerra contra Hitler. Com certeza, há muito a se questionar sobre esses bombardeios: não seria mais eficiente, por exemplo, focar o ataque nas ferrovias, indústrias e armazéns de suprimentos, em vez de atingir diretamente as cidades?
Sebald menciona essa questão, mas seu principal interesse ""enquanto se seguem algumas menções aos pormenores mais chocantes da carnificina"" incide sobre o "silêncio" dos escritores diante da tragédia. Percorre-se este curto livro com impaciência, esperando que a resposta mais óbvia ocorra a Sebald. Ela vem nas últimas páginas: antes dos bombardeios sobre Colônia e Berlim, foram os alemães que teorizaram sobre a "guerra total", sobre a necessidade de destruir "o moral inimigo". E foram os alemães que primeiro jogaram bombas sobre Londres, em 1940, e sobre Guernica, em 1937.

VÍTIMAS
Sem diminuir a tragédia vivida pelos habitantes de Dresden, por exemplo (foram mais de 22 mil mortos em menos de 48 horas), era evidentemente difícil para os alemães do pós-Guerra se colocarem no papel de vítimas.
Só agora, num livro de Frederick Taylor recém-traduzido em português, "Dresden - Terça-Feira, 13 de fevereiro de 1945" [trad. Vitor Palozzi, Record, 588 págs., R$ 74], o assunto ganha plena atenção dos historiadores.
Acontece que Sebald, ao discorrer sobre o silêncio dos escritores diante do morticínio, nada mais faz do que aplicar à tragédia das cidades alemãs de 1945 a constatação de Walter Benjamin que dava início a este artigo: "Os soldados de 1918 voltaram mudos das trincheiras"... A tese, basicamente, é a de que todo acontecimento de extrema violência desafia nossas faculdades de expressão. O trauma está associado ao silêncio.
Por outro lado, a sentença de Walter Benjamin ganhou especial validade ao longo do tempo porque se associou a outro tema, o da literatura da Shoah, ou do Holocausto. Argumenta-se, a partir de "Shoah", o filme de Claude Lanzmann sobre os campos de extermínio nazistas, que o extremo do horror se situa na ordem do irrepresentável [o documentário de quase dez horas, a ser lançado no Brasil em outubro pelo Instituto Moreira Salles, será exibido em São Paulo, no Centro da Cultura Judaica, nos dias 9 e 10 de julho].
Qualquer descrição tende a diminuir o assunto; toda ficcionalização tende ao obsceno. Só estaria à altura do que aconteceu uma literatura de testemunho, a mais sóbria possível, no estilo dos livros de Primo Levi (1919-87).

HORROR
Infelizmente, a história humana está cheia de acontecimentos de horror extremo ""ainda que não seja o caso de negar a particularidade dos campos de extermínio nazistas nesta afirmação.
É assim que os temas do trauma, da irrepresentabilidade e da mudez benjaminiana reaparecem na coletânea "Literatura e Guerra" [Ed. UFMG, 340 págs., R$ 45]. Dos jagunços de Guimarães Rosa (no ensaio de Jaime Ginzburg, que abre o volume) aos usos da mitologia homérica na Primeira Guerra Mundial (no texto final, de Luiz Gustavo Leitão Vieira), o livro representa um esforço notável, por parte do pensamento universitário brasileiro, de iniciar uma discussão sobre literatura e violência que ultrapasse os limites da periferia urbana contemporânea (Ferréz, Paulo Lins) para abrir-se a um ponto de vista internacional.
Os romances de Ismail Kadaré sobre a sangrenta memória dos Bálcãs, o teatro espanhol sobre a Guerra Civil, as memórias sobre a guerra do Vietnã e suas relações com o romance "Ardil-22", de Joseph Heller, são respectivamente abordados por Leonardo Francisco Soares, Sara Rojo e John Clark Pratt, ele próprio ex-combatente no Vietnã.
Um bom panorama da literatura das duas guerras mundiais é oferecido por Tom Burns, no ensaio dedicado a alguns vencedores do prêmio Nobel (como Rudyard Kipling, Ernest Hemingway, Winston Churchill, Bertrand Russell e John Galsworthy) que, do pacifismo a seu oposto, engajaram-se no tema.

MUDEZ
Onde encontrar, depois de tudo isso, o "silêncio", a "mudez", o "declínio da experiência" depois da vida nas trincheiras a que se referia Walter Benjamin?
Em muitas outras obras literárias. Vale começar por um clássico do gênero, cujo título já é uma menção a esse tipo de quietude irônica: "Nada de Novo no Front", de Erich Maria Remarque (1898-1970) [trad. Helen Rumjanek, L&PM, 224 págs., R$ 16], analisado por Elcio Cornelsen na coletânea de ensaios da UFMG.
Ao contrário do que faz supor a adaptação de Lewis Milestone, Oscar de melhor filme de 1930, esse clássico pacifista nada tem de apelativo ou sentimental. O jovem Paul narra suas experiências nas trincheiras com um frescor, uma inocência que nada têm de artifício literário.
Não há dúvida, a despeito do que tenha a dizer Benjamin, de que são experiências autênticas: o narrador aprende, sente, vivencia coisas distintas ao longo dos anos que passa sob fogo inimigo.
Mesmo assim, há momentos em que silencia. Sua "mudez", por assim dizer, não diz respeito a extremos de trauma, nem a uma incapacidade fundamental de tornar comunicável o que viveu.
A razão, dada no entrecho, é bem mais simples e convincente. Paul tem uns dias de licença e vai à cidade natal para encontrar a família. A irmã e a mãe cobrem-no de carinhos. Perguntam como é a experiência da guerra.
Paul não quer contar. Sua mudez, entretanto, não é a de um "traumatizado" nem a de alguém que passou por coisas "irrepresentáveis". Trata-se apenas de evitar que a mãe se preocupe demais. Do mesmo modo, a mãe (sabemos logo em seguida) está sofrendo de um câncer terminal. Também esconde do filho esse segredo.

QUASE HISTERIA
Outras razões, para além daquilo que poderíamos chamar de uma "quase histeria" diante do trauma da guerra, podem ser invocadas para explicar a mudez dos soldados de 1914-18. No seu clássico "The Great War and Modern Memory" (a Grande Guerra e a memória moderna), de 1975 (desde então presente nas listas de melhores livros de não ficção do século 20), Paul Fussell dá várias pistas sobre o silêncio dos ex-combatentes (além de analisar muitos romancistas e poetas).
Por exemplo, o imenso tédio que predominava nas trincheiras. A Primeira Guerra significou (como também aponta Walter Benjamin) o fim de uma concepção aventurosa da batalha militar.
Franceses e ingleses, de um lado, e alemães, de outro, estacionaram durante quatro anos numa linha de impasse que cortava a Europa ao longo de toda a fronteira da Bélgica e da França até a Suíça. Qualquer iniciativa de romper o front era rechaçada pelo adversário. Aos soldados, restava esperar, encolhendo-se sob a carga de obuses do inimigo.
Além do tédio, havia a sensação de absoluta falta de sentido. Jovens ingleses se alistavam com o entusiasmo de torcidas de futebol (os dias de jogo eram especialmente prósperos em voluntários), pensando nas glórias de uma guerra rápida, a exemplo das incursões colonialistas contra africanos ou paquistaneses mal armados.
Foi um choque, mas não propriamente um trauma, dar-se conta de que a defesa da "pobre Bélgica" contra a violência dos "hunos" (os alemães) exigia mais o heroísmo de resistir a máquinas de última geração do que vestir uma farda e envolver-se em românticas aventuras.

VERGONHA
Há também, como sempre, a vergonha de sobreviver. Nada se conta, nada se tem vontade de contar, depois de vencido um perigo no qual muitos pereceram. Nesse sentido, é tão legítimo dizer que "os soldados voltaram mudos do front" como dizer, por exemplo, que "Fulano voltou mudo de sua operação de safena". O que Fulano teria, afinal, a contar de tão interessante?
A menos que se considere "o declínio da experiência", como diz Benjamin, um fenômeno tão amplo a ponto de não fazer sentido, qualquer coisa ""e não apenas a guerra"" é traumática o bastante para nos impor a mudez. Os soldados voltaram silenciosos do front. Mas é também verdade que os astronautas voltaram mudos da Lua, e que nenhum de nós tem tanto assim a descrever de sua primeira experiência sexual.
Na verdade, o que está em jogo é a diferença entre a realidade vivida e as palavras de que dispomos para dar conta dela.
Sempre 'e de forma notável no caso da guerra, como nota Paul Fussell' um vocabulário pré-fabricado ("era o inferno") toma conta das lembranças de cada um. Precisamente, a literatura da guerra -como toda literatura- tem de superar esse vocabulário para buscar o específico, o significativo, o original.
Muitos autores tentaram isso. Erich Maria Remarque foi um deles. Ernest Hemingway (1899-1961), em "Adeus às Armas", foi outro. Num estilo que na época terá parecido moderníssimo, mas que hoje dá mostras de certa artificialidade, Hemingway conta suas experiências como enfermeiro no combate entre italianos e austríacos ""um subcapítulo, entre outros, da guerra entre ingleses e alemães"" de forma rápida, simples, quase robótica na sintaxe elementar.
Hemingway assume a "persona" de um homem comum, de um não literato, para dar conta do que aconteceu. Criou, com isso, uma versão do modernismo literário, cuja secura se encontra hoje em desuso.

POESIA
Dois poetas, Guillaume Apollinaire (1880-1918) e Giuseppe Ungaretti (1888-1970), fizeram do silêncio e do medo nas trincheiras motivo de poesia ""poesia moderníssima, aliás. A fragmentação da experiência (mais do que o seu declínio) se traduz em versos que unificam silêncio e ruído, medo e expectativa, melancolia e revolta.
O "silêncio dos soldados" de que fala Walter Benjamin é abordado por Apollinaire num poema que não exclui o otimismo: "Estas velhas línguas tão perto de morrer/ No fundo é só pelo costume e falta de arrojo/ Que ainda são usadas para a poesia [...]/Minha Nossa as pessoas logo vão se acostumar ao mutismo/ A mímica é o bastante no cinema".
Reflexões de um poeta embriagado de modernidade, capaz também de exultar com simples exclamações ("Eh! Oh! Ah!") diante dos ataques de artilharia. A guerra, que separava Apollinaire de sua amada, parecia ao mesmo tempo enaltecer e representar sua paixão. Murilo Marcondes de Moura dedica ao poeta, aliás, um dos melhores ensaios da coletânea "Literatura e Guerra".
Ungaretti aprendeu, da vida nas trincheiras, uma modernidade sintética e extremada. Nos poemas de "A Alegria" [trad.Geraldo Holanda Cavalcanti, Record, 221 págs., R$ 34,90], mudez e discurso se unem em versos rapidíssimos, que trazem ao mesmo tempo a urgência das trincheiras e a contemplação da vida que persiste.
Mais do que isso, uma profunda discrição se nota nestes versos de 1917: "Lontano lontano/come um cieco/ m'han portato pela mano". Nada mais é preciso dizer: "como um cego/ me levaram pela mão", diz o soldado, destituído de tudo, sob a disciplina dos superiores.
Destituído de tudo? Certamente, não de sua capacidade de expressar o que aconteceu. Desse ponto de vista, parece incorreta a frase de Walter Benjamin sobre a mudez dos combatentes.

MUITO A CONTAR
Pelo menos no que diz respeito aos escritores da Primeira Guerra Mundial, eles tinham muito a contar ""só que de forma diferente. Não parece adequado concluir que o trauma vivido fosse intenso a ponto de suas palavras se tornarem incapazes de dar conta da realidade.
Um romance excelente merece ser lido a esse respeito. Trata-se de "Regeneration" (regeneração), de Pat Barker [Penguin, 252 págs., US$ 17,75]. Seu personagem principal é um médico, figura real: o dr. William Rivers (1864-1922), que se dedica a fazer seus pacientes (mudos, gagos, traumatizados) contarem as experiências no front.
Inspirado por Freud, o dr. Rivers convence seus pacientes a falar. Ou seja, a melhor terapia é o testemunho, não o silêncio. Além disso, o romance põe dois grandes poetas da Primeira Guerra, Siegfried Sasoon (1886-1967) e Wilfred Owen (1893-1918), no hospital psiquiátrico em que ambos realmente estiveram, aos cuidados de Rivers.
Qualquer que seja o sentido crítico de se manter em silêncio, o romance de Pat Barker demonstra que é melhor falar. Sem adotar uma forma extremamente moderna, a poesia de Owen e Sassoon prova isso.
Owen morreria no front, uma semana antes do armistício. Sassoon viveu o suficiente para publicar memórias de sua experiência ""a exemplo de muitos outros combatentes que não se resignaram ao mutismo.
Uma coleção de seus depoimentos, recolhidos a partir de 1972, acaba de ser publicada no Brasil: "Vozes Esquecidas da Primeira Guerra Mundial", de Max Arthur [trad. Marco Antônio de Carvalho, Bertrand Brasil, 400 págs., R$ 45], mostra que não só escritores mas também outras pessoas que viveram o trauma das trincheiras podem vencer o mutismo. É sobretudo uma questão de tempo.


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