São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2011

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IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Pedofilia

BERNARDO CARVALHO

Ele vinha ao Brasil por causa do sexo e das mulatas, mas não das crianças. As crianças povoavam o sonho dos seus colegas de voo. Ele era convencional. Espremia-se entre homens gordos e sebentos como ele, mas, ao contrário dele, demasiado excitados com a perspectiva de serem recebidos por meninas com vestidinhos imaculados, enquanto atravessavam o Atlântico, derramando vinho na camisa. A travessia era a pior parte, por ter que se misturar com os outros, mas o voo charter era mais barato e ele tomava um calmante, tentava dormir e passar incólume pelo suplício, sonhando com o prêmio da chegada. De tanto fazer a viagem, acabou ganhando uma filha da cor da mãe. O nascimento da menina o fez ver o mundo com outros olhos. Os voos ficaram mais longos e, em vez de um, ele passou a tomar dois calmantes: um contra os companheiros de viagem e outro para não pensar na gente que encontraria ao chegar, no aeroporto, nos táxis, nos bares, nos restaurantes e nos hotéis, e que, embora se dizendo indignada, só enxergava a pureza de crianças como sua filha, por contraste, ao vê-las ao lado de estrangeiros gordos e sebentos como ele. Quando a menina fez cinco anos, ele tomou mais uma vez o avião para comemorar o aniversário ao lado dela e acabou preso, na praia, acusado por banhistas revoltados diante da imundície do estrangeiro gordo e sebento, beijando uma criança negra em público. A revelação de que a menina era sua filha só fez agravar o crime. E hoje, enquanto seus companheiros de voo continuam cruzando o Atlântico na maior excitação, ele espera a sentença, espremido numa cela superlotada, sem poder pregar os olhos, sabendo que mais cedo ou mais tarde será esfaqueado pelos novos colegas, dois deles com mais de cinco assassinatos nas costas, mas sempre dispostos a fazer justiça com as próprias mãos quando se trata de crimes hediondos como o estupro e a pedofilia.


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