São Paulo, domingo, 27 de março de 2011

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SOCIOLOGIA

Metrópole em dois atos

A São Paulo moderna e suas intérpretes

RESUMO
A notabilização de ensaístas e atrizes paulistanas é o objeto de livro da antropóloga Heloisa Pontes, que observa a modernização da cidade a partir da influência do teatro francês, da fundação da USP e das interações críticas e artísticas entre as mulheres que protagonizaram a cena cultural em meados do século 20.

PAULO WERNECK

O CRUZAMENTO entre cena intelectual e cena teatral na São Paulo das décadas de 1940, 50 e 60 é o foco de "Intérpretes da Metrópole", a ambiciosa tese de livre-docência que a antropóloga Heloisa Pontes, pesquisadora do centro de estudos de gênero Pagu, da Unicamp, lança em livro nesta terça, na Livraria da Vila (al. Lorena, 1731, em São Paulo), às 19h, pela Edusp.
A autora faz um estudo comparativo da trajetória de mulheres "intérpretes" (nos dois sentidos da palavra) da cidade moderna: atrizes (Cacilda Becker, Maria Della Costa, Fernanda Montenegro e outras) e ensaístas (Gilda de Mello e Souza, Lúcia Miguel Pereira e Patrícia Galvão, a Pagu).
"É como se eu fizesse uma biografia coletiva de dois campos", disse ela na entrevista à Folha, concedida no apartamento que divide com seu marido, o sociólogo Sérgio Miceli, no bairro paulistano de Higienópolis.
Não se deve esperar da perspectiva adotada, a dos estudos de gênero, um requentamento de trabalhos sobre a "condição feminina", em voga nos anos 70. Interessa à autora compreender as articulações sociais da trajetória dessas mulheres, comparando biografias, campos de atuação e experiências. "Essencializar a condição feminina" seria, em suas palavras, "uma coisa anêmica".
A pesquisa amplia e desdobra "Destinos Mistos" (Companhia das Letras, 1998), importante trabalho sobre o grupo Clima -formado em torno da revista de mesmo nome, na USP, por Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza, Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado e Lourival Gomes Machado.
Tão bem escrita quanto avessa a simplificações ou esquematismos, a narrativa ensaística ressalta o imbricamento entre as carreiras dessas mulheres, a cidade que as projetou e as parcerias -profissionais, amorosas ou ambas- com homens. Um exemplo forte é o de Décio de Almeida Prado, cujo percurso na crítica de teatro é inseparável do caminho trilhado pela atriz Cacilda Becker (e vice-versa).
Leia a seguir trechos da entrevista, cuja íntegra está disponível em folha.com/ilustrissima.

 

Folha - Por que articular cena intelectual e cena teatral ?
Heloisa Pontes - Essas duas experiências se inscrevem numa mesma cidade, São Paulo, que estava passando por um processo intenso de metropolização. Isso implica uma alteração na estrutura social, a relação entre os grupos se modifica, o perfil social de recrutamento é completamente diverso.
Até então, as elites dirigentes se formavam na Faculdade de Direito, na Faculdade de Medicina e na Escola Politécnica. O número de mulheres, de imigrantes e de filhos de imigrantes era irrisório.
Na Faculdade de Filosofia, onde se formou o grupo Clima, esse perfil social é completamente distinto.Há um recrutamento não previsto pelas elites que constroem a universidade: presença maciça de filhos da segunda geração de imigrantes, de italianos, espanhóis, judeus, já na criação da USP. É uma quantidade expressiva de procedências étnicas diferentes e de mulheres.

Mas isso não se observa no grupo Clima, formado por filhos da elite.
É. Mas eles também são uma transição. Eles estão ousando, mas no que podem ousar? Numa faculdade que ninguém sabe ao certo o que é. Até hoje, se você perguntar o que são as ciências sociais, os pais não sabem o que os filhos estão fazendo. Em 1934, muito menos.
E todos os homens do grupo Clima fizeram a Faculdade de Direito. O Antonio Candido não chega a se formar em Direito, o Décio se forma. Foram homens de duas faculdades. Menos a Gilda. Exatamente porque era mulher, já era inusitado que fizesse uma faculdade.

É a única das mulheres estudadas no livro que se formou.
A Lúcia Miguel Pereira era autodidata e a Patrícia Galvão também.

Por que essas intelectuais foram escolhidas em sua pesquisa?
Não porque fossem representativas, mas porque elas foram excepcionais, construíram um nome próprio, uma obra, uma autoria, num momento muito particular, em que a atividade intelectual era predominantemente masculina.
A Lúcia era uma autodidata, tinha um conhecimento extraordinário da literatura. A Gilda também. A autoria está ligada à formação, ao conhecimento, e à capacidade que elas tiveram de fazer alianças, até matrimoniais, com parceiros.

Gilda viveu à sombra do parceiro?
Não exatamente. O Antonio Candido teve mais projeção do que a Gilda, mas ela enfrentou constrangimentos que eles não enfrentaram. Hoje o pessoal da filosofia diz: "Quando a Gilda foi pra lá em 54, todos a achavam genial". Não é verdade. Quando ela foi pra lá, algumas pessoas achavam: "O que ela está fazendo aqui? Ela não é a filósofa stricto sensu".
Foi importantíssima para o Jorge Coli, para pessoas que tinham a ideia de que a filosofia podia ser feita de outra maneira. Mas naquele momento todos queriam fazer ciência, filosofia. Quando o Giannotti reconstitui que a Gilda desde 54 era muito aceita não é verdade. Não estou acusando o Giannotti...

Como a "menina levada" Pagu se converteu em "mulher liberada"?
Dizer isso não é nenhum demérito, ela é genial. Ninguém está discutindo isso. Mas ela foi, no começo, uma invenção do modernismo. Uma menina linda, uma espécie de mascote, até, do casal Oswald e Tarsila. Depois vai ter voo próprio.

O que chama a atenção em Pagu?
O que me impactou muito foi ler a "Autobiografia Precoce" da Pagu, que o filho dela, Geraldo Galvão Ferraz, publicou em livro. Na verdade, é a carta que a Pagu escreveu para o Geraldo Ferraz quando saiu da prisão, magérrima, 46 kg, depauperada. Viveu uma barra, três ou quatro anos em condições terríveis.
Você sempre imagina uma Pagu que rompeu uma série de convenções. Rompeu, sim, mas lendo a carta você percebe que ela tem um registro do autossacrifício que não condiz com a imagem que nós construímos. É muito mais interessante. E tem uma espécie de sexualidade sequestrada, quando ela diz "me entreguei pro Oswald porque isso para mim não era tão importante".

Hoje lemos isso como se fosse uma espécie de Leila Diniz dos anos 40.
Exatamente. Não era assim. Ela tem as duas coisas: tem submissão e tem entrega. O interessante é ver a tensão. Eu não pude ver antes da carta, porque já sou a leitora da Pagu no registro do Haroldo de Campos, que foi ótimo. A reabilitação da Pagu deve muito a ele. Mas aí a gente entrou nela como se fosse feminista "avant la lettre", concretista "avant la lettre"; não era.

O que aproxima o concretismo, a sociologia de Florestan Fernandes e a dramaturgia de Jorge Andrade?
A ideia de que essas linguagens são inseparáveis dessa cidade, que está em processo de metropolização e está criando ao mesmo tempo uma série de instituições, nas quais esses "intérpretes da metrópole" estão passando.
Não é à toa que as novas linguagens aparecem nas ciências sociais, na dramaturgia e no teatro, nas artes plásticas. Não é de ponto de vista do conteúdo, mas da sociabilidade e da linguagem.

Isso foi possível por São Paulo não ser a capital, como o Rio?
Não era a capital política, não tinha uma elite política. Num certo sentido, São Paulo era mais cosmopolita e mais provinciana. Paradoxalmente. O projeto dos concretistas, o projeto do Florestan Fernandes era de que era preciso romper com o passado. Florestan rompe com o passado na insistência da linguagem científica.

Roberto Schwarz criticou Florestan dizendo que, quando a crítica social se divorcia da língua literária, ela perde força, não permanece...
Eu já tive essa conversa com o Roberto Schwarz várias vezes. Eu digo a ele: "Vocês só leem o Florestan da 'Revolução Burguesa no Brasil'. Não leem, por exemplo, o Florestan que escreveu sobre os tupinambás." É uma análise da envergadura dos grandes clássicos da antropologia. Se fosse escrito em inglês, esse livro seria lido por todo estudante que lê Evans-Pritchard ou Lévi-Strauss, ou Marshall Sahlins...
O Florestan escreve propositalmente numa linguagem que ele acredita que é a linguagem científica. E isso é moderno. Tem uma ruptura, do ponto de vista da linguagem, com o que ele considera que era o ensaísmo. Então o Roberto Schwarz tem e não tem razão. Tem razão porque, vistos hoje, alguns procedimentos discursivos do Florestan são uma caricatura do que deve ser a linguagem científica.
No grupo Clima, eles aprenderam uma maneira nova de praticar o trabalho intelectual, mas usaram o ensaio, que é parte da tradição intelectual brasileira. Então é por isso que a linguagem deles tem muito mais frescor, atualidade, impacto...

Qual a semelhança desse processo com o teatro paulista nos anos 40?
Você tem a ideia de que o teatro moderno implica a presença do diretor, o respeito ao texto, não mais o ponto, não mais o "caco". Monta-se algo em moldes quase empresariais, o TBC, em São Paulo.
Os grupos amadores estão antenados com a cena teatral internacional, sobretudo o [ator e diretor francês Louis] Jouvet, que também vai ter impacto nos EUA. O teatro passa a depender de uma concepção. Quem concebe a totalidade do espetáculo é o diretor. Antes, só havia o "ensaiador".

Como era o teatro até então?
A cara do teatro era a Dercy Gonçalves, que tinha uma verve, uma graça, era de uma irreverência... as pessoas não sabiam o texto da personagem. Texto não era importante. O público ia para ver a capacidade histriônica do intérprete. Quanto mais "cacos", quando mais ele modificasse o texto, mais impacto tinha. E havia o ponto soprando no proscênio. O teatro de revista tinha grandes intérpretes, era um teatro de feitio mais popular, da graça, da irreverência.

E qual foi a singularidade de Cacilda Becker?
A Cacilda tem a mesma origem social do Florestan. Eram os mais destituídos. Florestan era filho de empregada doméstica, a carteira de registro dele dizia: pai desconhecido. Isso nos anos 40 era uma exclusão social daquelas. Não tinha nada a oferecer, não foi formado, como o Antonio Candido, na biblioteca paterna, lendo, não teve preceptora francesa... Era uma espécie de mata-borrão que absorvia integralmente as influências.
A Cacilda foi calçar o primeiro sapato aos 14 anos. Ela vai se formar discípula desses diretores estrangeiros, que tinham uma cultura teatral enorme, e absorve tudo. Não é aleatório que ela e Florestan tenham perfil social muito parecido, e que ela seja a primeira atriz do TBC e ele seja o sociólogo.
Quando Cacilda chega ao TBC, tem sete anos de experiência no Rio, tinha feito muitos papéis. Era muito jovem, mas já tinha uma formação. Pegou o pior do teatro, digamos assim, e o melhor. E fez isso corporalmente. Cacilda conseguia exercitar o mecanismo de burla que o teatro tem, era capaz de transitar por personagens diferentes, com mecanismos que permitem burlar convenções de gênero, de classe. No cinema isso não é possível.

Que ganhos Cacilda e Décio tiveram ao se encontrar em 43?
Décio acompanhou a carreira inteira da Cacilda. Enquanto ele se firmava como crítico, ela se firmava como primeira atriz no TBC, e era como se a carreira de um e de outra se interpelassem mutuamente.
Quando o Décio vai montar o GUT, o Grupo Universitário de Teatro, já tinha escrito dois anos de crítica de teatro na revista "Clima", já tinha ido em 1939 visitar o Paulo Emílio em Paris e lá acompanhou o teatro mais de vanguarda. Já tinha ido aos EUA e era leitor de literatura e de dramaturgia. O Décio era jovem, um moço antenado com o relógio da cena internacional.
A Cacilda estava no Rio, fazendo peças aleatórias. Era uma atriz profissional. Quando eles se encontram, ela passa um tempo como amadora no GUT; se profissionaliza e é a primeira atriz do TBC, não podia viver como amadora. No TBC, ela vai entender aquele teatro moderno. Ela vai ser a atriz com maior impacto dos diretores estrangeiros.
O Décio e a Cacilda são como um retrato de corpo inteiro desse teatro em implantação. O Décio como crítico, depois como o maior historiador do teatro brasileiro. E a Cacilda foi a primeira atriz do TBC.
A gente não viu a Cacilda, mas se você lê as criticas do Décio, é como se tivesse visto. Ele é capaz de traduzir aquilo que acontece no palco no seu ensaio. A carreira de um e a carreira de outro se iluminam mutuamente, ela no plano do que faz no palco, e ele no que fez por escrito sobre o palco.

São Paulo era mais cosmopolita e mais provinciana. Paradoxalmente

O Décio e a Cacilda são como um retrato de corpo inteiro desse teatro em implantação


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