São Paulo, domingo, 27 de junho de 2010

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CRÍTICA

Inaptidão para a felicidade

A trilogia autobiográfica de J.M. Coetzee

RESUMO Da origem africâner aos anos passados em Londres, a trilogia formada por "Infância", "Juventude" e "Verão" revela a formação e preocupações do sul-africano e Nobel de Literatura J.M. Coetzee. O também escritor Cristovão Tezza avalia esses livros na composição de um retrato mais denso de Coetzee, autor recluso e "impermeável".

CRISTOVÃO TEZZA
Ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 2003, John Maxwell Coetzee não fez uma palestra protocolar. Preferiu ler um relato ficcional sobre Daniel Defoe. O autor de Robinson Crusoé, no conto de Coetzee, diz que na sua célebre ilha vivia "uma vida silenciosa". De volta à Europa, parecia-lhe que havia "muita fala no mundo". A citação dá uma medida do amor pelo silêncio desse autor que raramente concede entrevistas e, em suas aparições públicas, jamais fala de si mesmo: prefere ler uma peça de ficção.
Nascido em 1940 numa fechada África do Sul dos brancos, muito distante do cenário multirracial e multicultural onde hoje se desenrola a Copa do Mundo, Coetzee construiu uma obra que poderia ser sintetizada como uma densa investigação ética sobre o homem contemporâneo. Em seus 15 romances, estão presentes temas que vão desde a violência e a brutalidade militar colonial ("À Espera dos Bárbaros") até a denúncia da matança dos animais neste mundo carnívoro, num curioso elogio ficcional do vegetarianismo ("A Vida dos Animais").
Como contraparte ao romancista, Coetzee é também professor universitário e publicou coletâneas de ensaios, mergulhando em autores díspares como Beckett, Graham Greene e Walt Whitman. Neles, revela-se um filólogo e um crítico refinado, atento aos recursos de linguagem, aspectos da tradução da prosa e da poesia, e técnicas literárias. Entretanto, sempre manteve as águas perfeitamente separadas -para felicidade dos leitores, não se entrevê na sua ficção a sombra da academia.
Um exemplo dessa separação encontramos em "O Mestre de Petersburgo", em que toma Dostoiévski como personagem, atormentado pela morte de seu enteado. O Dostoiévski que surge do romance é um típico personagem de Coetzee; a passagem do ensaísta que se debruça sobre o autor russo para o romancista que lhe dá vida representa uma mudança radical de olhar; a certeza metódica do primeiro cede espaço à ambiguidade inescapável da ficção. E a intensidade apaixonada da Rússia do século 19 vê-se sob a lâmina fria, lacônica, de um observador pessimista contemporâneo.
Apesar de universalmente reconhecido pela crítica como um dos dois ou três maiores prosadores contemporâneos, Coetzee não é exatamente um escritor popular ou muito conhecido. Metaforicamente, podemos dizer que seu texto fala, à distância, do que nos é muito próximo; talvez por isso não seja fácil compreendê-lo.
Se é verdade que compreender um escritor é decifrar sua infância, talvez a chave da sua literatura esteja justamente no seu livro "Infância" [Companhia das Letras, tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves, 152 págs., R$ 19]. Com o enganoso subtítulo de "Cenas da Vida na Província", o livro abre uma trilogia informal, de fundo autobiográfico, em que um dos mais impermeáveis escritores do mundo, então aos 56 anos de idade, decidiu falar de si mesmo. O segundo volume, "Juventude", publicado nos seus 62 anos, mantém o subtítulo irônico, assim como "Verão", que saiu no ano passado, agora lançado entre nós. "Infância" é uma investigação ficcional sobre esse período difuso em que começamos a nos reconhecer. Seu realismo sente e avalia instintivamente o peso relativo das coisas concretas que dizem quem nós somos: a mãe, o pai, a casa, a terra, os vizinhos, os parentes, as línguas, a escola, os jogos, e a angustiante relação entre essas variáveis agressivas, do meio das quais somos obrigados a emergir como alguém distinto.
Do ponto de vista técnico, Coetzee só fala dele próprio na terceira pessoa, como de um estranho a ser decifrado. Em suas três obras autobiográficas, é sempre "ele", jamais "eu". Em "Infância", encontramos um dos traços fundamentais de sua linguagem literária: o olhar distante e sem ênfase, mas nunca desinteressado, sobre as pessoas, entre as quais está ele mesmo, tratado sem nenhuma deferência.
Esse modo de ver a si mesmo é um método. Porque, mais do que construir uma trama romanesca, o que ele deseja é investigar, do modo mais frio, exato e sem complacência, o que acontece com as pessoas (entre as quais, ele mesmo) quando submetidas ao duro convívio umas com as outras ou à estressante presença da realidade social em torno. Sua ficção é cartesiana -mas a limpidez lógica de seu olhar se cruza impotente com a exasperante falência dos sentidos para dar conta da realidade.
Apesar das aparências, Coetzee não pode ser reduzido a um escritor psicológico, analisando motivações metafísicas ou insondáveis da alma, soltas num rio inconsciente e incontrolável. Seu cartesianismo não descarta a brutalidade concreta das coisas e das pessoas. Na infância do autor, vamos encontrar os elementos históricos e sociais do pessimismo que marcou a sua obra.
Coetzee se vê como um intruso em sua terra; não nutre nenhuma simpatia pelos africâneres, para ele expressão de tudo que é brutal. Imagina-os como "rinocerontes, enormes, poderosos, chocando-se uns com os outros quando se cruzam", e que "usam a língua como um porrete contra os inimigos". Os africâneres são os calvinistas que, no século 17, ocuparam a África do Sul caçando bosquímanos e ocupando-lhes as terras (um dos temas violentos de "Terras de Sombras", primeiro livro de Coetzee -caçadas levadas a cabo supostamente por um ancestral seu), e que depois da Segunda Guerra fariam do apartheid a mais vergonhosa expressão oficial de racismo do século 20.
A questão é que o menino é, como seu pai, um africâner, o que o próprio sobrenome denuncia. Refugia-se na mãe que, misteriosamente, fala inglês em casa, e que ele absorve como primeira língua.
O jovem Coetzee -tema de seu segundo livro autobiográfico- é alguém que precisa purificar-se da África do Sul. Nessa tarefa ética, concomitante a um projeto existencial completo que começa a se formar em torno do desejo de ser poeta ou escritor, ele vai para a Inglaterra aos 22 anos. A ideia é não voltar nunca mais: "A África do Sul foi um mau começo, uma desvantagem. (...) Se um vagalhão viesse do Atlântico amanhã e varresse da existência o extremo sul do continente africano, não derramaria uma única lágrima".
Se em "Infância" vemos os dados lançados pelo acaso que fizeram dele a criança que era, em "Juventude" [Companhia das Letras, tradução de José Rubens Siqueira, 192 págs., R$ 43] é a formação do escritor que está em jogo, agora no terreno brutal das escolhas - não há mais desculpas. E sua primeira escolha é "excluir os pais de sua vida".
A fria narração de "Juventude" observa sem piedade os ritos de passagem de um adolescente para a vida adulta. A mulher ocupa um papel central nesse livro. A relativa ingenuidade dos primeiros momentos de contato com as mulheres e o seu discreto imaginário romântico (como a paixão que nutre por Monica Vitti no filme "O Eclipse", de Antonioni) acabam sempre por desabar em uma quase sociopatia emocional, um bloqueio que o impede de partilhar qualquer sombra de vida em comum com alguém.
O jovem Coetzee é alguém talhado para a solidão, e cada novo encontro sexual com namoradas, que acontecem antes pelo acaso que pela escolha, parece confirmar a sua vocação. A questão afetiva se entrelaça com seus projetos literários ainda incipientes e com o trabalho inverossímil que consegue em Londres: o futuro romancista foi, aos 22 anos, um programador de computador, primeiro para a IBM, depois para o governo britânico, chegando a frequentar as instalações nucleares de Aldermaston. Enquanto isso, matura-se o escritor, que ainda não escreveu uma só linha e há muito desistiu de ser poeta.
"Verão" [Companhia das Letras, tradução de José Rubens Siqueira, 280 págs., R$ 44,50] é uma retomada radical de suas "Cenas da Vida na Província". O tema são as suas relações amorosas adultas, mas agora o princípio de deslocamento é levado às últimas consequências. Há um fio de sátira amarrando o texto, a partir do pressuposto narrativo: no livro, Coetzee já morreu, e um pesquisador, de posse de anotações suas dos anos 1972-75, entrevista quatro mulheres e um colega de universidade que conviveram com ele.
Os temas fundamentais de seus textos biográficos estão naturalmente presentes: o invencível "cul-de-sac" ético de ser um africâner na África do Sul; o impasse racial; o mal-estar de pertencer a uma família como a sua, e ter um pai como o seu; a presença do mal como viva expressão cotidiana; o lado impraticável da relação amorosa (mas aqui, pela primeira vez, sua obra abre as portas do humor: o estranhamento da confissão amorosa pessoal imersa no seu profundo ridículo, sob uma ambiguidade que não se desata); enfim, a inaptidão para a felicidade. Afinal, "pessoas felizes não são interessantes", como dizia o jovem J.M. Coetzee.
Sim, em Coetzee tudo é pesado, depressivo e sem remissão. E é por isso que seus fantasmas precisam da literatura para virem à tona, como se só por meio dela se tornassem suportáveis. Ao falar de si mesmo, ele parece dizer que a ficção é a única linguagem capaz de iluminar a vida pessoal mantendo-a permanentemente difusa. A desconcertante ironia de Coetzee, desenhada pela simplicidade cartesiana de sua frase, dá uma leveza extraordinária ao mundo sombrio que relata. Um mundo no qual, mesmo a contragosto, pelo poder da palavra, o leitor acaba por se sentir em casa.

"Apesar das aparências, Coetzee não pode ser reduzido a um escritor psicológico, analisando motivações metafísicas ou insondáveis da alma"

"A desconcertante ironia de Coetzee, desenhada pela simplicidade cartesiana de sua frase, dá uma leveza extraordinária ao mundo sombrio que relata"


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