São Paulo, domingo, 27 de junho de 2010

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ARQUIVO ABERTO

Memórias que viram histórias

Agora, papai sabe tudo

Belo Horizonte, 1992

SÉRGIO DANILO PENA

A incerteza da paternidade é antiga como a humanidade; afinal, a concepção, no interior do corpo da mulher, não admite testemunhas. Daí o dito popular: "Os filhos de minhas filhas, meus netos são; os filhos dos meus filhos, serão ou não?".
Mas isso mudou 25 anos atrás. Em julho de 1985, o geneticista inglês Alec Jeffreys publicou na revista "Nature" sua invenção de uma técnica laboratorial de estudo simultâneo de múltiplas regiões do DNA com "lanternas químicas" denominadas sondas multilocais. O resultado era um padrão de bandas absolutamente individuais, similar a um código de barras, que ele chamou de "impressões digitais de DNA".
A descoberta tornou possível comparar o padrão das pessoas e, pela primeira vez, comprovar com certeza (superior a 99,9999%) se um indivíduo é, ou não, o pai biológico de uma criança.
Ao ler o artigo, me encantei com a metodologia. Em determinação de paternidade o que então havia de melhor era um teste indireto chamado HLA, mas a confiabilidade era de 98%.
Chegar à certeza com testes diretos no DNA era um desafio irresistível para mim. Decidi fazer tudo para dominar a técnica e adaptá-la o Brasil.
Dois empecilhos se apresentavam, sendo o primeiro na arena da propriedade intelectual. Jeffreys havia cedido a patente de suas sondas a uma empresa que impedia o seu uso por outros laboratórios. Porém, logo se descobriu outra sonda (chamada M13), com características iguais às de Jeffreys, mas que foi colocada em domínio público. Logo, logo, nós desenvolvemos também uma sonda multilocal 100% brasileira (F10), que passamos a usar rotineiramente.
O segundo empecilho era o fósforo radioativo, que Jeffreys usava para "marcar" suas sondas multilocais e visualizar os resultados em filmes de raio-x. A radioatividade era efêmera e a importação dos isótopos, complicada. Isso nos levou a explorar vias alternativas, não-radioativas, com maravilhoso sucesso. Assim, em 12 de junho de 1988, o laboratório GENE - Núcleo de Genética Médica de Minas Gerais anunciou oficialmente ao público brasileiro que já realizava o revolucionário exame de determinação de paternidade pelo DNA. A repercussão no país e no exterior foi muito grande.
Em 1990, também pioneiramente no Brasil, adicionamos os novíssimos testes pela técnica da PCR (Reação em Cadeia da Polimerase) às perícias feitas com sondas. Esses testes necessitam menos DNA e são mais simples - por isso, embora não sejam tão informativos e elegantes, vieram mais tarde a substituir as "impressões digitais de DNA" nos laboratórios.
Conheci Jeffreys em um congresso na Suíça e o convidei para participar da 2º Conferência Internacional de Impressões Digitais de DNA que organizei em novembro de 1992, em Belo Horizonte. Ele aceitou, sem impor exigências. Sua ideia era trazer a esposa e filhas para um tour pelo Brasil.
Entretanto, com a repercussão negativa do massacre de 111 presos no Carandiru, a família não veio, em protesto. No ano seguinte, publicamos juntos um livro, em inglês, sobre as variadas aplicações das sondas multilocais.
Hoje, o que era impensável em 1988 tornou-se rotina. Resultados urgentes podem ser obtidos em menos de 24 horas! Também podemos utilizar amostras biológicas diversas (sangue, células da bochecha, fios de cabelo com raiz, unhas, material de biópsias, dentes, ossos, tecidos fetais) e realizar exames tanto após a morte do possível pai quanto antes do nascimento de um bebê -sempre com confiabilidade total. Se o teste de DNA existisse nos tempos de Machado de Assis, não haveria o dilema de Bentinho quanto à fidelidade de Capitu e "Dom Casmurro" não seria um dos maiores romances brasileiros.
Agora, é possível resolver dúvidas como as de Bentinho, que afetavam negativamente toda a vida das pessoas envolvidas.
Graças a um lampejo de genialidade de Alec Jeffreys, um quarto de século atrás, podemos contrariar o adágio popular e definir com certeza se os filhos de nossos filhos são realmente nossos netos, ou não.


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