São Paulo, domingo, 28 de agosto de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

¡El comandante vive!

Bogotá, anos 90

Ary Brandi
Grupo Circo Grafitti se apresenta em Bogotá com a peça "Você Vai Ver o que Você Vai Ver", nos anos 90

GABRIEL VILLELA

NOS ANOS 90
, o espetáculo "Você Vai Ver o que Você Vai Ver", baseado em "Exercícios de Estilo", de Raymond Queneau, dirigido por mim, com Rosi Campos, Gérson de Abreu, Paulo Ivo, Romis Ferreira, Helen Helene, Zezeh Barbosa e Carú, foi para o Festival de Bogotá, na Colômbia.
A diretora, a atriz argentina Fanny Mikey, era uma espécie de Ruth Escobar de lá. Fazia acontecer um dos mais importantes eventos teatrais da América Latina.
Bogotá estava quase sitiada. Guerrilheiros prometiam explodir duas toneladas de dinamite na cidade. Hotéis ligados ao festival tinham tanques (brucutus brasileiros) na porta. Para chegar ao Teatro Nacional, passávamos por duas barreiras militares.
Fora o "soroche" (mal das alturas), tudo ia bem, até que Fanny me convidou a assistir à gala de um mímico de Israel. Fui sozinho. Fanny acenou para mim e logo fui pego pelos braços por seguranças que me levaram a uma sala repleta de jovens, um tipo bonitão de bigode, a cara de Tarcísio Meira na juventude, e a diva argentina Cipe Lincovsky, vestida de peles. Linda.
Um climão danado. Sem entender, banquei o engraçadinho e falei em portunhol: "¿Lo que pasa senhores? ¿Hay buemba? ¿Hay buemba?" (Quando Cacá Rosset e o Teatro do Ornitorrinco passaram por lá, com "Teledeum", de Albert Boadella, botaram uma bomba no camarim).
Silêncio de morte.
Entrou um funcionário com uma xícara de café e entregou-a ao bigodudo "Tarcísio". Continuei a falação até que notei uma jovem diante de uma máquina de escrever elétrica. Havia entre suas pernas uma metralhadora platinada.
Como eu já estava derrapando na curva, resolvi cair no precipício com estilo. Fui até o moçoilo de bigode, tirei o café das mãos dele e pedi que fosse educado e passasse o café para a "dame" argentina.
Santo Deus, nunca vi tanta arma virar para a minha cabeça. Um xixi mais quente que o café escorreu pelas minhas pernas. O "Tarcísio" notou, deu sinal de "calma, moçada", aproximou-se e me disse: "Soy Carlos Pizarro".
Era o chefe da guerrilha que, na década anterior, tinha botado abaixo o Palácio da Justiça colombiano, sequestrando cerca de 300 funcionários e matando mais de uma dezena de membros da alta magistratura. Explodiu tudo usando um brucutu comprado no Brasil, igual aos que estavam lá fora.
Pizarro só parava de lutar uma vez por ano, para assistir ao festival. Tentou me acalmar com tapinhas no meu rosto, e dizia: "Hombre, no hay problema, quedate tranquilo. Nadie te molestará". Depois me levou a um banheiro feminino. Contou que negociavam uma trégua para que todos assistissem à récita e depois ele e sua trupe saíssem. Disse que Fanny o chamara, mas convidara também militares e viúvas dos magistrados mortos no atentado que o consagrou como "El Comandante".
E não é que rolou mesmo uma "bandeira branca, amor" e todos foram para o auditório? Não sei que jeitinho Fanny deu, mas Cipe, Pizarro e eu nos sentamos lado a lado e o espetáculo correu normalmente. Apenas o cheiro de xixi incomodava os mais próximos.
Minutos antes do final, Pizarro retirou-se numa rapidez estonteante. Na época, ele concorria à presidência da Colômbia.
Depois aconteceu uma tragédia. No dia 26, Pizarro foi metralhado durante um voo de Bogotá a Barranquilla. O avião regressou à capital e Pizarro morreu em um hospital próximo do aeroporto. Seu enterro reuniu uma multidão de jovens, inclusive nosso guia local.
Vivien Buckup, nossa querida coreógrafa e diretora assistente, trouxe-me fotos dos muros cobertos de lambe-lambes do espetáculo. Sobre as inscrições "Usted Va a Ver lo que Va a Ver", cartazes diziam: "¡El comandante vive! Carlos Pizarro no morirá."


Texto Anterior: Diário de Pequim: Abba em chinês
Próximo Texto: Imaginação: Conto
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.