São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2010

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CIÊNCIA

Da arte de enxugar geleiras

Reunião do clima em Cancún perpetua velhos impasses

RESUMO
Já percebido por comunidades tradicionais, aquecimento global é tema de conferência no México e de bate-boca entre céticos e convertidos, calcado em mitos sobre relações entre natureza e cultura. Livros discutem a mudança climática, debates em torno dela e esforços diversionistas de pesquisadores para reiterar as dúvidas.

MARCELO LEITE

O CLIMA É POP. Milhares de jornalistas, militantes, empresários e diplomatas chegam amanhã a Cancún, México, para mais um fracasso nas negociações sobre cortes nas emissões de gases do efeito estufa. Das plantações de dendê para biodiesel na Malásia à floresta ianomâmi, de Wall Street ao altiplano andino, não se discute outra coisa.
Falem mal, mas falem do clima.
O peruano Julio Hancco, 58, não precisa de estímulo para queixar-se do aquecimento global. Estrela da feira culinária Mistura 2010, em Lima, ele posa para fotos com poncho e gorro multicoloridos, uma "puca llumchuy huacachi" na mão. É a variedade de batata "que faz a nora chorar" (por causa dos muitos "olhos" que dificultam a tarefa de descascá-la), uma das 215 -entre as mais de 3.000 existentes no Peru- que cultiva em quatro hectares a 4.000 m de altitude na região de Cusco, ao pé do que já foram os "nevados" Sahuasiray e Pitosiray.
Décadas atrás, Hancco caminhava 5 ou 10 minutos para chegar à beira das neves eternas. Agora precisa andar um dia inteiro. Mas é da luz difusa que emanava do gelo, à noite, que sente mais falta. Desde que os nevados se foram, chove forte ou cai geada fora de época, e cai granizo, danificando o cultivo na região.
O tema da mudança climática também chegou às melhores mesas de Miraflores, o bairro chique de Lima. A preocupação, entre uma garfada e outra, é que o progressivo desaparecimento das geleiras tropicais nos Andes acabe por dizimar a biodiversidade de ingredientes mantida pelos pequenos agricultores.
Em todas as comunidades camponesas no percurso do grupo de jornalistas que a ONG internacional Oxfam levou para testemunhar o impacto do aquecimento global, não passam cinco minutos sem que alguém se ponha a falar sobre o "cambio climatico" que está secando seus poços. Mesmo que a origem da estiagem possa estar também na disputa pelo uso da água entre agricultores, os comunitários sabem muito bem por que a imprensa está ali e não se fazem de rogados.
Eles se queixam, contudo, por algo de real e mensurável: o Peru, com 70% das geleiras tropicais da Terra, perdeu mais de um quinto (446 km²) de seus 2.042 km² de "nevados" desde a década de 1960.

FRAUDES Se no Peru pouca gente parece duvidar da realidade do aquecimento global causado pelo homem, noutras paragens grassa o ceticismo -como no departamento de geografia da USP. Ali se organizou, quarta-feira passada, um simpósio dedicado a semear dúvidas sobre o consenso em torno da noção de que o aquecimento global é causado pela emissão de gases do efeito estufa, dióxido de carbono (CO2) à frente, com produção de energia, transportes e desmatamento.
Não faltam pessoas dispostas a acreditar que uma conspiração de burocratas da ONU, pesquisadores de esquerda e jornalistas idem esteja por trás dos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, na abreviação em inglês). O de 2007, conhecido como AR4, afirma que o aquecimento global é inequívoco e que causas naturais -como a atividade solar- são insuficientes para explicar o aumento de temperatura observado.
Não faltam tampouco livros e porta-vozes para dizer que essa conclusão é uma fraude. Um exemplo a esmo é "Aquecimento Global - Alarme Falso", de Ralph B. Alexander [Gryphus, 2010, 244 págs., R$ 32,90]. Relevem-se os erros de revisão até na capa do volume - pode ser coincidência. Mas quem é Alexander para desqualificar os 3.500 pesquisadores do IPCC mobilizados para o AR4? Ele tem um doutorado em física pela Universidade de Oxford, informa a orelha do livro; "atualmente, é analista de mercado sênior de materiais ecológicos e processos industriais".
Não basta um doutorado em física para credenciar-se a demolir o IPCC. Alexander apenas domina os códigos básicos das ciências naturais para arvorar-se em vulgarizador das objeções disparadas contra a noção de aquecimento global antropogênico (causado pelo homem), em nome da liberdade empresarial, por figurões como Frederick Seitz, William Nierenberg, Robert Jastrow, Patrick Michaels e Siegfried Fred Singer, desde que se começou a falar em mudança do clima, na década de 1970, e o IPCC surgiu, em 1988.

DÚVIDAS Para conhecer o que move essa turma, é imprescindível ler "Merchants of Doubt" [Mercadores da Dúvida, Bloomsbury Press, 2010, 368 págs., U$ 27, R$ 46], de Naomi Oreskes e Erik M. Conway.
É espantoso constatar que Fred Seitz e Fred Singer, dois dos mais vociferantes críticos do aquecimento global, estão há muito tempo no negócio de lançar dúvidas sobre qualquer ramo de investigação científica que possa prejudicar a indústria. Eles abominam todo tipo de regulamentação para mitigar efeitos não pretendidos do capitalismo sobre o ambiente e a saúde humana.
Os dois Fred são físicos, mas não especialistas em clima, como tampouco o são Alexander e José Carlos Azevedo, o mais ativo cético brasileiro, morto em fevereiro deste ano (Singer, especialista em foguetes e satélites, é o que chega mais perto disso). Formados no auge da Guerra Fria, ocuparam posições de algum destaque na administração republicana de Ronald Reagan (1981-89). Defenderam a Iniciativa de Defesa Estratégica, uma fantasiosa "Guerra nas Estrelas" projetada para anular com armas orbitais o poderio nuclear soviético, se utilizado. Participaram da fundação de "think tanks" conservadores de Washington, como o Instituto George C. Marshall.
De 1979 a 1985, Seitz dirigiu um programa para a empresa de cigarros R.J. Reynolds, dotado com US$ 45 milhões para financiar pesquisadores dispostos a encontrar evidências que exonerassem o produto de danos à saúde humana, ou que pelo menos pusessem em dúvida estudos indicando o contrário. Em meados da década de 1990, já no debate sobre fumo passivo, Singer ajudou a preparar um relatório descascando a agência ambiental americana (EPA) por suas conclusões sobre o risco.
Coordenando os esforços estava a firma de relações públicas Hill and Knowlton. Seu fundador e presidente, John Hill, havia traçado a estratégia diversionista, já em 1953, que faria escola: "As dúvidas científicas precisam continuar".
Não foi outra a estratégia -desacreditar pesquisas- empregada num longo rol de controvérsias: fumo passivo, chuva ácida, buraco de ozônio, DDT, inverno nuclear, aquecimento global... Um grande aliado nessa empreitada, narram Oreskes e Conway, foi a imprensa, em especial órgãos de orientação conservadora ou pró-empresarial, como o diário "Wall Street Journal".

CONTRADITÓRIO Seitz, Singer e seus seguidores cevavam repórteres ávidos por visões contraditórias. Em casos extremos, ameaçavam editores com a Fairness Doctrine (doutrina do equilíbrio), que fixava em lei a obrigação de emissoras darem espaço equivalente para visões opostas. Até contra o Prêmio Nobel Singer se levantou, e bem antes de 2007, quando Al Gore e o IPCC receberam a láurea da Paz: já em 1995, quando o inimigo Frank Sherwood Rowland foi agraciado em Química -com Mario Molina e Paul Crutzen- por seu trabalho sobre a destruição da camada de ozônio.
O grupo "cético" costuma se apresentar como vítima de um suposto consenso fraudulento a favor do aquecimento global, da limitação da liberdade empresarial e de um governo mundial sob controle da ONU. Não há meios nem recursos ilícitos, para eles, quando o objetivo é defender a indústria diante do Estado. Se for preciso destruir a credibilidade da ciência e de cientistas, que seja.
Patrick Michaels vive de atacar o IPCC, mas omite que chegou a ser convidado para participar do painel e declinou, conta o livro. Fred Singer enrolou um quase moribundo Roger Revelle, mentor de Al Gore, na autoria de um artigo contra o aquecimento global.
James Hansen comeu o pão que o diabo amassou, na Nasa, durante o governo George W. Bush (2001-09). Phil Jones, pivô do caso Climagate (vazamento de mensagens comprometedoras de e-mail), chegou a contemplar o suicídio. Não há trincheira nem trégua, na guerra dos "céticos".

VERDADES A história mostra claramente, escrevem Oreskes e Conway, que a ciência não pode fornecer certezas nem provas, quando muito o consenso de especialistas baseado na acumulação e no escrutínio organizado das evidências. Apesar dessa visão mais matizada, oposta no livro à certeza que os "céticos", paradoxalmente, vivem a exigir da ciência do clima, a dupla, composta por uma historiadora e um jornalista, parte do suposto de que exista uma verdade científica (ainda que apenas consensual) e que ela foi obscurecida -como afirma o subtítulo da obra- por um punhado de cientistas motivados ideologicamente e bem organizados.
A descrição da campanha contra o aquecimento global é boa e bem documentada, mas deixa algo a desejar como análise do fenômeno "cético" e de sua relativa popularidade, sobretudo num país como os EUA. Um pouco mais longe consegue avançar "Environmental Skepticism" [Ceticismo Ambiental, Ashgate, 2009, 234 págs., £ 55, R$ 143], de Peter J. Jacques.
Jacques entende que, ao privilegiar o terreno do que chama de "cientismo" para combater os "céticos", os defensores do aquecimento global lhes oferecem uma vitória antecipada. Para os negacionistas, tudo se resume a prolongar o discurso de ponto e contraponto, ponto e contraponto, adiando indefinidamente qualquer conclusão que possa servir como base para a ação conjunta. "Empregar o cientismo como um martelo contra o parafuso do ceticismo reduzirá a madeira da vida pública a cavacos."
No cerne do contramovimento se encontra, para Jacques, um antropocentrismo arraigado, que encara a natureza como mero insumo para a engenhosidade humana. Partindo de Riley Dunlap, seu mestre, Jacques localiza esse valor de cunho iluminista na base de um "paradigma social dominante", com seus sete pilares: limitação do governo, apoio à livre empresa, devoção ao direito de propriedade, ênfase no individualismo, terror diante do planejamento, fé na ciência e na tecnologia e confiança na abundância futura.

MITOS O problema é que não há nada de errado com esse paradigma -enquanto visão de mundo. Pode-se discordar dela, mas não provar que esteja errada. Na melhor hipótese, existem indicações convincentes de que o sistema ecológico planetário não suportará por tempo indefinido a expansão continuada do consumo de recursos naturais nela pressuposta.
Estamos, aqui, no campo dos valores, não dos fatos. Tal admissão só se encontra, sem meias palavras, noutro livro surpreendente, "Why We Disagree about Climate Change [Por que Discordamos sobre Mudança do Clima, Cambridge University Press, 2009, 432 págs., £ 16,99, R$ 44], de Mike Hulme.
Hulme, ele sim, é um pesquisador atuante na área. Trabalhou na Unidade de Pesquisa do Clima da Universidade de East Anglia - epicentro britânico do Climagate - e dirigiu por sete anos o Centro Tyndall de estudos interdisciplinares sobre aquecimento global, no Reino Unido. Seu relato, um arrazoado sobre as guerras do clima, surpreende porque, sem negar as constatações científicas que ajudou a inscrever nos relatórios do IPCC, Hulme não poupa ceticismo (no bom sentido) diante de correligionários, pondo-se a examinar criticamente seus pressupostos, como um bom cientista social.

CATASTROFISMO Um dos alvos favoritos de Hulme é o catastrofismo de seus pares nas mensagens sobre o aquecimento global. Mais que uma questão física, o aquecimento global tornou-se, em sua óptica, uma questão social e política complexa demais, que não comporta uma resposta simples e mágica como aparenta ser a mera redução de emissões de gases do efeito estufa. É o tipo do problema "enroscado" ("wicked"), para o qual só se obtêm soluções "canhestras" ("clumsy").
O retrospecto desanimador da negociação internacional sobre emissões, do Rio e Kyoto a Copenhague e Cancún, só lhe dá razão. O Protocolo de Kyoto (1997) mandava reduzir em 5% os gases estufa de nações desenvolvidas até 2012. Desde então, as emissões globais subiram 16%.
Enquadrar a mudança do clima como uma ameaça cataclísmica para a qual só a ciência teria remédio é condenar o debate ao impasse, por tentar silenciar vozes opostas (por mesquinhas e sibilantes que sejam). Hulme propõe examinar as narrativas e mitologias embutidas na questão do aquecimento global, de maneira a aliviá-la das camadas de expectativas que sobre ela se foram acumulando, até torná-la intratável.
Ele defende que a análise comece por separar os quatro mitos, no sentido não pejorativo de narrativas organizadoras, que vê enfeixados no problema do clima, com raízes em "instintos" humanos básicos -respectivamente, nostalgia, medo, orgulho e justiça:

Perda do Éden - O clima visto como símbolo da natureza intocada, algo a ser protegido ou "salvo";

Iminência do apocalipse - Tendência a encarar o aquecimento global como o principal problema do mundo;

Construção de Babel - Fé nos poderes da ciência e da tecnologia para criar soluções de geoengenharia e manipular o clima;

Celebração do jubileu - Identificar um acordo internacional sobre emissões com a redenção de todos os pecados e dívidas, como recomenda a Torá que se faça de 50 em 50 anos.

FRESCOR A moldura metafórica de Hulme para interpretar o falatório sobre mudança do clima causa certo estranhamento, mas traz algum frescor ao debate. É raro encontrar um discurso sobre aquecimento global, "cético" ou não, que escape de um desses estilos narrativos. Reconhecê-los, assim como suas limitações, pode abrir um espaço de tolerância e sensatez hoje desaparecido.
A mudança do clima demanda que focalizemos as implicações de longo prazo derivadas de nossas escolhas de curto prazo, que reconheçamos o alcance global de nossas ações e que fiquemos alertas tanto para as realidades materiais quanto para os valores culturais, recomenda Hulme. As construções mais criativas a partir da noção de aquecimento global, defende, podem até mesmo ser prejudicadas pela busca obtusa de um acordo do tipo panaceia: "Elas vicejam em condições de pluralismo e esperança, mais do que em condições de universalismo e medo".
Mito por mito, os ianomâmis também adaptaram os seus para conceitualizar a mudança do clima. Preocupados com as mudanças sutis que observam na "casa-floresta" (Urihi) que habitam na fronteira entre Brasil e Venezuela, dedicaram ao tema um dia inteiro da assembleia geral da Hutukara Associação Yanomami realizada três semanas antes de Cancún.

QUEDA DO CÉU "A Terra está esquentando, e eventos como furacões estão mais frequentes porque os 'napë pë' [brancos] estão mexendo com seres perigosos, como aqueles que vivem debaixo da terra, quando são extraídos minérios e petróleo", afirmou, na ocasião, durante a assembleia, Luixi Yanomami, pajé da aldeia Piaú. "E perigosa também é a poluição do céu, que é frágil e passível de desabar sobre nossas cabeças."
Só os pajés (ou xamãs), dançando com os "xapiri" (espíritos), conseguem conversar e apaziguar os seres capazes de evitar uma segunda queda do céu, como a que deu origem à Terra atual (Hutukara), aos ianomâmis e aos "napë".
É mais uma narrativa. Pode não ser verdadeira, mas é bem apanhada: sem pacificar os fantasmas na arena do clima, vamos acabar todos dançando conforme a sua música. Cancún é só o último baile. Nada se resolverá, mas sairão todos com a consciência tranquila de que uma vez mais foram impedidos de salvar o mundo.


Nota
O repórter especial da Folha Marcelo Leite viajou ao Peru a convite da Oxfam International.


Empresa de relações públicas traçou em 1953, para combater associação entre tabaco e câncer, a estratégia da indústria contra problemas ambientais: as dúvidas científicas precisam continuar

Não falta gente disposta a acreditar que uma conspiração de burocratas, pesquisadores e jornalistas esteja por trás dos relatórios do IPCC sobre o inequívoco aquecimento global

Um dos alvos preferidos de Mike Hulme, pesquisador do clima, é o catastrofismo de seus pares na apresentação de mensagens sobre o aquecimento global causado por atividades humanas


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