São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2010

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"Sou quase obcecado pela prova"

LEIA A ENTREVISTA que o historiador Carlo Ginzburg concedeu por telefone ao colaborador da Ilustríssima Bernardo Carvalho, às vésperas de embarcar para o Brasil.

Folha - O que o levou a Piero della Francesca?
Carlo Ginzburg - Descobri "A Flagelacão de Cristo" em 1953, quando tinha 14 anos. Foi uma revelação. A ideia de escrever o livro não foi tão óbvia. Eu já tinha começado a trabalhar na pesquisa sobre o sabá, que acabou resultando no livro "História Noturna" [Companhia das Letras, trad. Nilson Moulin]. Só que não estava conseguindo dar sentido ao que estava fazendo. De repente, entendi que se tratava de uma abordagem morfológica da história. E a minha digressão por Piero passava justamente por esse mesmo problema, pela relação entre morfologia e história! Eu me concentrava em dados históricos, como a iconografia e as encomendas das obras, para aí confrontar as análises estilísticas do trabalho dele. Foi um parêntese inconsciente na minha trajetória.

Um dos elementos que definem o seu projeto de micro-história é o interesse pelas anomalias. Qual é a anomalia no caso de Piero della Francesca?
Há várias anomalias. Em primeiro lugar, Piero era visto como um inovador. O uso que ele fazia da perspectiva era inédito. Anacronicamente falando, era um pintor de vanguarda. A ideia era pôr Piero no contexto histórico, sem perder a anomalia. A anomalia contribui com um ponto de vista mais interessante, porque subentende a norma.

O sr. se interessa por arte contemporânea?
Não tenho muito interesse pela pintura contemporânea. Mas me interesso pelos monumentos contemporâneos que propõem uma espécie de abordagem não monumental da arte monumental.

O sr. está falando de escultura, arquitetura?
Por exemplo, o monumento aos veteranos do Vietnã, em Washington. Ou o monumento diante da Universidade Humboldt, em Berlim [uma janela de vidro na calçada, que permite ao pedestre ver o subsolo da praça onde os nazistas queimaram milhares de livros em 1933]. É muito poderoso. São exercícios conceituais que me parecem a contribuição mais interessante da arte contemporânea.

O sr. menciona os "limites da prova" no livro sobre Piero. Qual é a parte da ficção e da imaginação no trabalho do historiador?
Aprendi muito com a ficção, mas me oponho radicalmente a essa moda contemporânea de borrar a distinção entre ficção e história. Sou quase obcecado pela prova. Acho que tenho que provar o máximo possível. Muitas vezes não é possível, mas o trabalho está lá. Acho que isso está relacionado à audácia das hipóteses. Já que são audaciosas, precisam ser provadas.

O sr. também fala em "contar a história", em vez de apenas reconstruí-la. Qual a importância da narrativa no seu trabalho?
Toda história compreende uma narrativa. Não é novidade. Mas há diversas formas de narrativa. A relação entre ficção e história sempre foi contenciosa no que se refere à realidade. É óbvio que aprendi muito com romancistas, mas a ideia é usar a técnica narrativa para revelar elementos que são da realidade.

Há hoje uma demanda do público e do mercado editorial por um efeito de realidade, por livros "baseados em histórias reais", biografias, autobiografias, romances históricos. Que lugar resta para a história propriamente dita quando a ficção passa a obedecer a padrões típicos da pesquisa histórica?
Estamos cercados de vida e de ficção. E tentamos testar as provas. A relação entre esses elementos não é importante apenas para os historiadores, mas para todos nós. Poderíamos dizer que essa sede de realidade que menciona é uma reação à inflação da ficção.

O sr. já escreveu sobre Tolstói, Calvino e Queneau, entre outros. O conceito de micro-história está mais próximo do primeiro ou do tipo de literatura que os dois últimos produziram?
Tolstói foi uma grande influência. Mas também aprendi muito com Calvino, como escritor e como pessoa. Sempre gostei muito do que ele escrevia. Também do que escrevia Queneau, através das traduções de Calvino. Proust também é uma grande fonte de inspiração. Mas a ideia não é macaquear os procedimentos, e sim aprender com eles, porque há a interação com as provas. Há múltiplos constrangimentos relacionados com as provas.

E Borges?
Não diria que Borges tenha me influenciado. Mas agora estou escrevendo um ensaio sobre ele.

É sobre isso que vai falar no Brasil?
Não. Vou falar sobre a história na era do Google. Prefiro não dizer mais nada por enquanto. Será uma surpresa.

O sr. lê ficção contemporânea?
Muito pouco. Para mim, a grande decepção foi o cinema. Os filmes, que eram tão bons no passado, hoje são horríveis. Talvez haja filmes muito bons por aí, mas perdi o interesse. É esse o paradigma da minha decepção com a arte contemporânea.

O sr. já definiu a micro-história, entre outras coisas, pela sua perspectiva não teleológica. Ao mesmo tempo, reconheceu em Erich Auerbach, autor de "Mimesis", um dos seus mestres. O sr. não vê uma perspectiva teleológica em Auerbach, justamente na ideia de que a literatura progride na direção de uma representação sempre mais realista da realidade, como se houvesse uma exigência natural?
Se você ler as últimas páginas de "Mimesis" e o ensaio dele sobre "Filologia da literatura mundial" [publicado em "Ensaios de Literatura Ocidental", Editora 34, trad. Samuel Titan Jr. e José Marcos M. de Macedo], de 1952, vai ver que se trata de uma teleologia negativa, porque o mundo no qual Auerbach está inserido é de homogeneização cultural, que ele via como algo profundamente negativo. Mesmo havendo essa trajetória rumo a Proust e Virginia Woolf, no final das contas ele estava cercado não somente de guerra e perseguição, mas também por essa situação que ele descreve em 1952 e que já é globalizada. É um ensaio sobre a globalização, em relação à qual ele é muito cético. Ele reclama do perigo da perda das especificidades e do fato de os Estados nacionais já não serem agentes das especificidades. As últimas páginas de "Mimesis" apontam para um amanhecer sombrio.

Seu livro "Nenhuma Ilha é uma Ilha" [Companhia das Letras, trad. Samuel Titan Jr.] trata das conexões entre a literatura britânica e o continente. Hoje, a literatura anglo-saxã é cada vez mais insular e impermeável às influências externas. Como o sr., que vem de um meio literário e de uma tradição continental, vê esse fenômeno?
Me pergunto se isso não tem a ver com uma reação ao fato de o inglês ter se tornado uma língua global. É um fenômeno econômico. Tornar-se insular não é necessariamente ruim. Pode ser uma maneira de recuperar uma espécie de idioma local diante do fenômeno do inglês ter se tornado uma língua global, mas potencialmente anônima.

Pode ser também uma maneira de impor o modelo da matriz.
Entendo. Mas as intenções são basicamente irrelevantes. Mesmo com uma ideologia ruim, você pode escrever um bom romance.

Aprendimuito com a ficção, mas me oponho radicalmente a essa moda contemporânea de borrar a distinção entre a ficção e história"


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