São Paulo, domingo, 29 de maio de 2011

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TEATRO

O código Shakespeare

O autor de "Hamlet", da promessa à consagração

RESUMO
Crítico americano busca em referências políticas, sociais e culturais do ano de 1599 as marcas históricas de uma guinada na vida e na obra de William Shakespeare, que passa de talento promissor a mestre do teatro. Edição de uma versão popular de "Hamlet", escrita na mesma época, registra essa virada na vida do dramaturgo.


ANDRÉ CONTI

NO NONO EPISÓDIO de "Ulisses", Stephen Dedalus, um dos protagonistas do romance de James Joyce, expõe a um grupo de literatos sua teoria sobre "Hamlet". Como diz um amigo dele, Dedalus busca "provar por álgebra que o neto de Hamlet é o avô de Shakespeare e que ele próprio é o fantasma do próprio pai".
A teoria se apoia numa série de especulações biográficas, como a noção de que Anne Hathaway -a viúva a quem Shakespeare legou sua "segunda melhor cama" no testamento- era adúltera. Dedalus não convence os ouvintes. "Discussões do baixo clero sobre a historicidade de Jesus", dispensa um deles.
A suposição de que Anne Hathaway era adúltera aparece em diversas biografias a partir do século 18. Shakespeare teria lhe deixado a segunda cama porque a primeira caberia aos amantes dela. Mas os argumentos contrários são igualmente fortes: como viúva, Anne tinha direito a um terço de todos os bens de Shakespeare, de modo que a cama poderia ser um gracejo particular entre os dois.
Anne tinha 26 anos quando eles se casaram e estava grávida, o que em geral é apontado como indício de um enlace forçado. Outros biógrafos, porém, argumentam que ela, vinda de uma família rica e sem intenção de acompanhar Shakespeare na mudança de Stratford para Londres, seria a mulher ideal para um jovem de 18 anos.

FICÇÕES NECESSÁRIAS As biografias convencionais de Shakespeare, segundo o acadêmico americano James Shapiro, são "ficções necessárias". Para o autor do recém-lançado no Brasil "1599 - Um Ano na Vida de William Shakespeare" [trad. Cordelia Magalhães e Marcelo Musa Cavallari, Planeta, 432 págs., R$ 44,90], "elas revelam menos sobre a vida de Shakespeare do que sobre as fantasias de quem desejamos que ele tenha sido".
Há tantos bardos -o burocrata, o festeiro, o litigioso, o apaixonado- que, como aponta um de seus biógrafos modernos, "é espantoso que ele tenha encontrado tempo para escrever". Cada geração de críticos parece criar um Shakespeare à imagem de sua época, que, embora sirva de baliza a uma série de teorias e especulações, pouco revela sobre o homem e seu tempo.
Shapiro dedicou-se à "questão da autoria" em "Contested Will - Who Wrote Shakespeare?", lançado no ano passado no Reino Unido. O estudo procura menos cravar "quem" ele foi do que refletir sobre as especulações e teorias da conspiração sobre sua identidade, muitas vezes fomentadas por autores respeitáveis como Sigmund Freud (para quem o dramaturgo seria, na verdade, francês: "Shakespeare" era uma corruptela de "Jacques Pierre") ou Mark Twain.
Em "1599", Shapiro elege um ano na vida de Shakespeare e o investiga por meio de lentes políticas, históricas e literárias. O procedimento libera Shapiro das teorias totalizantes e permite que se concentre numa questão: como o autor de "Romeu e Julieta", "Tito Andrônico" e "Ricardo 2º", um "jovem promissor", na ironia que corria à época, vira o criador genial de "Hamlet", "Macbeth" e "Rei Lear"? Naquele ano, Shakespeare terminou "Henrique 5º", escreveu "Júlio César" e "Como Gostais", e teria esboçado o primeiro rascunho de "Hamlet". Ainda construiu seu teatro, o Globe, e perdeu (ou demitiu) William Kemp, um dos atores principais de sua companhia.

ESTILO Segundo Shapiro, é também o ano em que ocorre uma mudança estilística importante. Agora sócio da companhia que encenava suas peças -e também ator-, Shakespeare tinha mais autonomia sobre o texto final do que outros dramaturgos contemporâneos. No teatro elisabetano, ao ser adquirida por uma companhia, a peça podia ser alterada, encurtada e mexida de acordo com a ocasião.
É certo que, de sua posição privilegiada, Shakespeare garantia que suas peças fossem encenadas da maneira adequada e podia supervisionar pessoalmente as eventuais mudanças. Livre dos contratos de arrendamento e sócio de seu próprio teatro, ele poderia conduzir sua obra a outros caminhos. O discurso de Henrique 5º no campo de Argincourt soava novo aos espectadores da época, e os solilóquios de Brutus, protagonista de "Júlio César", também.
Devido à escassez de registros do período elisabetano, construiu-se o mito de que sabemos pouco sobre Shakespeare.
Um homem nasce em Stratford, casa-se, tem filhos, vai a Londres tentar a carreira de ator. Começa a colaborar em alguns roteiros, faz sucesso como dramaturgo, monta uma companhia de prestígio. Levemente enriquecido, volta a Stratford, se aposenta e morre. Por muito tempo, essa foi a versão oficial.
Na falta de dados concretos, os críticos voltavam-se às obras, tratando-as como se tivessem sido escritas fora de seu tempo, "de outro planeta", como disse Coleridge. O que Shapiro e outros críticos de hoje mostram é que a obra de Shakespeare está profundamente cravada em seu tempo, por mais que extrapole as questões locais e seja tão universal.

GOLPE LITERÁRIO Ainda assim, para muita gente é impossível aceitar que o dramaturgo-símbolo do teatro tenha deixado tão poucos registros. O mais provável, claro, é que ele nunca tenha existido. Francis Bacon, Christopher Marlowe e a própria rainha Elisabeth já foram acusados de perpetrar o maior golpe literário de todos os tempos.
Cronologicamente, o último suspeito é Edward de Vere, o conde de Oxford. Os "oxfordianos", como são chamados os adeptos dessa teoria, se referem a Shakespeare apenas como "o homem de Stratford". Por trás das teorias conspiratórias, paira um esnobismo acadêmico.
De que maneira o filho de um luveiro, um homem pouco instruído, poderia conhecer tão bem o funcionamento da corte inglesa? Ou descrever a Itália que aparece em "Muito Barulho por Nada"? Só um aristocrata sensível e culto seria capaz de tal feito.
Na realidade, a vida de Shakespeare está razoavelmente documentada para um homem do início do século 17. Quase 50 documentos com seu nome sobreviveram -o testamento, os registros de pequenas disputas legais, a ocasião em que ele foi testemunha, o pedido para ter um brasão de família.
O problema é que esses documentos, obviamente, não dizem nada sobre quem ele foi, sobre suas inclinações políticas, temperamento, caráter, preferências estéticas, eróticas, culinárias, motivações, desejos. Se ele não guardou diários e cartas, é porque o hábito era quase desconhecido na Inglaterra elisabetana, e não porque quisesse se preservar.

SOCIEDADE Na falta de dados mais concretos, Shapiro procura entender como funcionava a sociedade em torno do bardo, para só então apontar as mudanças que vinham ocorrendo tanto em sua obra como na vida inglesa. As próprias relações familiares de Shakespeare, que os biógrafos cuidaram de romantizar nos últimos 400 anos, são questionadas.
Num tempo em que a mortalidade infantil era altíssima e em que a expectativa de vida ficava na casa dos 40 anos, é provável que essas ligações afetivas fossem mais tênues. É comum dizer que Shakespeare escreveu "Hamlet" em homenagem ao filho Hamnet, morto aos 11, mas não há provas de que isso seja verdade.
A produção de Shakespeare em 1599 indica que ele estava preocupado em criar um repertório para o novo teatro. As duas partes de "Henrique 4º" haviam feito sucesso, tanto na corte como entre o público. Falstaff, o cavaleiro bufão vivido no palco por William Kemp (e escrito com o ator em mente), falava diretamente àquela plateia, com suas danças e improvisos.
O teatro era um divertimento popular, e Shapiro aponta que aquela era a "plateia mais experiente da história". Cerca de um terço da população assistia a ao menos uma peça por mês, e as companhias alternavam seus velhos êxitos com obras compradas ou escritas pelos dramaturgos da casa.
Falstaff também caiu nas graças da corte: biógrafos apontam que Shakespeare o teria incluído em "As Alegres Comadres de Windsor" para agradar a rainha. Mas "Henrique 4º" era popular entre os nobres pois estava repleta de alusões e anedotas sobre a política corrente, e muitas vezes sua trama esbarrava em acontecimentos recentes, embora fosse ambientada quase 200 anos antes.

CONTEXTO Todos conheciam aquelas histórias, já que as fontes de Shakespeare não eram exatamente originais. O que lhe importava, parece, era inserir a trama -qualquer trama, de Júlio César a Cleópatra ou a Timão de Atenas- num contexto atual, que falasse da realidade da sua plateia, fossem quais fossem a plateia e a realidade. Por isso suas obras, mesmo quando estão sendo específicas, têm um apelo tão abrangente.
E, pelo mesmo motivo, elas parecem acomodar tantas interpretações e teorias. Não é preciso entender as piscadelas à corte elisabetana para apreciar "Henrique 4º". A realidade de cada leitor oferece as ferramentas necessárias. Que isso pareça tão deliberado quanto espontâneo, tão desprovido de esforço quanto certeiro no método, toda explicação deve ser atribuída, naturalmente, à parcela indecifrável do gênio do autor.
Mas ele conhecia muito bem sua plateia e, quando começou a escrever "Henrique 5º", sabia que Falstaff e Kemp eram esperados de volta. A peça, que ficou pouquíssimo tempo em cartaz, até para os padrões elisabetanos, matava Falstaff fora de cena e transformava uma história fácil de heroísmo nacionalista numa trama amarga sobre a guerra e o poder.
A quadra política era de instabilidade. A rainha, que não tinha herdeiros, chegava aos 70 anos, 40 deles no trono, e seu poder começava a enfraquecer. Conforme a rebelião na Irlanda contra o mando inglês atingia um momento crítico, Elisabeth se viu engalfinhada numa disputa com Robert Devereux, o conde de Essex. O "preferido da rainha", como era conhecido, iniciava sua campanha para conter os rebeldes e, num período de três anos, cairia em desgraça e seria executado como traidor.
"Henrique 5º" foi escrita nesse momento de turbulência. Shapiro, ao reconstruir todo o contexto da revolta irlandesa, mostra como a peça teria sido compreendida por uma plateia da época.

INVISÍVEL Difícil acreditar que Shakespeare escreveu "Henrique 5º" alheio aos acontecimentos daquele ano, e a ambiguidade da peça demonstra isso. Ainda assim, em meio a tantas referências e paralelos, é impossível depreender a posição do próprio Shakespeare, naquela situação política e em qualquer outra. Ao permanecer politicamente invisível no texto, e ao mesmo tempo traçar um retrato tão moderno do poder, ele permitiu que gerações seguintes continuassem adaptando suas peças ao sabor da época.
A crítica Pauline Kael aponta como, na adaptação de Laurence Olivier para o cinema, nos anos 1940, "Henrique 5º" parece enaltecer os esforços britânicos na Segunda Guerra Mundial (1939-45): o substrato do filme é a resistência patriótica, tratada como heroísmo. Já na versão de Kenneth Branagh, de 1989, cujo contexto é o da retomada das ilhas Malvinas pela Inglaterra imperialista, transparece o horror do combate, a sujeira e o sangue: o substrato, agora, é a manutenção do poder neocolonial.

HAMLET No outono de 1599, Shakespeare teria começado a esboçar a primeira versão de "Hamlet". A fonte seria uma peça hoje perdida, escrita por Christopher Marlowe, Thomas Kyd ou pelo próprio Shakespeare, cerca de dez anos antes, que por sua vez se inspirava numa série de lendas e outros registros. Não se sabe o quanto da trama original ele aproveitou, mas já nesse primeiro tratamento, que felizmente sobreviveu, é notável o avanço em relação às obras anteriores.
Se os monólogos de Brutus, escritos naquele mesmo ano, apontavam para uma mudança na percepção de mundo do autor, os solilóquios de Hamlet abriam caminho para um tipo novo de expressão. Como afirma Shapiro, Shakespeare parece entender que seu mundo está mudando, e de certa forma o texto vai antecipar o ritmo dessa mudança.
Não por acaso, poucos anos antes Londres recebera as primeiras traduções para o inglês dos "Ensaios" de Montaigne (1533-92). É provável que Shakespeare, um leitor curioso e amigo de John Florio, tradutor de Montaigne, tenha tido acesso a um exemplar dos "Ensaios". Aquele gênero novo, misto de tratado com depoimento pessoal, também captara algo da mudança de mentalidade.
Montaigne escrevia para si, sobre si, na mesma voz com que Hamlet indagava sobre si nos corredores de Elsinore. "Hamlet" não é uma peça excepcional por sua trama, e diversos críticos, entre eles Tolstói e T.S. Eliot, apontaram lacunas e contradições na história. "Hamlet" é excepcional porque capta uma fagulha, um momento, e o expande em todas as direções.

VERSÕES Mas Shakespeare ainda voltaria ao texto de "Hamlet" antes de apresentá-lo à companhia. A segunda versão, que seria "oficializada" em 1623, quando a obra póstuma do bardo foi publicada em um volume, é a maior peça que ele escreveu. Como as encenações no Globe começavam às 14h e dependiam da luz do dia, era impossível apresentar "Hamlet" na íntegra, de modo que uma versão resumida foi criada. A peça resultou num sucesso estrondoso: permaneceu em cartaz por anos. Parte da companhia também saiu em turnê pelo interior, e uma terceira versão, ainda mais curta, surgiu.
Esses dois roteiros resumidos se perderam, e pouco sabemos de como a peça era encenada no século 17. Mas quando o público exigiu uma versão impressa de "Hamlet", membros dessa trupe itinerante teriam produzido uma versão pirata do texto, de memória. É o chamado "Quarto de 1603", que sai agora em excelente tradução de José Roberto O'Shea, "O Primeiro Hamlet - In-Quarto de 1603" [Hedra, 184 págs., R$ 19].
Os "quartos" (ou "in-quartos") eram volumes mais baratos, de tamanho reduzido, em oposição aos imensos "fólios" (ou "in-fólios"), dedicados normalmente a obras "sérias". O texto, com a metade do tamanho do original, é um vislumbre de como, mesmo na época, as peças de Shakespeare eram maleáveis e adaptáveis ao gosto do público (e às capacidades da trupe).
O que se apresenta ali é um "Hamlet" muito menos reflexivo e muito mais veloz. Uma peça que nunca teria dado origem à grande tradição do solilóquio shakespeariano, mas que funciona melhor como "ação" dramática acelerada, em um tempo muito mais reduzido de apresentação.
Em resposta, a companhia de Shakespeare publicou sua própria versão de "Hamlet", curiosamente baseada no primeiro texto, mais sombrio, de Shakespeare. Depois que ele morreu, a segunda versão, provavelmente a preferida pelo autor, foi incluída em sua obra completa. Isso fez com que editores do século 18 em diante passassem a montar um texto único, com elementos de ambos esses "Hamlets", e a tradição perdurou.
As editoras acadêmicas costumam oferecer as duas versões anotadas. E, no confronto desses textos, surge um raro vislumbre do método de Shakespeare. Suas peças não nascem do ar, não foram escritas num jorro.
Ele corta personagens, inverte cenas, muda nomes, se arrepende, volta atrás. Deixa penduricalhos e diálogos soltos. Não resolve tramas. Recorre a soluções fáceis, mas de impacto imediato no público.
O esforço pode não estar aparente na peça, mas faz parte dela. É dessa certa aspereza que o Hamlet personagem pode surgir, representando e estabelecendo um novo tempo.

Cada geração de críticos parece criar um Shakespeare à imagem de sua época, que pouco revela sobre o homem e seu tempo

O que Shapiro e outros críticos de hoje mostram é que a obra de Shakespeare está profundamente cravada em seu tempo

Shapiro aponta que aquela era a "plateia mais experiente da história". Cerca de um terço da população assistia a ao menos uma peça por mês

Quando o público exigiu uma versão impressa de "Hamlet", membros dessa trupe itinerante teriam produzido uma versão pirata do texto, de memória

Como afirma Shapiro, Shakespeare parece entender que seu mundo está mudando, e de certa forma o texto vai antecipar o ritmo dessa mudança


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