São Paulo, domingo, 29 de maio de 2011

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IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Acidente de trânsito sem vítimas

ALEXANDRE VIDAL PORTO

"INCOMODA SE EU SENTAR no banco da frente? Estou indo ali para a João Cachoeira, quase esquina com a Nove de Julho, sabe onde é?
O senhor me desculpe, mas eu estou precisando desabafar. Se não quiser, nem preste atenção nas loucuras que eu vou falar. O senhor está vendo que eu sou um cara normal. Lá em casa, sempre fiz tudo direitinho. Até participar de Encontro de Casais com Cristo eu participei.
Sempre gostei mais de sexo do que ela. Desde o começo do casamento, já dava para notar. Muitos casais são assim, o senhor sabe. Eu já estava até conformado com a ideia de passar a vida me trancando em banheiros, olhando fotos de gente que eu nunca encontraria, lendo histórias que nunca aconteceriam comigo.
Mas, um dia, minhas fantasias venceram a minha força de vontade. O senhor sabe como é a cabeça da gente, não dá para controlar. Eu tentei resistir, mas a resistência tinha prazo de validade. Era só uma questão de tempo. A partir de certo ponto, não consegui mais me segurar.
Logo no primeiro encontro fora do casamento, entendi que a minha vida sexual era uma porcaria. Parecia que eu tinha passado a vida toda vendo o mundo numa telinha pequena de TV, daquelas de portaria de prédio, com um bombril na ponta da antena para melhorar a recepção ruim. Sabe como é? E de repente, lá estava eu: vendo o mundo em uma TV gigante de 200 polegadas. Me senti diante de uma tela de cinema. Aí não teve mais jeito. Descobri o sexo tarde. Isso é um problema, porque o corpo ficou pedindo para recuperar o tempo perdido. Esse diabo da internet me mostrou coisa que eu nunca nem tinha imaginado.
Comecei vendo foto pornô, mas hoje gosto das salas de bate-papo. É quase um vício. Entro nas salas nas noites de sexta, quando minha mulher vai dormir. Ela fica tranquila, porque eu estou esperando nossa filha caçula voltar das baladas dela, e dorme pesado. É aí que eu tenho mais segurança para ficar batendo papo e olhando sacanagem. ("Moacir é uma coruja, não dorme nada, fica até tarde mexendo na internet. Quando ele vem para a cama, eu já estou dormindo faz muito tempo.")
O apelido que eu uso nas salas é MaduroMoema. No começo do ano, conversei com um cara muito legal. O apelido dele era AstroBH. O senhor sabe, um cara assim, estável, de bom nível, formado. Trabalhava com comércio exterior. Mora em Belo Horizonte, mas vinha a São Paulo umas duas vezes por mês, a negócios. Desculpe a franqueza, mas não vou ficar com frescura com o senhor. Para mim, nestas coisas de homem com homem, beleza não conta muito, não. Eu acho mais importante ter uma aparência normal e um aspecto limpo. Concorda? Não curto caras que dão pinta. Cara com brinco? Nem pensar. Tatuagem, só se for muito discreta. Se for de fora e estiver em hotel, melhor, que é mais sigiloso.
Com esse cara, o papo rolou bem desde o começo. Primeiro, pelo Messenger, a gente teclou e trocou fotografias de rosto e de corpo. Nessa mesma noite, mais tarde, a gente conversou e fez umas sacanagenzinhas na câmera. Na última semana de março, ele veio a São Paulo, e a gente se encontrou.
Sabe aquela insegurança que dá quando a gente entra com a amante num motel? O medo de que alguém esteja passando e reconheça o carro? O senhor sabe como é, né? É parecido. Talvez seja até um pouquinho mais forte. Mas, com o tempo, a gente racionaliza. O medo passa quase completamente.
Lembro que, no dia em que encontrei esse cara, saí mais cedo do trabalho. Para não me atrasar, nem procurei vaga na rua. Fui direto ao estacionamento pago. Cruzei a recepção rápido, olhando para o chão, para não ter risco de ninguém me identificar. No elevador, senti meu coração bater mais forte. Enquanto caminhava no corredor, achava que eu era especial. Nem me ocorria que vários encontros semelhantes ao meu aconteceriam naquele dia em outros hotéis de São Paulo.
Ao vivo, ele era a mesma coisa do que na foto. Me ofereceu uma cerveja do frigobar. A excitação que a gente sentiu no vídeo se confirmou, e, na segunda cerveja, acabamos nos beijando. Aí eu não vou entrar nos detalhes com o senhor porque não vem ao caso. Basta dizer que a gente transou a tarde inteira. Até hoje me lembro.
O medo voltou no elevador. Só me senti seguro mesmo quando entrei no carro e saí do estacionamento para a rua. Disse para minha mulher que havia ido olhar um terreno em São Miguel Paulista. Tinha ficado preso na marginal por causa de um acidente de trânsito. Reclamei de dor de cabeça e fui direto para o chuveiro. Fiquei pensando no que eu tinha feito e digo para o senhor que, em geral, é melhor nem pensar muito sobre isso, porque é muito louco imaginar que você esteve pelado, tendo intimidade com alguém que nem conhece direito. E você abraça, beija, lambe, chupa. Uma maluquice.
Esse cara, por exemplo, eu nunca mais vou ver. Uma pena que perdemos o contato. Era um cara muito gente fina. Sempre penso nele. Acho que, depois de nosso encontro, ele mudou de emprego e parou de viajar a São Paulo. Uma vez, me ligou para marcar algo, mas eu não podia falar. Depois disso, nunca mais ligou.
Lá em casa, ninguém desconfia de que eu faço isso. Imagina. Destruiria o meu casamento. Sou cuidadoso, mas também não vou ficar paranoico. Afinal, as estatísticas estão a meu favor. Ninguém precisa ficar sabendo. É melhor para todo mundo, o senhor não acha? Até fui a uma psicóloga por causa desse problema, e ela me disse que eu criava uma vida dupla para me reinventar. Aí, eu falei: Doutora, não é nada disso, não. A senhora não compreendeu nada. Eu não quero me reinventar. Ao contrário: o que eu quero é me desinventar. O senhor me entende, né?
Se der para encostar ali, do lado direito, logo depois da farmácia... Olha, tá certo. Muito obrigado. Um bom dia para o senhor também."


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