São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2011

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CRÍTICA

Caleidoscópio de Boris

O "impossível" ofício do tradutor literário

PAULO HENRIQUE BRITTO

RESUMO
Autodidata que em 70 anos verteu grandes obras da ficção e da poesia russa para o português, Boris Schnaiderman expõe sua visão da tradução literária em livros de ensaios e entrevistas. A experiência com os poetas concretos, a "impossibilidade" do ofício e os recursos criativos do tradutor estão entre os temas discutidos.

DOS NOSSOS TRÊS PRINCIPAIS tradutores literários do russo -os outros dois são Paulo Bezerra e Rubens Figueiredo-, Boris Schnaiderman é o que está em atividade há mais tempo. Desde os anos 1940 vem se dedicando a traduzir algumas das mais importantes obras da literatura russa diretamente do idioma original, e não a partir de versões francesas, como era comum se fazer no Brasil até um passado recente.
Boris também lecionou na USP por muitos anos, além de publicar livros de ensaios e ficção; dois lançamentos tratam especificamente de seu trabalho de tradutor. Ambos são coletâneas -um de entrevistas concedidas por Boris, o outro de artigos de sua autoria, alguns já publicados, outros inéditos.
Como era de esperar, há um certo grau de redundância no interior de cada livro, e mais ainda entre os dois; mesmo assim, são de leitura obrigatória para todos aqueles que trabalham em tradução literária e podem ser lidos com proveito mesmo por quem não é profissional do ramo.
Nascido na Ucrânia em 1917, Boris Schnaiderman lembra-se de ter visto, na infância, a equipe de Eisenstein filmando a famosa cena da escadaria de Odessa de "Encouraçado Potemkim". Veio com a família para o Brasil ainda menino, fixando-se primeiro no Rio de Janeiro, onde se formou em agronomia, indo depois morar em São Paulo. Membro da Força Expedicionária Brasileira, lutou na Itália, experiência que lhe inspirou as memórias romanceadas de "Guerra em Surdina" (Cosac Naify). Seu trabalho de tradutor ganhou vulto a partir da publicação de uma antologia de Tchekhov em 1959, a primeira que saiu com seu nome verdadeiro -antes, como ele próprio conta, assinava suas traduções com pseudônimo, por ter consciência de que a qualidade de seu trabalho estava aquém do que ele desejava. A partir de então, traduziu diversas obras importantes da literatura russa. Mas é talvez pelo trabalho de tradução de poetas russos do século 20, em colaboração com Augusto e Haroldo de Campos, que Boris Schnaiderman se tornou mais conhecido.
O volume da coleção "Encontros" [Azougue, 246 págs., R$ 29,90] reúne um bom número de entrevistas concedidas a partir dos anos 80. A mais longa e mais substancial delas -já lançada como livro independente, pela editora Noa Noa, em Florianópolis- é habilmente conduzida por Cleber Teixeira (o editor da Noa Noa, famosa por suas belas edições artesanais) e dois professores da área de letras da Universidade Federal de Santa Catarina, Raul Antelo e Walter Carlos Costa. Nela, o assunto mais discutido é a colaboração de Boris com os irmãos Campos, que resultou numa coletânea de poemas de Maiakóvski e na famosa antologia "Poesia Russa Moderna" (1968). Nesses dois trabalhos, realizou-se com grande sucesso o projeto que Haroldo esboçara alguns anos antes, em texto apresentado num congresso literário1: a ideia de um laboratório de textos em que linguistas e poetas trabalhariam lado a lado na produção de traduções de poesia. Boris participou com seu conhecimento da língua e da poesia russas, enquanto os irmãos Campos, cujo conhecimento do idioma era pequeno, entraram com sua habilidade de tradutores de ?poesia; os dois livros gerados por essa colaboração se tornaram marcos importantes na história da tradução poética no Brasil.
Esse trabalho de equipe também é focalizado numa entrevista coletiva, realizada por J. Jota de Moraes, com Boris e os irmãos Campos. Em todos os seus depoimentos, fica patente uma das características da atuação de Boris como tradutor: seu perfeccionismo, que o leva a manifestar insatisfação com suas traduções depois de publicadas, e a revisá-las e reeditá-las sempre que pode. É o caso de "Khadji-Murát", magnífica novela tardia de Tolstói, recém-publicada pela Cosac Naify; no prefácio, Boris avisa que essa edição é a segunda reelaboração de uma tradução editada (sob pseudônimo) em 1949 e refeita em 1963.
O que leva um tradutor a querer refazer um trabalho antigo? Para compreender os princípios que balizam a prática de Boris, o melhor texto que de dispomos é a primeira seção do outro livro em questão: "Tradução, Ato Desmedido" [Perspectiva, 216 págs., R$ 30]. O texto, intitulado "Caleidoscópio de Tradutor", é um mosaico de anotações breves que abordam diferentes aspectos da atividade tradutória.
Um tema que Boris desenvolve em diversos momentos desse livro, bem como no volume de entrevistas, é a importância de respeitar a singularidade ou mesmo a estranheza da obra que se está traduzindo, resistindo à tentação de normalizá-la, normatizá-la ou -para usar o termo mais empregado hoje em dia no âmbito dos estudos da tradução- "domesticá-la". Criticando suas primeiras traduções, Boris comenta que a preo-cupação com o "escrever bem" o levava muitas vezes a falsear o original. Ora, com frequência o que torna o texto original digno de ser lido e traduzido é precisamente aquilo que constitui um desvio em relação à norma.
Num dos artigos reunidos em "Tradução, Ato Desmedido", "O Céu e o Inferno no Ato de Traduzir", Boris retoma essa discussão, citando o tradutólogo francês Antoine Berman, que destaca a tendência histórica dos tradutores franceses a descaracterizar as obras estrangeiras de modo a torná-las "palatáveis ao gosto francês", em vez de aceitar o que elas contêm de transgressivo. Uma das principais vítimas dessas domesticações radicais foi Dostoiévski, cujo estilo foi vez após vez tachado de "descuidado" ou mesmo "bárbaro" por críticos estrangeiros.
Segundo Boris, houve mesmo uma tradução francesa de "Os Irmãos Karamazov" em que "a vasta obra era transformada num pequeno romance policial, de trama bem urdida, mas sem um pouco sequer dos profundos mergulhos na problemática do homem, típicos daquele romance". O pior é que essa "tradução" francesa serviu de base para versões em outros idiomas, inclusive várias publicadas no Brasil.
No texto "Paradoxos da Profissão Impossível", Boris enfoca outro tema que lhe é caro: o fato de que o tradutor está empenhado em realizar uma tarefa que, em última análise, é impossível. A rigor, a obra que foi concebida e escrita num idioma não pode ser recriada em outro sem que ocorram perdas e distorções; além disso, "para se traduzir bem um autor, é preciso identificar-se com o original", mas "o autor da obra é um outro", e o tradutor não pode "encampar as suas idiossincrasias, os seus rancores e preconceitos". No entanto, é essa a tarefa assumida pelo tradutor; e por mais que alguns teóricos se comprazam -de modo quase masoquista, por vezes- a enfatizar que o texto traduzido não é e não pode ser, em sentido estrito, "equivalente" ao original, o fato é que traduções continuam a ser feitas e lidas com proveito, "enquanto" traduções, ou seja, como sucedâneos de um original -lidas inclusive pelos próprios teóricos da tradução que tanto problematizam a relação de equivalência entre original e tradução.
Muito mais haveria a dizer sobre esses dois livros, em que se manifestam com tanta felicidade o amor de Boris pela literatura e seu entusiasmo pela atividade de tradutor. Restrinjo-me a ressaltar uma passagem da entrevista concedida a Ademir Demarchi e Denise Helena Corá.
Quando lhe falam na "teoria do Haroldo, da transcriação", Boris retruca: "Eu prefiro simplesmente falar em tradução. [...] eu acho que isso é próprio da tradução mesmo, porque toda tradução, para ser uma tradução digna, tem que ter aquilo que o Haroldo chama de transcriação".
Quanto a isso, a meu ver, Boris tem toda a razão. Permitam-me citar o trecho de um texto que publiquei há alguns anos, sobre as esplêndidas traduções de Hopkins assinadas por Augusto: "Augusto e seus companheiros não inventaram nenhum processo novo e revolucionário no campo da tradução de poesia, e sim elevaram o nível de qualidade de seu ofício a um patamar raramente atingido antes".2
A tradução de poesia -e a tradução literária em geral- é uma arte que pode muito bem "ousar dizer o próprio nome", como diria lorde Alfred Douglas; e Boris Schnaiderman é um de seus mais destacados praticantes.


Notas
1. Posteriormente publicado com o título "Tradução, Ideologia e História" em "Território da Tradução: Remate de Males 4", 1984.
2. "Augusto de Campos como tradutor". In Süssekind, Flora, e Guimarães, Júlio Castañon (orgs.). Sobre Augusto de Campos. Rio, Fundação Casa de Rui Barbosa / 7 Letras, 2004, p. 333.

Criticando suas primeiras traduções, Boris comenta que a preocupação com o "escrever bem" o levava ?muitas vezes a falsear o original


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