São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2011

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REPORTAGEM

Cubanos por 30 dias

Dois pesoseduas medidas

RESUMO
Como desafio de passar um mês em Havana com apenas 15 dólares, o repórter norte-americano Patrick Symmes narra seu mergulho na sociedade cubana e os diversos "jeitinhos" a que precisou recorrer para obter comida, se locomover e até mesmo para destilar rum caseiro. Leia a íntegra em folha.com/ilustríssima

PATRICK SYMMES
tradução PAULO MIGLIACCI

NAS DUAS PRIMEIRAS DÉCADAS da minha vida, acho que nunca passei mais de nove horas sem comer.
Mais tarde, fiquei sujeito a períodos mais longos de fome, mas sempre voltei para casa, fui recebido com festa, comi tudo o que quis, no momento que quis, e recuperei o peso que tivesse perdido.
Além disso, segui a trajetória habitual de uma vida americana, ganhando meio quilo de peso por ano, década após década.
Quando decidi ir a Cuba e viver por um mês consumindo apenas aquilo que um cubano comum pode consumir, eu peso havia atingido quilos; nunca tinha sido tão alto.
Em Cuba, o salário médio é de US$20. Médicos chegam a ganhar US$30, e muitas outras pessoas ganham só US$10. Decidi que me concederia o salário de um jornalista cubano: US$15, a renda de um intelectual oficial.Sempre quis ser um intelectual, e US$15 representava uma vantagem significativa sobre os proletários que constroem paredes de alvenaria ou cortam cana por US$12, e quase o dobro dos US$8 da pensão de muitos aposentados.
Com esse dinheiro, eu teria de comprar minha ração básica de arroz, feijão, batata, óleo, ovos, açúcar, café e tudo o mais de que precisasse.
A primeira meia hora em solo cubano foi passada nos detectores de metais. Depois, como parte de um novo regime de vigilância que eu não havia encontrado em meus 15 anos anteriores de visita ao país, passei por um interrogatório intenso, porém amadorístico. Não era nada pessoal: todos os estrangeiros que chegaram no pequeno turbo élice vindo das Bahamas foram separados do grupo e extensamente interrogados. Como em Israel, um agente à Pais Ana me fez perguntas detalhadas, mas que não versavam sobre assuntos importantes. ("Para que cidade você vai? Onde ela fica?"). O objetivo era me provocar, revelar incoerências ou causar nervosismo. Ele não olhou minha carteira ou perguntou por que, se eu planejava passar um mês em Cuba, tinha menos de US$ ]p comigo. O olhar do agente se voltou aos demais passageiros. Eu tinha passado. "Trinta dias", eu disse à senhora que carimbou meu visto de turista.O prazo máximo.

RACIONAMENTO As primeiras pessoas com quem conversei na cidade- desconhecidos que vivem perto da casa do meu amigo_- mencionaram o sistema de racionamento.
Sem que eu perguntasse, Eles me mostraram suas cadernetas de racionamento e se queixaram bastante.
A caderneta - conhecida como "libreta"- é o documento fundamental da vida cubana. Quase nada mudou no sistema de racionamento: ainda que agora seja impressa em formato vertical, a caderneta é idêntica às emitidas anualmente durante décadas.
O que mudou foi a tinta: havia menos texto na caderneta. O número de itens era menor, e as quantidades também eram menores, menos do que em1995,a época de fome do "Período Especial".
Desde então, a economia cubana se recuperou,mas o sistema cubano de racionamento ainda não. Em 1995, o ministro do Desenvolvimento de Cuba me disse que a ração menção mensal oferecia comida suficiente para apenas 19 dias, mas previu que esse total logo subiria.
Na verdade, caiu. Ainda que hoje o volume total de alimentos disponíveis em Cuba seja mais alto e o consumo de calorias per capita também tenha crescido, isso não se deve ao racionamento. O crescimento ocorreu em mercados privatizados e hortas cooperativas, e por meio de importações maciças; a produção de alimentos pelo Estado caiu 13% no ano passado e a ração encolheu junto. A opinião geral é de que a ração mensal hoje só dá para 12 dias de comida.
A minha viagem serviria para que eu fizesse o meu próprio cálculo: como alguém pode sobreviver durante um mês com comida para apenas 12 dias?

CADERNETA Cada família recebe uma caderneta de racionamento.
As mercadorias são distribuídas numa série de mercearias (uma para laticínios e ovos, outra para "proteínas", outra para pão; a maior delas cuida dos enlatados e outros produtos embalados,de café e óleo a cigarros).
Cada loja conta Comum administrador que a nota na caderneta a quantidade de produtos retirada pela família. Os vizinhos do meu amigo -marido, mulher e neto-receberam a ração padronizada de produtos básicos, que consiste, por pessoa, em: Dois quilos de açúcar refinado Meio quilo de açúcar bruto Meio quilo de grãos Um pedaço de peixe Três pãezinhos Riram muito quando perguntei se recebiam carne de vaca.
"Frango", disse a mulher, mas isso provocou uivos de protesto: "Qual foi a última vez que recebemos frango?", o marido questionou.
"Pois então, é verdade", ela disse. "Já faz alguns meses. "A ração de "proteína" é distribuída a cada 15 dias e consiste numa carne moída de misteriosa composição, que inclui uma bela proporção de pasta de soja (se a carne for suína, a mistura recebe o falso nome de "picadillo"; se for frango, é conhecida como "puello consuerte", ou frango com sorte).
A ração basta para o equivalente a quatro hambúrgueres Por mês, mas até aquele momento, em janeiro de 2010, cada um só havia recebido um peixe-em geral,uma cavala seca e oleosa. E há os ovos. A mais confiável das fontes de proteínas, eles são conhecidos como "salva-vidas".
Antigamente, a ração era de um ovo por dia; depois, um ovo a cada dois dias; agora, é de um ovo a cada três dias. Eu teria dez deles como ração para o mês seguinte.
Meu amigo me conduziu a uma residência particular no bairro de Plaza, onde eu alugaria um apartamento por um mês- a única despesa que deixo fora de minhas contas aqui.O apartamento era espartano, em estilo cubano: dois cômodos, cadeiras sem almofadas, um fogareiro de duas bocas numa bancada e um frigobar.

MERCADO No quarto dia, saí para comprar comida, experiência ridícula. Por sorte, o apartamento que aluguei ficava perto do maior e melhor mercado de Havana, que não é nem tão grande e nem tão bom assim. O mercado era um "agro", ou seja, um sacolão.
Há quem compare esses mercados às feirinhas de produtos orgânicos norte-americanas, mas não havia conversa amistosa entre comprador e vendedor, e sim um ruidoso, lotado e barulhento corredor repleto de bancas vendendo todas o mesmo estreito elenco de produtos, a preços aprovados pelo Estado:abacaxis,berinjelas, cenouras, Pimenta verde, tomate, cenoura, iúca, alho,bananas-da-terra e não muito mais.
Numa sala separada, havia carne de porco à venda, pilhas trêmulas de carne rosada e pálida, manipulada por homens de mãos nuas. Carne era um produto além de meu alcance, embora houvesse "gordura" à venda por US1(27 pesos) o quilo.
Esperei na fila para converter todo o meu dinheiro -_ pesos conversíveis, a moeda forte cubana- em pesos comuns. A pilha de cédulas desgastadas e sujas que resultou da transação equivalia a fpp pesos, ou cerca de US$16, pela cotação do mercado negro de Enfrentei as multidões e comprei uma berinjela (10 pesos), quatro tomates (15), uma cabeça de alho (2) e algumas cenouras (13).
No balcão da padaria, a mulher que atendia me disse que pães só podiam ser vendidos a portadores de cadernetas de racionamento- mas mesmo assim me vendeu cinco pãezinhos, avidamente apanhando cinco pesos de minha mão. Só fui bem tratado pelo vendedor de tomates, que me ofereceu um tomate de brinde.
Comprei 1,5 quilo de arroz por Pouco mais de 10 centavos de dólar, e um saco de feijão vermelho.
Com isso, a conta final subiu a catastróficos US$2, por uma quantidade de comida que produziria apenas algumas refeições.
Alguns moleques me seguiramaté a saída, murmurando "camarão, camarão, camarão", em um esforço para me vender alguma coisa. Do lado de fora,um homem viu que eu me aproximava e subiu numa árvore, descendo com cinco limões que me ofereceu. (Não era um limoeiro, e sim o lugar em que guardava seus produtos de mercado negro.) Cheguei em casa cambaleando como peso do arroz e dos legumes, com cara, segundo a mulher de meu senhorio, de homem divorciado a ponto de começar vida nova.

PROGRESSO Quando contei a Sánchez que havia caminhado até sua casa, como parte de um plano para passar 30 dias vivendo e comendo como um cubano, ele me mostrou sua caderneta.
"O nome disso é caderneta de suprimentos", disse ele, "mas é um sistema de racionamento, o mais duradouro do mundo.Os soviéticos não tiveram racionamento por tanto tempo quanto os cubanos.
Nem mesmo o racionamento chinês durou tanto." A escassez surgiu logo depois da revolução; o sistema para a distribuição controlada de bens básicos já estava em funcionamento em 1962.
Depois de 50 anos de Progresso, o país está falido, na prática. Em 2009 ervilhas e batatas foram Retiradas da ração e os almoços baratos nos locais de trabalho foram reduzidos às dimensões de lanches rápidos.
"Havia rumores sobre retirar coisas da ração, ou eliminar o sistema de vez", disse Sánchez, sobre boatos que cativam os cubanos.
Mas esses rumores desapareceram em de janeiro de 2010, quando novas libretas foram distribuídas, a exemplo de todos os outros anos.

SEGUNDA SEMANA A segunda semana foi mais fácil. As duas pequenas prateleiras do apartamento estavam bem abastecidas de arroz e feijão, batata-doce comprada por _,`p peso por quilo e minha garrafa de uísque contrabandeado, ainda pela metade. Eu tinha nove ovos, depois oito, e depois sete, ainda que a geladeira, fora isso, estivesse vazia.
Deixei de lado luxos como os sanduíches (ou sanduíche -comprei só um, e a despesa ainda me causava pesadelos). No décimo dia,constatei que me restavam 100 pesos. Como no caso dos ovos, eu era capaz de imaginar uma lenta e cuidados a redução ao longo dos próximos dias, mas tanto meu orçamento quanto minha dieta podiam ser arruinados caso eu tropeçasse e deixasse uma gema cair no chão.
Tudo dependia de quanto o arroz duraria. Já que só me restavam cinco pesos por dia para gastar, eu não poderia mais fazer compras grandes durante a minha estadia.
Aprendi a controlar o apetite e a passar sem me deter pelas filas de cubanos que adquirem pequenas bolas de farinha frita a um peso.

TRABALHO Outra coisa que eu tinha em comum com a maioria dos cubanos é que absolutamente não trabalhei durante meus 30 dias.O que significa que trabalhei muito e com grande freqüência em meus projetos pessoais.
Carreguei cimento e removi cascalho por dinheiro, e escrevi bastante, mas não se tratava de trabalho para o Estado, o tipo de trabalho computado nas contas da Cuba oficial,onde mais de 90% das pessoas são funcionários do Estado.
Porque procurar emprego Ninguém leva seu trabalho a sério, e a piada mais velha de Havana continua a ser a melhor: "Eles fingem que nos pagam, nós fingimos que trabalhamos".
Umavez por dia, eu cedia à vaidade e me olhava no espelho sem camisa,vendo um homem que não contemplava há 15 anos. Eu havia perdido primeiro dois, depois três, por fim quatro quilos.Mas estômago e mente se ajustaram com facilidade assustadora.
Minha primeira semana havia sido dolorosa e a companhada por uma fome mortal.A segunda, dolorosa e apenas moderadamente faminta. Agora, na terceira, ainda que estivesse comendo menos que nunca,me sentia tranquilo, tanto física quanto mentalmente.

BEBIDA Fazia tempo que meu uísque havia acabado, e era difícil apreciar Cuba sem beber. Oswaldo Payá reforçou essa sensação ao dizer que "uma boa bebida é um dos direitos que todos temos". Era hora de fazer algo para beber.
O único alimento que eu tinha de sobra era açúcar -eu nem me dera ao trabalho de comprar minha cota de açúcar bruto, porque em três semanas havia consumido menos da metade de meus ],s quilos de açúcar refinado.
Fazer rum é um processo simples, Ao menos em teoria. Açúcar mais fermento resultam em álcool.
Destilar o produto resulta em álcool ainda mais forte. Eu jamais havia destilado álcool, mas tinha visitado a destilaria Bushmills,na Irlanda do Norte, pouco antes da viagem a Cuba e, reforçado com anotações baseadas nolivro "Chasing the WhiteDog", de Max Watman, decidi que procuraria a felicidade alcoólica, mesmo que aos tropeços.
O primeiro passo é produzir um mosto, ou solução de baixo teor alcoólico.
Eu já tinha o açúcar. Fui a Uma padaria livre, onde uma multidão de consumidores desapontados esperava que as máquinas produzissem uma nova fornada de pães.Na porta dos fundos, chamei uma padeira com um gesto e perguntei se podia comprar fermento.
"Não", ela disse. "Não temos o Suficiente nem para nós". Seguindo o ritual ao qual já me acostumara, continuei a conversa, tentando conquistar sua atenção, e não demorou para que ela esticasse o braço pela cerca e me desse meio sacode fermento-fabricado na Inglaterra. Tentei pagar, mas ela recusou.

DESTILAÇÃO Demorei36 horas para conseguir um galão de água purificada. Em seguida, poli minha panela de pressão, testei e remendei suas vedações de borracha; submetia panela a uma esterilização e coloquei água e açúcar lá dentro. Misturei, fechei e esperei.
Passadas quatro horas, a panela de pressão estava borbulhando com uma espuma turva de tom marrom e cheiro mortífero.
Destilar requer uma mangueira.
Pedi a um jardineiro que trabalhava em um jardim do bairro se ele podia me conseguir uma mangueira apropriada à destilação de aguardente.O pedido lhe pareceu a coisa mais natural do mundo e, meia hora depois, ele me entregou um metro de mangueira cortado do jardim de alguém.
Pelos dois dias seguintes, verifiquei o líquido na panela de pressão.
A mistura estava atraindo drosófilas e borbulhava baixinho.
Por fim chegou o grande dia da fuga. Não minha partida, que só aconteceria oito dias mais tarde, mas sim o álcool. O líquido marrom parar a de borbulhar depois de quatro dias -quando o teor alcoólico atinge os _b%, o fermento remanescente morre.
Esterilizei a mangueira e, dobrando um cabide, afixei-a à válvula no topo da panela de pressão.
Acendi um fósforo e, em10 minutos, tinha vapor de álcool, transferido pela mangueira para se condensar em forma líquida na garrafa vazia de uísque, posicionada em uma vasilha cheia de gelo.

ÁLCOOLTÓXICO Demonstrando minha ignorância, eu havia cozinhado a mistura a uma temperatura alta demais, e não removi a camada inicial de álcool de baixa qualidade, ou até mesmo tóxico. Mas quatro horas de cozimento Produziram um litro de uma bebida leitosa,e em minha ingenuidade decidi suspender o processo antes que os restos caíssem na garrafa e estragassem o sabor. Eu deveria ter feito uma segunda destilação, para produzir um rum mais fino,mas nem tentei. Às quatro da tarde, por fim pude me sentar, tendo em mãos um copo de rum esbranquiçado e quente.
Comecei a beber e em 30 segundos já estava com dor de estômago.
O teor alcoólico da bebida era baixo, mas minha tolerância também, e não demorou muito para que eu começasse a rir à toa.

FIM Meus gastos totais com comida Foram de US$15,08 ao longo do mês.Ao final,eu tinha lido nove livros, dois dos quais com mais de mil páginas, e escrito boa parte deste artigo. Vivi com o salário de um intelectual cubano e, de fato, sempre escrevo melhor, ou ao menos mais rápido, se estou sem grana. Minha última manhã: sem desjejum, para complementar o jantar que não tive na noite anterior. Usei a moeda que ganhei de uma prostituta para apanhar um ônibus até perto do aeroporto. Tive de caminhar os 45 minutos finais até o terminal; quase desmaiei no caminho.
Houve um momento tragicômico, no qual homens uniformizados me tiraram da fila do detector de metais porque um agente da imigração achou que eu tinha excedido os 30dias de permanência do meu visto. Foi preciso três pessoas, contando repetidamente nos dedos, para provar que aquele era o 30 dia.
Jantei e almocei nas Bahamas e engordei quase dois quilos. De volta aos EUA, ganhei mais três quilos antes que o mês acabasse. Estava de volta à minha nacionalidade -e ao meu peso.


Nota
1. Para protegê-las do Estado cubano, algumas pessoas mencionadas neste texto não terão seu nome revelado

Em Cuba, o salário médio é de US$ 20. Médicos chegam a ganhar US$ 30, e muitas outras pessoas ganham só US$10. Decidi que me concederia o salário de um jornalista cubano: US$ 15

E há os ovos. A mais confiável das fontes de proteínas, eles são conhecidos como "salva-vidas". Antigamente, a ração erade um ovo por dia; depois, um ovo a cada dois dias; agora, é de umovo a cada três dias

Eu deveria ter feito uma segunda destilação, para produzir um rum mais fino, mas nem tentei. Às quatro da tarde, por fim pude me sentar, tendo em mãos um copo de rum esbranquiçado e quente


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